Ensaio | Roberto Muggiati 23/04/2020 - 16:38
Da Peste Negra ao Coronavírus
Ao longo dos tempos, pandemias e outras doenças sempre inspiraram boa literatura. O que podemos esperar da atual crise?
Roberto Muggiati
Quase 700 anos separam a Peste Negra do Coronavírus. Há coincidências incríveis. A doença que atingiu a Europa em 1343, na Crimeia, foi trazida pelos invasores mongóis que, partindo das estepes asiáticas, contraíram, em sua passagem pela China, o vírus disseminado pela pulga dos ratos negros. Os navios da Rota da Seda, viajando entre a Europa e a Ásia, também propagavam a doença — os suspeitos eram confinados por 40 dias em portos como Veneza, daí a palavra, de origem italiana, quarentena. As vítimas na Eurásia chegariam a 200 milhões; na Europa, um terço da população morreu. O coronavírus também teve sua origem na China, num mercado de peixes em Wuhan que vendia animais vivos, entre eles morcegos e ratos, para consumo humano.
A Peste Negra, ou Bubônica, chegou a Florença em 1348, onde o grande poeta e humanista Giovanni Boccaccio (1313-1375), com a presteza de um repórter, escreveu — entre 1348 e 1353 — uma coleção de cem novelas intitulada Decameron, do grego antigo “dez jornadas”. No livro de Boccaccio, três rapazes e sete moças fogem da Florença infectada e se isolam numa casa de campo no interior da Toscana. Para passar o tempo, contam histórias em rodízio.
Já nos primeiros livros da Bíblia aparecem pestes de todos os tipos. Na sexta das Dez Pragas do Egito, por ordem de Deus, Moisés enche as mãos de cinzas, as atira para o céu e “elas se transformam em tumores que estouram em pústulas nos homens e nos animais [Êxodo, 9:10]”. “... E haverá fome, peste e grandes desgraças em diversos lugares [Mateus, 24:7].” “Quando abriu o quarto selo (...) vi aparecer um cavalo esverdeado. Seu cavaleiro tinha por nome Morte e a região dos mortos o seguia. Foi-lhe dado poder sobre a quarta parte da terra, para matar pela espada, pela fome, pela peste e pelas feras [Apocalipse, 6:7-8].”
Pandemia e epidemia são palavras de origem grega. A Peste de Atenas, vinda da Etiópia em 430 a.C., é citada na Ilíada de Homero, que mostra Apolo, um deus irado, castigando os gregos com pestilências. Cerca de 270 anos depois, a peste aparece na peça Édipo Rei, de Sófocles, e na História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, que descreve a luta dos médicos e a alta mortalidade. “O sofrimento ia para além da capacidade da natureza humana e tanto morriam os fracos, como os de constituição mais forte.”
Muitos historiadores insinuam que a Grande Peste ajudou a promover o Renascimento: a familiaridade com a morte levou os pensadores a se concentrar mais em suas vidas na Terra do que em especulações sobre o pós-morte. A peste bubônica prosseguiu seu caminho avassalador, atingindo a Inglaterra de Shakespeare. Entre 1603 e 1613, surtos regulares mataram cerca de um décimo da população de Londres. Com os teatros fechados, o Bardo se confinou e escreveu algumas de suas melhores — e mais sombrias — peças: em Rei Lear morre todo mundo. Em Macbeth, um personagem lamenta que naqueles dias iam-se “as vidas de homens de bem antes de fenecerem as flores dos seus chapéus”. O famoso monólogo de Hamlet menciona “os milhares de choques naturais herdados pela carne”. Em Romeu e Julieta, dos anos 1590, trancado à força em quarentena, Frei João não leva a Julieta o recado de Romeu que salvaria os amantes da morte. Em A Tempestade, Caliban, o irado escravo de Prospero, Duque de Milão, o amaldiçoa: “Que a peste vermelha vos carregue!”.
O pico da epidemia em Londres ocorreu em 1665, o ano da Grande Peste, que em 18 meses matou 100 mil pessoas, cerca de um quarto da população da cidade. Daniel Defoe, o criador de Robinson Crusoé, tinha então 5 anos e só em 1722, aos 62, publicou seu relato em forma de romance, Um Diário do Ano da Peste — assinado com as iniciais H.F., provavelmente de Henry Foe, tio do autor, a cujos diários Defoe teria recorrido. Fez ainda pesquisa de campo como um moderno repórter, o que tornou seu livro mais verossímil do que as descrições do memorialista Samuel Pepys, feitas em 1665.
