Entrevista: Laurentino Gomes 22/12/2020 - 11:17

País de faz de conta

O jornalista e escritor paranaense aborda o racismo enraizado na construção do Brasil e discute outras questões urgentes, como a pandemia e as transformações no jornalismo

 

Vencedor do Prêmio Jabuti deste ano por sua obra mais recente, Escravidão: do Primeiro Leilão de Cativos em Portugal Até a Morte de Zumbi dos Palmares: Volume 1,  Laurentino Gomes foi o primeiro convidado da quarta edição da Flibi, a Festa Literária da Biblioteca Pública do Paraná. O autor dos best-sellers 1808, 1822 e 1889 participou de um pré-evento online no último dia 25 de novembro, com mediação do jornalista Ricardo Sabbag e transmissão ao vivo pelo YouTube. Eles conversaram, entre outros assuntos, sobre o tema da programação deste ano — “História ao Vivo”, uma reflexão acerca das grandes transformações vivenciadas pelos povos do mundo na contemporaneidade. Leia a seguir os melhores momentos da live, que também está disponível, na íntegra, no canal BibliotecaPR.

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Laurentino Gomes foi o primeiro convidado da quarta edição da Flibi, a Festa Literária da Biblioteca. Foto: Divulgação

 

Aprendiz de feiticeiro
Nós estamos vivendo neste ano de 2020 uma conjunção de crises variadas no Brasil e no mundo. Primeiro essa pandemia, que é uma experiência inédita para todos os seres humanos no planeta. Nunca vivemos um ano tão diferente, imprevisível, repleto de incertezas como este. Isso em um mundo que estava mobilizado por entretenimento, consumo, shows, viagens... E, de repente, todo mundo é obrigado a parar. Então, evidentemente, o grande fenômeno deste ano é a pandemia. Mas tem alguns outros fenômenos que contribuem para o ambiente de instabilidade deste ano. Por exemplo, o mundo vivendo um grande questionamento a respeito do regime democrático, o líder da maior potência do planeta desqualificando o próprio regime democrático dos EUA, questionando a lisura das eleições, cortejando ditadores ao redor do mundo. E temos um imitador, um aprendiz de feiticeiro no Brasil, que tudo que o Donald Trump faz ele tenta repetir por aqui — piorado, evidentemente, mas também questionando as bases da democracia brasileira, o funcionamento das instituições, namorando projetos autoritários.

 

Identidade brasileira
Nós temos outro fenômeno muito importante, que é uma discussão a respeito da identidade brasileira. E é nesse contexto que eu gostaria de situar os acontecimento da última semana — a morte de um homem negro massacrado no estacionamento de um supermercado em Porto Alegre, às vésperas do Dia da Consciência Negra, e que causou comoção nacional. Acho que isso é uma erupção de um vulcão que está ameaçando explodir o tempo todo no Brasil. Nós vivemos momentos de grande tensão a respeito da nossa identidade nacional. É sempre bom recordar que História a gente não estuda apenas como caráter de entretenimento, em busca de personagens e acontecimentos pitorescos do passado — como Dom Pedro I, que dizem que estava com dor de barriga às margens do Ipiranga. Embora a História seja interessante nos seus detalhes, ela tem uma função muito importante: a de ser uma ferramenta de construção de identidade. Nós olhamos para o passado para entender o que somos hoje e também para prepararmos nossa caminhada em direção ao futuro. Ou seja, a História é fundamental na construção da identidade nacional brasileira.

