Entrevista | Paulo Henriques Britto 05/03/2020 - 15:01

Na companhia do medo

O poeta e tradutor discute a relevância do poema “O Corvo”, de Edgar Allan Poe, e o impacto que o autor norte-americano teve sobre a literatura moderna

João Lucas Dusi

 

O autor norte-americano Edgar Allan Poe é um dos nomes incontornáveis da literatura moderna. Entre outros feitos, criou a ficção policial e abriu caminhos para o estruturalismo, como o próprio Roman Jakobson (1896-1982), um dos pioneiros da análise estrutural da linguagem, reconhece. Apesar dessa influência sobre um movimento que prioriza a forma ao conteúdo, Poe produziu uma ficção arquirromântica e recheada de chavões da literatura chamada “gótica” nos países falantes da língua inglesa — é o que diz o premiado poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, que organizou, escreveu o posfácio e traduziu ensaios do escritor para a coletânea O Corvo, lançada em 2019 pela Companhia das Letras.

Falando especificamente do poema que dá nome ao livro, em entrevista concedida por e-mail ao Cândido, o autor de Nenhum Mistério (2018) se faz claro: “É um texto fascinante, mas está longe de ser um grande poema”. Os versos, que deixaram-lhe encantado aos 12 anos de idade, quando estudava nos Estados Unidos, hoje soam-lhe “o equivalente textual de um filme B de terror, estrelado por Béla Lugosi ou Vicent Price”. 

Edgar Allan Poe levou uma “vida de poeta” — foi pobre, alcoólatra e endividado, conforme você aponta em “Um Raven e Dois Corvos”. Ele é um daqueles casos em que o mito do escritor se tornou maior do que sua obra?

Talvez. Mas maior que a obra e o mito, sem dúvida, é o impacto que ele teve sobre a literatura moderna, a começar pela influência direta exercida sobre Baudelaire e Mallarmé, e indiretamente sobre o simbolismo e o modernismo. Também é necessário lembrar que Poe criou um gênero de literatura de consumo que ganhou muita importância no século XX: a ficção policial.

Em “A Filosofia da Composição”, Poe diz que “O Corvo” foi escrito com “a precisão e a sequencialidade de um problema matemático”. Como separar a imagem do autor boêmio, que morreu na sarjeta, desse poeta metódico? 

É justamente esse um dos aspectos mais fascinantes de Poe: o que nos parece ser uma contradição gritante entre sua poesia e ficção arquirromânticas e as posições que ele defende no ensaio em questão. Ainda que as afirmativas dele não devam ser levadas de todo a sério, o fato é que “A Filosofia da Composição” abre caminho para a crítica for malista moderna, a close reading e o estruturalismo, como ninguém menos que Roman Jakobson reconhece. 

No mesmo ensaio, e na contramão do pragmatismo exposto na questão anterior, Poe afirma que “um poema só é poema na medida em que excita, pela elevação, a alma”. Essa constatação parece resvalar na dicotomia forma / conteúdo — há pragmatismo na elaboração poética, mas o objetivo é pungir em algo tão inclassificável quanto a “alma”. Em “O Corvo”, especificamente, quais as engrenagens que trabalham para gerar essa potência?

Sim, junto com uma visão moderníssima do poema como construto verbal, encontramos em Poe toda uma retórica romântica do sublime. É muito curioso. O efeito do poema é gerado basicamente por dois elementos: o ritmo hipnótico e a linguagem exaltada. E o efeito é, acima de tudo, o medo: todo o artesanato formal sofisticado de “O Corvo” é utilizado, em última análise, para criar o equivalente textual de um filme B de terror, estrelado por Béla Lugosi ou Vincent Price.

Apesar do sucesso imediato que acompanhou a publicação de “O Corvo”, nomes como Ralph Waldo Emerson e Henry James tiveram ressalvas quanto aos versos. Já o francês Baudelaire, por outro lado, tornou-se um “apóstolo” de Poe. A que se deve essa disparidade? Há algum tipo de “sensibilidade” que faltou a alguns críticos norte-americanos?

