Entrevista: Joca Reiners Terron 28/09/2020 - 16:51

País de ponta-cabeça

 

Em seu romance mais recente, A Morte e o Meteoro, Joca Reiners Terron trata do genocídio indígena e parece sintetizar a situação de um Brasil em descompasso

 

Jonatan Silva


 

Dois mil e vinte foi o ano em que testemunhamos a História. Não apenas pela pandemia de coronavírus, que já dizimou mais de 130 mil pessoas somente no Brasil, mas pela distopia que parece se realizar — ou seria se revelar? — diariamente através da violência nas cidades, da queimada no Pantanal, do aquecimento global e tantas outras crônicas de mortes anunciadas.

Joca Reiners Terron, que fez parte do grupo que ficou conhecido como Geração 90, é uma das muitas vozes de resistência ao obscurantismo que toma de assalto o mundo. Seu livro mais recente, o romance A Morte e o Meteoro, é a síntese de um Brasil em descompasso. Ao mesmo tempo, toda a sua produção literária, desde as obras iniciais, mais experimentais e idealistas, é uma batalha contra a ignorância e os lugares comuns.

Em entrevista ao Cândido, Terron fala de literatura — da sua e dos outros —, das relações ambivalentes e contraditórias entre o Brasil e a América Latina, da pandemia e da convivência que teve com Valêncio Xavier (1933-2008) e Manoel Carlos Karam (1947-2007), autores-chave para entender sua própria trajetória literária.

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Joca Reiners Terron é uma das muitas vozes de resistência ao obscurantismo que toma de assalto o mundo. Foto: Divulgação

 

A Morte e o Meteoro é um mergulho profundo nas feridas ainda abertas de um Brasil à extrema direita. Em alguma medida, essa parece uma tendência da literatura brasileira nos últimos anos, encerrando, quem sabe, o ciclo da autoficção. Romances como Marrom e Amarelo, de Paulo Scott, Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, e O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, são alguns exemplos. Qual o papel ético do artista, em especial do escritor, diante de um cenário cada vez mais distópico?

Não difere do papel ético de qualquer pessoa. A humanidade nunca viveu a iminência de algo tão drástico: aquecimento global, pandemias, a própria extinção. O objetivo de se refletir sobre o mundo, coisa que o escritor faz nos seus escritos, é, em última instância, mudar o mundo. Costumava ser essa a dimensão ética da literatura. Com um mundo em chamas, porém, e com a crescente desimportância da leitura, o que o escritor pode fazer? Micropolítica, como toda pessoa consciente. Também militar pela literatura. Ler, publicar, divulgar, debater, ensinar. Lutar para cair de pé, enfim. É preciso ter certa dose de ingenuidade para sobreviver a este mundo.

 

Ainda no mesmo romance, você narra a aniquilação dos povos indígenas, algo que parece se dar como projeto desde que Cabral desembarcou. Se antes da pandemia o livro já era um retrato certeiro desse intento, após mais de 30 mil indígenas infectados pelo vírus, e mais 400 óbitos em aldeias e tribos, testemunhamos a morte física e simbólica — a cultura, a língua — dos povos originários. Como essa atualização diária da contemporaneidade do livro tem afetado você? É possível enxergar um futuro diferente daquele que lemos?

Tem me deixado mal. Sinto identificação com os derrotados, me incluo entre eles. Mas não precisava ser assim, esse massacre. Eu, que sou um pessimista daqueles ranzinzas, que se divertem e tentam divertir com seu próprio ceticismo, tenho adoecido disso. Virei um pessimista a sério, isso não é bom. Mas quando penso que meu pai, um bancário, foi aposentado à força aos 50 anos pelo Collor e entrou em depressão, eu (que agora tenho a mesma idade que ele tinha então), diante da barbaridade que vivemos, do triunfo da ignorância, do cancelamento do futuro — que por algum tempo fomos iludidos a considerar que existiria, graças à relativa bonança da década sob gestão dessa tão irresponsável quanto festiva esquerda brasileira —, hoje vejo que nós brasileiros estamos fadados ao retrocesso cíclico, avançamos um ano e depois regredimos 50. Aqui a história caminha ao contrário, sempre em direção ao passado.

 

E considerando que o seu processo de escrita é bastante intuitivo, que caminhos históricos e ficcionais guiaram a construção da sua narrativa sobre o genocídio indígena?