 

Mitos e fatos
O interessante é que essa História é feita de fatos e acontecimentos concretos que estão no passado, não mudam mais. Mas também é feita de uma dimensão imaginária, mitológica. Na nossa caminhada como sociedade brasileira vamos construindo alguns mitos a nosso respeito. Vou citar três. O primeiro de que somos um povo honesto, trabalhador... de fato somos mesmo. Mas então de onde vem tanta corrupção? Se somos tão honestos e trabalhadores e somos nós, na condição de eleitores, que elegemos e organizamos o estado brasileiro, por que há tanta corrupção? Será que o estado reflete valores e práticas que nós cultivamos nas nossas relações privadas e fingimos que não existem? O jeitinho brasileiro, atalhar caminhos, não respeitar normas e regulamentos? É uma questão. Um outro mito que está sendo questionado fortemente nos últimos tempos é o do brasileiro pacífico. Se é assim, por que o Brasil está entre os países com o maior índice de criminalidade e é um dos mais violentos no mundo? É mais um mito que está sendo questionado. E enfim o terceiro, de que o Brasil teve uma escravidão boazinha, patriarcal, benévola — do senhor de engenho que era pai de uma grande família que incluía a senzala —, que a escravidão brasileira não foi tão violenta e cruel como em outro países e que isso teria dado origem a uma grande democracia racial. Esse é o mito, mito de Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala.

 

Racismo estrutural
Quando se vê episódio igual ao da semana passada, quando um homem negro é morto em um supermercado, você se pergunta: “Como? Por quê?”. E mais curioso, que me surpreende, é entrar em redes sociais e ver gente que diz que tudo bem, o homem que morreu em Porto Alegre era violento, tinha histórico de agressão a mulher, então tudo bem massacrá-lo no estacionamento do mercado, como se isso fosse algo concebível. Aí é que entra o racismo estrutural. Existe um racismo explícito, punido por lei: quando a pessoa vai no shopping, mercado, restaurante e xinga a outra com palavras ofensivas. Esse é um crime imprescritível e inafiançável, se comprovado. Mas esse racismo é menor se comparado com o verdadeiro, silencioso e cúmplice: uma imensa maioria da população brasileira que acha que os negros e descendentes de africanos são inferiores, violentos, candidatos ao crime e que portanto tudo bem um segurança de supermercado massacrá-lo. É um episódio violento, assustador, mas também um sinal para todos nós de uma coisa muito mais profunda: o racismo que está estruturado no nosso alicerce como sociedade nacional.

 

Legado da escravidão
Onde houve ser humano, houve escravidão. É como se estivesse no nosso código genético, no nosso DNA. Somos escravistas por natureza — pelo menos, a História indica isso. Mas a escravidão africana tem algumas novidades — essa da qual o Brasil participou numa escala gigantesca, com quase 5 milhões de africanos escravizados ao longo de 350 anos. Ela é diferente por duas razões, primeiro pela sua escala industrial: saem da África 12,5 milhões de escravos, chegam 10,7 milhões na América, sendo 5 milhões no Brasil e 1,8 milhão morto na travessia no Oceano Atlântico. Essas pessoas vieram trabalhar na América em atividades pré-industriais. A outra razão é o nascimento do racismo. É a primeira vez que em que a cor da pele está associada à escravidão, porque existia uma ideologia racista defendida por padres jesuítas — tratados, livros, leis, documentos oficiais que diziam que os africanos eram inferiores, bárbaros, selvagens, praticante de religiões demoníacas, e que portanto a melhor coisa que poderia acontecer com eles era embarcar num navio negreiro e vir se incorporar na supostamente moderna, avançada, civilização europeia que os portugueses instalavam nos trópicos. Essa é a ideologia racista que foi utilizada para justificar a escravidão, ou seja, para dizer que os africanos eram candidatos naturais ao cativeiro. Eu diria que essa ideologia ainda continua entre nós, é o que eu chamo de um racismo cúmplice e silencioso de uma imensa maioria de brasileiros, que jamais teria coragem de se declarar racista, de declarar uma palavra em público de conotação racista, mas no fundo continua achando que os negros e os descendentes de negros são inferiores. Esse é o legado óbvio do fim da escravidão em 1888.