Em 1842, Edgar Allan Poe publicou A Máscara da Morte Vermelha. O Príncipe Prospero e mil aristocratas se refugiam da peste numa abadia fortificada. Para espantar o tédio, organizam um baile de máscaras. De repente, invade a festa uma figura misteriosa, coberta por uma mortalha preta salpicada de sangue: é a Morte, que aniquila a todos. A inspiração é clara, ainda mais que A Tempestade, de Shakespeare, começa com um baile de máscaras.
No festival de literatura pestilencial que assola a mídia, senti uma grave omissão, a da tuberculose — a Musa Branca ou o Mal du Siècle — que, mesmo não sendo uma epidemia, matou milhares, de todas as classes sociais, do início do século XIX à metade do século XX. Vários escritores contraíram a doença: os ingleses John Milton, Lord Byron, Shelley, Jane Austen; os alemães Goethe, Schiller, Kant; os russos Tchecov, Dostoievski, Gorki, os franceses Descartes, Musset, Balzac, Camus; o suíço Jean-Jacques Rousseau; os americanos Walt Whitman, Ralph Waldo Emerson, Edgar Allan Poe, que perdeu a mulher, Virginia, a mãe, a madrasta e o irmão para a doença.
Mimi, a heroína da ópera de Puccini, La Bohème, sofre de tuberculose; e também Violeta, em La Traviata de Verdi, inspirada no romance A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho.
Thomas Mann acompanhou a mulher doente em sua internação num sanatório de Davos Platz, na Suíça. A experiência o levou a escrever A Montanha Mágica, um dos romances mais significativos do século XX, em que a doença é uma metáfora da vida. O poeta Manuel Bandeira se tratou num sanatório suíço em Clavadel, antes de estourar a Primeira Guerra. A tuberculose inspirou-lhe um poema notável, “Pneumotórax”:
Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
— Respire.— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino
Antes de Bandeira tivemos no Brasil uma verdadeira Sociedade dos Poetas Mortos (de Tuberculose): Castro Alves, aos 24 anos; Casemiro de Abreu, aos 23; Álvares de Azevedo, aos 21. Entre golfadas de sangue e poesia, todos cantaram a doença, Álvares de Azevedo, por exemplo:
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida
À sombra de uma cruz e escrevam nela:
Foi poeta, sonhou e amou a vida.
Quem visita a região fluminense de Petrópolis, ainda pode ver, na praça central de Nogueira, a antiga estação ferroviária. Os trens da Leopoldina viajavam lotados de pacientes para os sanatórios da Serra. O escritor Nelson Rodrigues teve sua primeira internação aos 23 anos em Campos do Jordão, São Paulo. Conta Ruy Castro em O Anjo Pornográfico, que, instado pelos pacientes do Sanatorinho Popular, Nelson escreveu um esquete cômico sobre eles mesmos. O sucesso quase virou tragédia: levados a gargalhadas irresistíveis, os doentes sofreram violentos acessos de tosse que por pouco não se transformaram em hemoptise.
Em 1945, um filme causou frisson nas plateias. Em À Noite Sonhamos, uma biografia romanceada de Chopin (Cornel Wilde), o fim prematuro do pianista polonês, que morreu de tuberculose aos 39 anos, se anuncia em tecnicolor quando gotas de sangue caem sobre as teclas do piano.
Os cantores de blues, uma raça itinerante, foram os músicos mais atingidos pela tuberculose na primeira metade do século XX e exorcizaram a doença em suas canções. Os sambistas brasileiros também sofreram pesadas baixas, como os escritores, atores e jornalistas chegados à vida boêmia. O exemplo mais notório é o genial Noel Rosa, que morreu de tuberculose em 1937, aos 26 anos.
Não podemos esquecer o cólera — a sétima pandemia ocorreu no Brasil entre 1991 e 1996. Em épocas e locais diferentes, a doença rendeu dois excelentes romances — O Amor nos Tempos de Cólera (1985), de García Marquez, e O Véu Pintado (1925), de Somerset Maugham — e a novela de Thomas Mann Morte em Veneza (1912), todos levados ao cinema (o de Maugham com três versões, a de 1934 estrelada por Greta Garbo). Morte em Veneza ainda foi transformada em ópera pelo britânico Benjamin Britten.