Sou um desertor da realidade do mundo, do meu canto só observo e fico recebendo sinais enviados por essa realidade, que distorço em minha ficção. Qualquer coisa que eu tenha a dizer sobre essa tragédia e que não esteja em A Morte e o Meteoro soaria irresponsável, além de provavelmente falsa. Capto os sinais e os efeitos disso me levam a imaginar algo que dialogue com a realidade, às vezes a refletindo de maneira torcida, monstruosa. Depois os textos acabam refletindo a própria realidade que os causou, num jogo estranho de coincidências. A opinião de um narrador de histórias não conta, é só mais uma mentira.

 

Apesar desse “método”, nos últimos anos você experimentou diferentes disparadores para a sua escrita, seja o Teatro da Vertigem em A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-neves, ou um romance de encomenda a partir de uma viagem ao Cairo, em Do Fundo do Poço se Vê a Lua. Existe algum trabalho em progresso? Quais seriam os disparadores criativos desse novo trabalho?

Sim, finalizo um romance no qual trabalho há três anos e que deve ser publicado no primeiro semestre de 2021. Já trabalhava nesse livro quando A Morte e o Meteoro — que escrevi rapidamente, em um mês — me atropelou. Não sei se consigo falar muito dele no atual estágio de revisão em que se encontra, a não ser que lida com a sensação comum que tenho percebido nas pessoas, a de que nosso tempo histórico, com as retiradas das conquistas sociopolíticas, está retrocedendo, estamos voltando ao passado. A narrativa foi disparada quando faliu um supermercado na frente de casa chamado Futurama, parte do relato se passa dentro dele.

 

A sua literatura, por sinal, transita muito bem entre gerações, dialogando muito bem com leitores mais velhos e mais jovens que você. O que há de especial ou singular nas suas histórias que permite esse itinerário?

Agradeço seu otimismo, mas não sei dizer com precisão. Talvez seja pelo uso meio estrambótico que faço de elementos das narrativas populares, do terror, da ficção científica, do fantástico e do policial. Estrambótico porque exploro essas semelhanças apenas como porta de entrada para leitores menos maduros, que frequentemente se frustram com o enfoque pouco ortodoxo que dou a certos temas relativos desses universos.

morte e o meteoro

 

Entre tantos pontos de contatos em seus livros, a questão da identidade e da memória parecem nortear boa parte da sua literatura, ganhando ainda mais espaço e importância em Noite Dentro da Noite e A Morte e o Meteoro. Podemos considerar que são elementos básicos da configuração do sujeito, e também da sua relação com o outro. Por que discuti-las dentro da sua literatura? Que inquietações lhe provocam?

Esses temas estão em todos os meus livros, sem exceção. Me inquieta muito o esquecimento como método de sobrevivência num mundo tão violento, onde constantemente nos vemos obrigados a amortecer a influência que o mundo nos causa, e com isso acabamos por morrer um pouco, já que a etimologia de amortecer e de morrer é a mesma. Morremos um pouco, amortecemos um pouco para suportar tanta morte. Não é contraditório? Minha literatura é feita dessas contradições.

 

Anos atrás você disse que Não Há Nada Lá era seu livro favorito, justamente porque trazia o apocalipse como elemento narrativo. Depois de publicar A Morte e o Meteoro, que traz o mesmo apocalipse, talvez mais sutil e figurativo, você mantém a percepção de antes? O que mudou?

Creio que é o contrário. Em Não Há Nada Lá, de 2001, o universo é feito de letras, as letras que nos compõem já que somos seres feitos de linguagem. Termina o verso, fim do universo. Já A Morte e o Meteoro, de 2019, fala do genocídio indígena e da extinção, creio que sob critérios mais reconhecíveis, menos abstratos. Quase 20 anos separam um livro do outro, e minhas obsessões continuam as mesmas. O apocalipse, que antes era uma remota exceção, agora se tornou regra permanente. Não vejo a hora de o gênesis voltar a fazer sucesso.

 

Logo no começo da pandemia, em março, um texto no seu blog debate as questões que envolvem a sobrevivência do escritor brasileiro — agravadas depois do cancelamento de eventos, aulas, etc. Esse é um cenário irônico, basta ver os cursos de escrita criativa que pululam em todo o Brasil. Por que tanta gente ainda quer escrever em um país cujos índices de leitura são baixos e o escritor não consegue se profissionalizar ou viver da sua escrita?