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Mito da democracia
Nossos grandes abolicionistas — Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, André Rebouças e Luiz Gama — diziam que não bastava parar de comprar e vender gente, era preciso também, fazer uma segunda abolição, dando terra, trabalho, renda, educação, moradia, saúde, oportunidades para a população de ex-escravos e seus descendentes. Isso, o Brasil jamais fez. O Brasil abandonou a população afrodescendente à própria sorte, e o resultado disso aparece nas estatísticas hoje por qualquer critério que você queira medir o país. Existe um abismo entre a população branca de origem europeia e a população negra. Por que isso acontece? Porque a população silenciosa e cúmplice, que não se declara racista, não dá oportunidades a essa outra população para se expressar. Uma criança negra quando nasce não tem oportunidade de boas escolas, ela tem que trabalhar muito cedo para ajudar em casa, ela simplesmente não tem a oportunidade de se realizar plenamente como cidadã brasileira e manifestar, na sua plenitude, sua vocação e talentos. Eu diria que esse é o grande problema racial brasileiro, porque, se esse problema não existisse, também não haveria a desigualdade social no Brasil. Pobreza, no Brasil, é sinônimo de negritude. É interessante que às vezes você tenta associar o problema da desigualdade social ao racismo e sempre vem alguém dizer “mas também tem pobres brancos no Brasil”. Sim, sem dúvidas. Mas a imensa maioria dos pobres estatisticamente são negros, mestiços ou pardos, descendentes de africanos. O que me leva à convicção de que nós temos um problema racial no Brasil. E, portanto, a melhor coisa que podemos fazer é aceitar essa ideia, esquecer o mito de que seríamos uma democracia racial e tomar as atitudes corretas para resolver esse problema no futuro.

 

Farsa
No livro 1822, lancei uma ideia de que não é por falta de projetos e ideias defendidas em determinados momentos que o Brasil não deu “certo”. No passado, por exemplo, se for olhar para o que José Bonifácio defendia — a reforma agrária, pela taxação do latifúndio improdutivo, educação para todos, incentivo à indústria e ao comércio, fim do tráfico de escravos e abolição gradual da escravidão. Por que não aconteceu? Porque o Brasil estava viciado em escravidão e num sistema social que era baseado em latifúndio, analfabetismo, escravidão, isolamento e pobreza. Diria que essa é a grande miragem do primeiro e segundo reinado: um Brasil que faz de conta que é monárquico, imperial, finge que tem uma corte como se estivesse em Versalhes, Viena, Londres — tem barão, visconde, príncipe, princesa, conde, imperador, etc. Tem um parlamento, liberdade de imprensa aparente, eleições que ocorrem regularmente, alternância no poder de dois grandes partidos (Liberal e Conservador). Esse é um país de faz de conta. Um imperador que era culto, amigo de filósofos, poetas, inventores. Mas a realidade nas ruas era outra, era de escravidão, pobreza e analfabetismo. Essa esquizofrenia entre um Brasil sonhado e um Brasil real. E, quando aconteceu a abolição, a esquizofrenia não foi embora. A abolição para uma parte importante — inclusive dos abolicionistas — era livrar o Brasil de uma “mancha” que comprometia nossa imagem perante o mundo desenvolvido. O Brasil se livra dessa “mancha”, mas mantém inalterado o sistema social vigente — sem educação, sem reforma agrária e distribuição de riquezas, abandono dos ex-escravos. É como se a gente viesse empurrando com a barriga um monte de problemas de passivos históricos que se apresentaram quando a corte chegou ao Brasil, na Independência, no primeiro e segundo reinado, na República, e o Brasil não resolve.

 

Dinastias
O Brasil finge que quer ser um país orgânico e organizado, mas no fundo eu diria que é como uma bolha assassina: você tem uma aristocracia regional, uma oligarquia que mandou no Brasil Colônia, mandou no Império, mandou na República e continua mandando hoje, e que não larga o osso. Essa oligarquia regional, geralmente rural, consegue se transformar o tempo todo. Foi aliada do regime militar, do FHC, de Lula e Dilma, é aliada do Bolsonaro...  Não larga o osso. Ela partilha os recursos do Estado entre si, e não promove reforma e revolução nenhuma, pelo contrário, é um obstáculo. A gente não consegue ir para a frente porque tem grupos organizados — só você ver as dinastias que se perpetuam nas urnas na nossa democracia, são nomes e sobrenomes que vão se perpetuando — para usufruir de recursos do Estado e não permitir que o país se transforme estruturalmente. E isso inclui o racimo, legado da escravidão que nunca foi enfrentado de forma adequada.