Tendo a concordar com essas ressalvas. Henry James aponta com razão uma certa imaturidade na sensibilidade de Poe. Também é verdade que ele abusa de chavões da literatura chamada “gótica” nos países anglófonos: castelos medievais, segredos indizíveis, gatos pretos, cemitérios à meia-noite... Por outro lado, os franceses, do outro lado do Atlântico, perceberam o que havia de poderoso e novo em Poe — eu citaria, além do que já mencionei, a percepção da metrópole moderna como cenário novo para a poesia. Isso está lá em “O Homem da Multidão”, texto que foi comentado e / ou reescrito em prosa e verso por Baudelaire, Mallarmé, Valéry, Benjamin... A “descoberta” de Poe na França é um fenômeno que vai se repetir no século XX no cinema: foram os franceses que “descobriram” o gênero film noir e que valorizaram Jerry Lewis, que nenhum crítico levava a sério nos EUA.

No decorrer do ensaio “A Filosofia da Composição”, Poe tenta convencer o leitor de que “O Corvo” é a estrutura poética perfeita. Você, como experiente prosador, poeta e tradutor, foi convencido pela argumentação do autor estadunidense?

De jeito nenhum! “O Corvo” é um texto fascinante, mas está longe de ser um grande poema. É uma ótima leitura para pré-adolescentes.

Você visitou os versos de “O Corvo” bem novo. Agora, na coletânea lançada pela Companhia das Letras, analisou-o com profundo rigor acadêmico. Como foi retornar ao poema sob essa perspectiva? Esmiuçar — de forma lógica — os versos ou a prosa de um autor pode fazer com que um certo encanto se perca?

Não há como recuperar, depois dos 30 anos de idade, o frisson provado pela leitura de Poe aos 12, ainda mais quando se é um estudioso da forma poética e da tradução literária. Não que isso aconteça com a obra de qualquer autor, de qualquer artista; algumas obras (ainda que não muitas) que me empolgaram nessa idade até hoje me causam admiração; mas Poe não é um autor que entusiasme leitores maduros, ao menos hoje em dia, quando os efeitos que ele explorava foram fartamente diluídos pela literatura de consumo, o cinema e os gibis. Muitos aspectos da obra de Poe que me fascinavam quando eu era menino são justamente os que agora me impedem de levá-lo totalmente a sério: toda a maquinaria pesada e artificial de emparedados vivos, castelos a desmoronar, mortos-vivos a se transformar em podridão num piscar de olhos. Mas há que reconhecer: a extrema perícia do autor ao lidar com os recursos da versificação inglesa não deixa de provocar admiração.

Por que Allan Poe ainda segue tão atrativo para a juventude do século XXI? Na sua opinião, que desde criança teve contato com o conteúdo do autor, o que ele tem de tão cativante?

É mesmo verdade que Poe continua sendo interessante para leitores pré-adolescentes? Não sei. No caso do poema em questão, talvez ainda tenha impacto sobre um leitor muito jovem o ritmo mecânico, obcecante; mas o efeito de terror ainda funcionará? Muito do que me atraiu em “O Corvo” eu já havia encontrado num outro poema que marcou minha infância — “I-Juca-Pirama”, outro poema narrativo com ritmos irresistíveis e uma história exótica e macabra. Mas hoje o poema de Gonçalves Dias me parece bem superior ao de Poe; creio que ele resiste melhor a uma leitura feita em idade adulta.

Concorda com Poe: a melancolia é o mais legítimo dos tons poéticos? 

Não. Poesia é algo muito maior do que imaginavam os românticos — como, aliás, sabiam perfeitamente os poetas do século XVIII, e também de séculos anteriores. Os românticos estreitaram muito o âmbito do poético, e — apesar de todas as realizações do modernismo, que retomou muito de bom do passado pré-romântico, além de criar coisas novas — essa visão estreita se tornou a visão de lugar-comum da poesia até hoje. O que é uma pena.  

 

Foto: Fábio Santiago