Nos primeiros anos da República, o Brasil viveu uma onda de doenças: a reincidência da febre amarela e da varíola e a expansão da malária e da tuberculose, já tradicionais na cidade, elevando a taxa de mortalidade para 52 pessoas em cada mil habitantes. A peça de Artur Azevedo, O Tribofe, estreada em junho de 1892 no teatro Apolo, contém este diálogo típico do humor negro carioca, assimilado pelo dramaturgo maranhense:
(Os personagens cumprimentam-se e prosseguem a conversa.)
Febre Amarela — Eu parto.
Varíola — Venho substituir-te. Foste feliz?
Febre Amarela — Felicíssima.
Varíola — Que tal a Inspetoria de Higiene?
Febre Amarela — Boa.
Varíola — E a Intendência Municipal?
Febre Amarela — Ótima.
Varíola — Ainda bem. Até a vista.
Febre Amarela — Sê feliz.
No final da Primeira Guerra, o mundo foi vitimado pela Influenza, ou Gripe Espanhola. De janeiro de 1918 a dezembro de 1920, infectou 500 milhões de pessoas, cerca de um quarto da população mundial. Atropelou até as estatísticas, mas o número de mortos estaria acima dos 50 milhões, uma das epidemias mais mortais da história. Foi a primeira de duas pandemias causadas pelo influenzavirus H1N1 — a segunda ocorreu em 2009. A gripe foi trazida ao Brasil por um navio procedente da Europa, propagou-se rapidamente e matou dezenas de milhares de pessoas, entre elas o Presidente da República reeleito, Rodrigues Alves.
Pedro Nava, com 15 anos na época, escreveu em suas memórias Chão de Ferro: “Synochus catharralis era o nome de uma doença epidêmica clinicamente individualizada desde tempos remotos e que periodicamente, cada vez com mais extensão, assola a humanidade. Esta extensão está associada à velocidade sempre crescente das comunicações. Seu contágio já andou a pé, a passo de cavalo, à velocidade de trem de ferro, de navio e usa, nos dias de hoje, aviões supersônicos — espalhando-se pelo mundo em dois, três, quatro dias”.
Nelson Rodrigues, com seis anos na época, morador de Aldeia Campista, Zona Norte do Rio, gravou na memória o que viu e só foi contar 50 anos depois numa série de crônicas para o Correio da Manhã:
A gripe foi, justamente, a morte sem velório. Morria-se em massa. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos. Era em 1918. A morte estava no ar e repito: difusa, volatizada, atmosférica, todos a respiravam.
De repente, passou a gripe. Ninguém pensava nos mortos atirados nas valas, uns por cima dos outros. Lá estavam, humilhados e ofendidos, numa promiscuidade abjeta. A peste deixara nos sobreviventes, não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. Eu me lembro de um vizinho perguntando: ‘Quem não morreu na Espanhola?’.
E a literatura do coronavírus, o que nos reserva? O futuro próximo é imprevisível: a saúde, a economia, a própria sobrevivência de cada um de nós. Cultura numa horas destas? Sim, criar e imaginar é tão vital quanto respirar e, como vimos, paradoxalmente a doença faz bem à literatura. Scherazade contava uma história toda noite para poder viver mais um dia. Mesmo em regime de home office, editoras do mundo todo já estão trabalhando com os best-sellers do Day After. Um dos mais comentados é The End of October, romance do americano Lawrence Wright sobre um microbiólogo em meio a uma pandemia global. Da China — do local exato onde se originou a pandemia — já está chegando a editoras ocidentais o Diário de Wuhan, uma coletânea de textos postados na internet pela escritora Fang Fang, romancista conhecida, descrevendo o pavor, o desespero e a revolta na cidade isolada. A autora recebeu severas críticas do governo, que a acusam de “traição”, embora ela deva encaminhar os lucros do livro às vítimas da doença e aos sanitaristas que a combatem.
Outros projetos certamente estão em processo de incubação. Não creio em nenhuma distopia, pois já a estamos vivendo na carne. Provavelmente teremos histórias intensas calcadas em experiências pessoais, resultantes do confronto do homem consigo mesmo e com a dura realidade de sua alma — mais do que nunca — mortal.
ROBERTO MUGGIATI é jornalista e escritor. Trabalhou em veículos como a BBC de Londres, Gazeta do Povo e Senhor. Editou as revistas Manchete, Veja e Fatos e Fotos. É autor dos livros Mao e a China (1968), Improvisando Soluções (2008), Rock — O Grito e o Mito (1973) e A Contorcionista Mongol (2000).