 

País imaginário
A História ajuda a construir uma identidade nacional, e é muito alvo de manipulação tanto por quem está no poder quanto pela oposição. É interessante observar que, quando o general Mourão e o presidente Bolsonaro dizem que não há racismo no Brasil, eles estão ecoando coisas que se falavam no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, fundado por Dom Pedro II e que tinha como objetivo construir uma imagem nacional. Esse discurso foi repercutido durante o Estado Novo do Getúlio Vargas, durante o regime militar nas disciplinas de educação moral e cívica. É um país imaginário: não tem racismo. A mensagem é: não reclamem porque está tudo bem.

 

Momento de transformação
Acho que falei até agora sob uma perspectiva muito pessimista da nossa trajetória — que a gente vem empurrando as coisa e não as resolve. Mas diria que estamos vivendo — neste ano de 2020, muito simbólico — um momento de grande transformação. E não apenas na história do mundo, mas especialmente na história do Brasil. Talvez se olharmos lá na frente a gente vai comparar esse período como sendo tão importante quanto foi a chegada da corte no Rio de Janeiro, a Independência, proclamação da Republica, abolição da escravidão, porque nós nunca tivemos um Brasil passando por um momento de reflexão, de discussão e transformação como temos agora.

 

Discutindo o Brasil
Temos uma história autoritária, de opressão, desigualdade, não-cidadania, sem dúvida alguma, mas, ao mesmo tempo, estamos vivendo uma experiência inédita: mais de 30 anos de democracia. Claro, uma democracia tumultuada, cheia de altos e baixos. Mas o fato é que estamos vivendo, desde as campanhas diretas de 1984, uma experiência democrática prolongada e sem rupturas. É muito interessante observar como, nesse ambiente, a discussão a respeito da nossa identidade nacional está aflorando com grande intensidade na imprensa, nas redes sociais, no parlamento, nas escolas, nas empresas. O que nós estamos fazendo? Nós estamos discutindo o Brasil, repensando as nossas características, valores, referências. A nossa identidade. Por isso, acho que seria um gravíssimo erro achar que a luta contra o racismo é apenas de intelectuais, do movimento negro, de vanguardistas.

 

Consciência aguçada
A repercussão do que aconteceu em Porto Alegre é tão grande, vi tantas pessoas indignadas que aos poucos isso vai passando para o cidadão brasileiro — encarregado de colocar votos nas urnas. É aí que se constrói democracia. Ou seja, ao invés de você escolher um político racista como nós temos hoje em Brasília, você escolhe outro. É disso que nós estamos tratando aqui. Uma sociedade organizada de forma democrática que refletiu sobre si própria e discutiu suas características, e que tem uma consciência mais aguçada a respeito do seu futuro. Acho que com o tempo — isso demora, temos que calibrar nossas expectativas — o brasileiro médio, comum, vai aos poucos chegando à conclusão de que de fato nós temos um problema racial, um problema sério no Brasil, e que não adianta fingir que não existe. E aí esse brasileiro encarregado de votar de forma consciente lá na frente, quando a gente parar de votar em político corrupto, autoritário, malandro e racista, ele vai ajudar a transformar o Brasil. Aos poucos. Tenho feito muitas lives em escolas, por exemplo, e os estudantes estão muito atentos a isso. Acho que, lá no futuro, isso vai resultar em grandes benefícios para nós.