Querer escrever é um anseio legítimo de qualquer leitor que se sinta motivado a compartilhar o que vai pela cabeça. Porém tenho dúvidas se o interesse pelos cursos tem a ver somente com o desejo de escrever. Creio que é mais importante algo que está na base da literatura como expressão, o convívio, a troca a partir de um interesse comum, a leitura mútua, o solidário como combate à solidão. O ofício de escritor não é uma profissão, exatamente, envolve outras questões que não estão relacionadas ao mercado.

 

Ao mesmo tempo que temos essa procura por aprender a escrever, observamos no Brasil uma predominância da narrativa realista. Esse mesmo realismo, porém, parece distante, por exemplo, das classes trabalhadoras. Por que o cidadão comum — que levanta cedo, pega metrô, ônibus, trem e vai ao trabalho — não está representado na literatura brasileira que se diz realista?

O realismo é só uma convenção literária, ademais pouco fiável. É esse delírio que nos afasta da realidade, segundo Macedonio Fernández. A classe trabalhadora protagonizou grandes livros da literatura brasileira, como no romance social do século XX, e ainda protagoniza, como em O Passageiro do Fim do Dia, de Rubens Figueiredo — que até se passa dentro de coletivos —, ou vários livros do Ferréz e do Lourenço Mutarelli. Por outro lado, eu me perguntaria por que o Brasil é tão pouco representado na ficção popular, a fantasia, que prefere importar seus modelos a investigar o que nossa tradição oral nos oferece, como os imaginários africano e indígena.

 

A sua literatura, por sinal, vai no sentido contrário, explora o extraordinário, o bizarro, como se houvesse um canto escuro em uma sala iluminada. O que te atrai nessa espécie de espaço não narrado?

Tenho uma imaginação mórbida, que foi alimentada pelos quadrinhos da Editora Vecchi e da Grafipar nos anos 1980, e antes disso pelos gibis de terror brasileiro dos anos 1960 e 70. Flávio Colin, Julio Shimamoto, a revista Kripta, da RGE. Na base de tudo estão Edgar Alan Poe e Robert Louis Stevenson, meus autores prediletos da infância. O extraordinário está presente em qualquer existência, por mais ordinária — no sentido de comum, de banal — que seja. É abrangente, surge da percepção cotidiana. Qualquer pessoa num dado momento pode ter aquele vislumbre do Aleph, seja o proletário na janela do trem ao voltar do serviço ou o ricaço na lareira da mansão em Campos do Jordão. É o instante em que vemos as cordas que realmente controlam este mundo.

 

Seus primeiros livros buscavam uma ruptura estética, num diálogo muito claro com as vanguardas. Seus últimos romances tomam outro rumo: se apropriam de uma forma mais clássica para explorar temas cada vez mais complexos. Em certo ponto, torna a literatura mais acessível. Essa mudança foi proposital?

Esses livros parecem esboços do que faço atualmente. Foram escritos em surtos, quando era possível escrever. Na medida em que descobri que o romance como formato concedia mais espaço e variedade às minhas experiências, os personagens e ambientações se tornaram mais consistentes, menos velozes. Meus primeiros livros, como Não Há Nada Lá, Curva de Rio Sujo, Hotel Hell e Sonho Interrompido por Guilhotina, estão mais próximos da poesia, nesse sentido, que é algo que ainda me interessa e que foi fundamental para minha formação. Quando escrevi Hotel Hell, por exemplo, eu estava obcecado por um livro do poeta espanhol Leopoldo María Panero, Así se Fundó Carnaby Street. Ou seja, num surto de adolescentismo tardio, paquerava o malditismo para ofender o leitor. Leitor, vale dizer, que ainda nem existia.

 

Numa conversa sua com o Enrique Vila-Matas, o escritor catalão disse que “o artista deve ser não original”. Pouco antes, Ian McEwan havia se voltado a Hamlet para escrever O Enclausurado. Borges também revisitava histórias — reais e ficcionais — para criar seus contos. E em Não Há Nada Lá, você usou de personagens de carne e osso para criar literatura. Seria esse o esgotamento da arte, no sentido de que a maioria das histórias já foi contada?

Não acredito. As histórias têm uma base invariável. Amor, traição, morte, vingança. Nisso são repetidas desde sempre. As histórias são sempre as mesmas, mas as formas de contá-las são infinitas. A arte é um dos muitos sinônimos do humano e só vai se esgotar quando o humano se extinguir. Ainda assim pode ser que algum marciano vagando pelo espaço a desfrute ao escutar o disco de ouro colocado no interior da Voyager, a nave espacial lançada em 1977, e se impressione com Bach interpretado por Glenn Gould ou com Chuck Berry.