 

Aos trancos e barrancos
Se você observar o debate político da perspectiva do dia a dia está tudo muito tumultuado, as pessoas estão muito ansiosas com a pandemia e parece que a gente está muito radicalizado. Mas, de um ponto de visto histórico, não. Se você observar esse Brasil da democracia, nós estamos testando fórmulas, algumas muito irresponsáveis — por exemplo, eleger o Collor e depois fazer o impeachment em dois anos por corrupção. É interessante que as diversas alternativas que surgiram no horizonte do Brasil na democracia estão sendo testadas em diferentes momentos. A gente teve ali uma solução negociada no fim do regime militar com Tancredo Neves e Sarney, depois vem o Collor, depois Itamar Franco, o FHC — um sociólogo, imagina!, essa democracia elegeu um sociólogo da USP. É uma coisa inacreditável. Depois veio o Lula, um sindicalista, depois uma mulher [Dilma]. Os Estados Unidos nunca tiveram uma presidente mulher, nós já tivemos. E agora tem esse sujeito que é uma coisa complicada. Mas é mais um teste que o Brasil está fazendo e que às vezes chega às raias da irresponsabilidade. Mas diria que democracia é assim mesmo. Porque se só tivesse uma coisa coerente, positivista — que a humanidade sempre caminha para um futuro melhor —, os EUA nunca teriam eleito o Donald Trump, também não teria havido o nazismo na Alemanha — que era uma das sociedades mais avançadas na primeira metade do século XX. Gosto muito dessa ideia de que o Brasil, na democracia, está testando soluções e a gente às vezes corre muitos riscos por fazer esses testes. Mas diria que lá na frente, quando se traçar uma mediana, o resultado vai ser o seguinte: a gente aprendeu a fazer democracia. E isso que é a novidade, porque o Brasil nunca teve a oportunidade de exercer a democracia. Nunca. E agora nós estamos indo, aos trancos e barrancos. O debate vai melhorando.

 

Paralelos
Houve ali [no período da gripe espanhola, em 1918] uma crise muito semelhante à de hoje. O que me surpreendeu bastante é observar que comportamentos recorrentes daquela época são os mesmos de agora: pessoas que se recusam a aceitar a ideia de isolamento social, de usar máscara, gente que não quer tomar vacina. Isso me leva à ideia de que nós repetimos com muita frequência os erros do passado. Nasci numa sociedade rural, lá perto de Maringá. Morei meus 10 primeiros anos em Água Boa, distrito de Painçandu. Morei na roça. Convivi com pessoas que tiveram varíola, paralisia infantil, sarampo, uma série de doenças endêmicas. E o sonho dos meus pais era vacinar os filhos. Era uma grande conquista. Hoje, uma parte importante da sociedade brasileira urbana e até jovem acha que vacina é banal, perigosa, e não quer vacinar os filhos. A gente caminha para trás às vezes. A realidade parece uma coisa ganha, garantida, e não é. Esse é o paralelo que faço com a gripe espanhola.

 

Crise do jornalismo
Tenho 43 anos de profissão. Comecei em 1977, no falecido Correio de Notícias. Poucas profissões no mundo mudaram tanto como o jornalismo. Quando comecei, tinha colegas que escreviam à mão. Depois veio telex, o fax, a telefoto. É impressionante observar o que aconteceu com o jornalismo nesse breve período de 40 e poucos anos, uma transformação radical do ponto de vista tecnológico, especialmente agora que essas tecnologias estão provocando uma crise estrutural num modelo de negócio, em que a produção de conteúdo era empacotada em basicamente três diferentes formas: impresso, TV e rádio. Hoje é um absurdo as possibilidades de distribuir o conteúdo jornalístico, mas ao mesmo tempo a circulação desabou, a receita publicitária se fragmentou, as empresas não têm certeza de retorno, o que faz com que o jornalismo brasileiro esteja vivendo uma crise terrível. As redações estão minguadas, sem capacidade humana para fazer reportagens, o conteúdo tem que ser feito rapidamente em vários formatos, e não tem gente suficiente para fazer grandes reportagens como antigamente. Vejo a imprensa como uma imprensa superficial. Na impossibilidade de se investir em grandes reportagens, virou uma imprensa muito estridente, de opinião — jornalista gritando, inclusive tomando posições até de natureza partidária, comprometendo sua imagem. Mas diria que, ainda assim, nós estamos conseguindo sobreviver. É muito simbólico isso que a imprensa fez no Brasil: diante da omissão e da ausência do governo federal de coordenar os esforços na pandemia, criou-se um consórcio de imprensa para monitorar os números. Fiquei bastante orgulhoso como jornalista quando vi que empresas concorrentes entre si tiveram a capacidade de fazer isso. Bem ou mal, o jornalismo brasileiro está conseguindo orientar a população.

 

Ataques à imprensa
A imprensa boa, de qualidade, plural, viva, é típica de um ambiente de democracia. Quanto mais fortalecida for a democracia, melhor vai ser a imprensa. E vice-versa: uma democracia sem um bom trabalho jornalístico não funciona. Como a democracia está sob ataque no mundo inteiro, à esquerda e à direita em um mundo de projetos autoritários, qual é a primeira coisa que tentam fazer? Desqualificar o trabalho jornalístico, porque assim destrói um pilar da democracia. Trabalhei por muitos anos na Editora Abril, fui editor da Veja, e tenho muito orgulho do trabalho jornalístico desenvolvido lá durante a minha geração. Agora a Veja acabou, a Editora Abril faliu e o que me surpreende é ver gente comemorando, inclusive ex-coleguinhas meus. Comemorando como se fosse bom para o Brasil uma empresa como a Abril e a Veja falirem, como se o Brasil melhorasse com isso. O Brasil piora. E a mesma coisa com a Rede Globo. Como se destruir um veículo que tem a sua essência no bom jornalismo fosse bom para a democracia brasileira. Não é. É o contrário: nós precisamos ter muito veículos, muitas opiniões, muitas formas de cobrir a realidade brasileira. Isso que é bom. O que vem no lugar são blogs horríveis, emissoras ligadas a igrejas fundamentalistas... É isso que a gente quer? Não é. O problema é que o jornalismo está sob ataques no mundo inteiro, especialmente no Brasil. Uma sociedade que perde o bom trabalho jornalístico, o que inclui as empresas sérias de comunicação, é uma sociedade que fica pior, se empobrece. Nos vácuos entram os projetos autoritários.

 

Historiador do futuro
Nunca se teve tanta informação quanto agora. Se pegar a quantidade de tuítes que são feitos por dia, de posts no Instagram, blogs, podcasts... A quantidade de informação que um historiador do futuro vai ter é enorme. Mas tenho a impressão que nosso julgamento não vai ser muito bom, não, porque nós que nos considerávamos uma sociedade avançada estamos cometendo erros imperdoáveis. O racismo no Brasil é um deles. Esse Brasil que se recusa a enfrentar um problema estrutural e fica fingindo que não tem. A maneira como estamos tratando o meio ambiente é imperdoável no futuro. Esse é um problema tão grave, tão urgente, que as gerações futuras vão sofrer as consequências das decisões que nós não estamos tomando agora, vão nos julgar de forma bastante dura. E não é só em relação ao meio ambiente, ao racismo, é em relação, por exemplo, ao tratamento dos imigrantes, à pobreza no mundo, às desigualdades, aos conflitos, à indústria das armas. O historiador do futuro vai ter muita documentação e o julgamento vai ser péssimo, tão ruim quanto nosso olhar de hoje para a sociedade escravista do passado.

 

Credibilidade
Uso a rede social para meu trabalho, não fico discutindo, me envolvendo em polêmicas. Fujo disso, acho uma coisa estéril, que não leva a lugar nenhum. Uso as redes para falar o meu trabalho, sobre a História do Brasil. Mas no passado, confesso, às vezes caía em alguma tentação. Assim, fui percebendo que a rede social pede radicalização e polarização: quanto mais polêmico você for mais likes você vai conseguir, mais audiência. Se você tentar ser uma pessoa sensata, equilibrada, não consegue nada. E alguns dos nossos coleguinhas caíram nessa tentação: quanto mais radical, mais polêmico, provocativo, mais sucesso você faz. E aí é o pecado da vaidade. Você tem um monte de seguidores, repercute, mas depois chega no momento em que dois jornalistas estão se estapeando. O que é ridículo. O jornalismo não pode aceitar isso. O jornalismo é sensatez, discernimento, equilíbrio. Porque envolve uma coisa importante chamada credibilidade, e não se pode abrir mão dela. Quando o leitor ou telespectador ou internauta desconfiar que você está a serviço de outra coisa que não seja prover informação, você perdeu a credibilidade.