 

Em outra conversa que tivemos, você comentou que o Brasil nunca esteve verdadeiramente ligado à ideia de América Latina e que essa falta de identificação não tem a ver com o idioma. O que seria, então?

O Brasil é um país estranho, que de certo modo deslocou a lógica colonial, já que com a vinda da família imperial se tornou a corte, enquanto que a matriz europeia se tornou a filial. Aqui tudo está de ponta-cabeça. Por outro lado, essa proximidade com o colonizador nos coloca numa eterna posição submissa, e aqui o processo de colonização nunca termina, sob essa capa de aparente cordialidade. Somos um povo único, africanindígenamestiço, para dizê-lo num neologismo. A nossa música, tão poderosa, é capaz de traduzir o que somos, mas a literatura também. O problema é que escrevemos numa língua que ninguém entende, nem os portugueses.

 

Isso sem falar que em A Morte e o Meteoro o futuro é narrado por um mexicano. Por que essa opção? Estaria a América Latina na esteira de uma guinada política e econômica ou seríamos, nós latinos, eternamente países do futuro sem jamais um presente concreto?

Sim, enquanto o processo colonial não for interrompido de vez não teremos futuro. O narrador mexicano se deve à simpatia que sinto pelo México, um país que tem diversas semelhanças com o Brasil. Somos países surrealistas, cada qual com sua gama de absurdo particular. No Brasil precisamos de um gesto simbólico que rompa com o passado: assumirmos a língua brasileira, deixarmos de falar o português que está no papel subvencionado pelo acordo ortográfico. Esse gesto também deveria oficializar as línguas indígenas e africanas como oficiais. Será a real independência do Brasil, só assim se quisermos fundar o futuro. E claro, o primeiro presidente dessa República futura deverá ser Aílton Krenak.

 

Além da sua relação com a literatura latina, os autores curitibanos, ou radicados por aqui, estão no seu panteão particular. Leminski, Wilson Bueno, Manoel Carlos Karam, Valêncio Xavier, para citar alguns. Todos eles compartilham com você o gosto por uma literatura inventiva, longe da escrita “certinha”. Qual a importância deles na sua formação como leitor e escritor?

Pode acrescentar Alice Ruiz e Luci Colin nessa lista, sou leitor de ambas. Além de ter colaborado com Alice na edição de Gozo Fabuloso, os contos de Leminski, publiquei Luci na Ciência do Acidente [editora fundada pelo próprio Joca]. Admiro e acompanho muitos ficcionistas e poetas daí, homens e mulheres, incluindo os mais novos. Curitiba ocupa lugar excêntrico na literatura brasileira, e gerou uma tradição literária igualmente excêntrica. A cidade, por extensão o Paraná, equivale ao Uruguai no campo da literatura cisplatina, com tantos autores raros e incomuns.

 

Sei que você vinha de ônibus a Curitiba para encontrar essa turma. Como eram esses encontros? Você mostrava o que estava escrevendo? Chegou a receber conselhos?

Vinha para lançamentos de livros de Valêncio e Karam, que publiquei em minha falecida editora, de vez em quando ficava na casa de um deles. Os encontros eram divertidos, regados a cerveja, feijoada e blagues. Não cheguei a mostrar nada, embora ambos tenham lido meu primeiro romance. Também não lembro de conselhos, não creio que Karam e Valêncio fossem do tipo que aconselha alguém. Mas lembro deles e de nossas risadas.

 

Você é um adepto dos diários. Quem segue seu Instagram pode acompanhar fragmentos daquilo que você escreve. Como você começou a escrevê-los?

Escrevo diários de maneira totalmente desabitual, ao sabor do acaso. Exceto por um deles, no qual observo a vida cotidiana dos meus vizinhos mendigos, moradores de rua nômades que circulam pela Santa Cecília, meu bairro na região central de São Paulo. Essas vidas anônimas precisam ser registradas de algum modo, de outro seria como se não tivessem existido.

 

Dizem que tudo o que um escritor tem a dizer está na sua obra literária. O que está nos seus diários que não está na sua literatura?

O caos que vai pela minha cabeça, que é muito mais desordenada e falha do que qualquer romance.

 

JONATAN SILVA é escritor e jornalista, com passagem pelas redações da Tribuna do Paraná e Paraná Online. Foi editor da revista Mediação, do Colégio Medianeira, e colabora regularmente com o jornal literário Rascunho e o portal Escotilha. É autor dos livros O Estado das Coisas (2015) e Histórias Mínimas (2019).