 

Pandemia
O mais importante foi o susto. As pessoas nunca imaginaram que, nesta altura do campeonato, enfrentariam um problema dessa natureza, em que o mundo parou literalmente. O que me chama bastante atenção é que essa pandemia veio como que colocar em xeque as sociedades e cada um de nós individualmente. Quem estava bem na sua família, no seu trabalho, nas suas convicções, está conseguindo ir adiante e enfrentar o momento com o mínimo de paz. Quem estava mal, piorou. A pandemia radicalizou o mundo. E o interessante é que nós, ao invés de ficarmos mais compassivos, mais solidários, mais generosos uns com os outros, pioramos. É como se essa pandemia fosse realmente um choque até do ponto de vista espiritual, eu acho. “É isso que vocês querem ser, sociedade humana? É isso? Então vamos ver se vocês seguram o tranco!” E nós não conseguimos. Estamos saindo mal dessa pandemia — com vacina ou sem vacina, o julgamento é péssimo. Mostramos que não evoluímos nada e que chegamos ao terceiro milênio tão bárbaros, tão selvagens, como sempre fomos.

 

Próximos lançamentos
A pandemia, curiosamente, fez bem para o meu trabalho. O escritor tem dois ciclos muito distintos. Um é de recolhimento, de introspecção, que é a hora que você está lendo, pesquisando, escrevendo, aí você tem que ficar quieto. O outro, especialmente no meu caso que gosto de colocar o pé na estrada, participar de festas literárias, sessões de autógrafos, dar entrevistas, é de total exposição. Esse segundo ciclo vivi ano passado no lançamento de Escravidão — Volume 1. Nesse ano, eu precisava me recolher porque tinha assumido o compromisso de escrever  o segundo volume. Acelerei o trabalho, ficou pronto mais cedo do que eu imaginava. O livro já está editado, só não foi lançado porque seria esquisito por conta do meu jeito de lançar livro. No primeiro, percorri 28 cidades em três meses, de norte a sul do Brasil. Gosto de fazer isso, e é importante para o meu trabalho. Acho que inclusive para as vendas do livro: se não faço isso, é diferente. E seria impossível, seria até uma irresponsabilidade durante a pandemia. Então a gente adiou para o ano que vem, vai ser lançado na Bienal do Rio de Janeiro. O segundo volume é o século XVIII e o terceiro é da Independência à Lei Áurea. Ou seja, é o movimento abolicionista, o Brasil resistindo a todas as pressões e esforços para acabar com o tráfico negreiro, para acabar com a escravidão, e o legado da escravidão. Esse, estou pesquisando neste exato momento. Estou lendo, fazendo anotações e espero terminar acabar de escrever até julho ou agosto de 2021, aí vou lançar o segundo volume.

 

Sonho
Tenho um sonho desde quando era estudante da UFPR em Curitiba: quando visitei a Lapa, fui na Gruta do Monge e comecei a estudar sobre o Contestado; fiquei encantado com essa história. Quando eu era estudante, em 1976, de certa forma plantou na minha cabeça o sonho de escrever um livro sobre isso. Não sei se vou fazer. É muito trabalho, mas é uma coisa que eu gostaria muito de fazer. Talvez seja até uma dívida com o meu estado. Tem muito estudo bom sobre o Contestado, mas talvez esteja faltando um livro de interesse geral com estilo de reportagem. E a história é maravilhosa, tem de tudo. Canudos tem Euclides da Cunha, Mario Vargas Llosa, mas os detalhes do Contestado são muito mais interessantes. Quem sabe no futuro, se Deus me der mais vida, eu me dedique a um livro importante sobre esse assunto.