Ensaio | Julie Fank 30/03/2021 - 14:25
Não sou tuas musa
Escrever sobre a produção de literatura por mulheres exige, inevitavelmente, que se fale sobre um campo que não é mais regido pelas mesmas leis e parâmetros. O senhor todo mundo está em falência, a literatura aboliu as fronteiras rígidas e o hibridismo é parte fundamental de uma nova configuração estética escrita por outros corpos
A palavra criação apanha um comboio em movimento e alcança estatura quando finalmente topa com a literatura e a arte a passos largos. Antes, sozinha, à luz da religião e da mitologia, convivia atravessada pelos arabescos bíblicos e pelas musas improváveis, ranços dialéticos que nos acompanham, fantasmas órfãos até hoje. Num dicionário conhecido de composição literária, ao lado da palavra musa, lá estão as seguintes definições: por extensão, tudo quanto pode inspirar um poeta e a correlação adjetiva inspiradora. Na correlação verbal, a pista: ser, tornar-se, revelar-se. A partícula apassivadora nos conta que ser musa não exige muito de quem o é. É uma atividade passiva, aqui. Para o poeta, no entanto, ela é sua prescrição, seu sopro, sua fonte que nunca seca.
O senhor todo mundo e suas licenças
Do lado de cá, a sensação de hesitação diante das páginas a serem escritas-preenchidas encosta a cabeça em nossos ombros e pesa como um dicionário, como uma enciclopédia, como uma biblioteca - esses livros todos pleiteando o posto de terem chegado primeiro, encostados à porta da maternidade para saber quem é o próximo a dizer a que veio. A responsabilidade é toda nossa, da autora por trás das teclas. Não há primeira pessoa do plural aqui, muito menos um espaço cativo de uma coletividade demarcada por um tipo só - ou o senhor todo mundo, como diria Eric Landowski, semiótico canadense que nos dá um termo para o que seria o personagem clássico dos romances de autoficção brasileira já mapeado pela pesquisadora Regina Dalcastagné em 2012: um personagem protagonista homem, heterossexual, pertencente a uma classe média alta intelectualizada e morador das grandes cidades - é desse personagem o privilégio de carregar o coro. É para quem escreve esse personagem que se reservam as primeiras cadeiras do cânone, do paideuma feito por todos os escritores-críticos que ocupam-se de listas exemplares a escritores que moldaram a literatura considerada clássica, grande, entre outros adjetivos elogiosos. Nas omissões e nas negligências dessas listas de escritores fundamentais da alta literatura, moram as escritoras desconhecidas, quase sempre à margem de uma espinha dorsal masculina tentando fazer uma literatura que reivindica uma autonomia da própria margem ao mesmo tempo que tenta se inserir nas vértebras já tão bem posicionadas de uma historiografia literária cheia de silêncios e silenciamentos.
É a conversa ambígua a respeito do que se fala sobre gênero, textualmente, sociologicamente que abre as portas para um reconhecimento de outros contornos possíveis para as narrativas produzidas num entrelugar latino-americano carente de pertencimento. O diálogo, o espaço – harmônico ou não – para os elementos heterogêneos de todas as linguagens mistura performance, artes visuais, literatura. E corre riscos ao se inscrever como um gênero não domesticável. Há uma tentativa de escrita de si mascarada de escrita de todos porque é necessário colar as etiquetas. Um ato egóico criador nos impede de solapar essa fronteira contraditória entre o viver-em-linguagem e o escrever-para-si. E é nessa travessia e vivência que a escritora em atividade no Brasil contemporâneo traça suas linhas, as linhas sobre uma outra e sobre uma si mesma inescapável. Mas como ser multidão e múltipla sendo um ser que está à margem de um ser que é considerado centro e padrão do mundo?
É certo que as artes como são tidas hoje têm sua raiz na Grécia Antiga, atribuídas todas à inspiração pelas musas, aquelas, do Olimpo. Das filhas de Mnemosine, deusa da memória, e Zeus, o deus dos deuses, cada uma promoveria inspiração em uma área específica: Calíope, o épico, Clio, a história, Erato, a lírica, Euterpe, a música, Melponene, a tragédia, Polymnie, a escrita e a pantomima, Terpsichore, a dança, Thalia, a comédia, Urania, a astronomia. É Hesíodo, na Teogonia, que primeiro enumera e dá nome às nove musas. E se adotarmos a técnica como este pilar central dentro da construção textual – literária e artística –, facilmente repetível, uma força, nada mística, do texto, a musa vira uma caricatura forçada do que deveria ter ficado no imaginário renascentista. A mulher escritora, desde há muito, ao tentar se inscrever nesse cânone sempre tido como território do senhor todo mundo, se apaga. Ao tentar escrever, é apagada. Pelos pseudônimos, antes necessários, pelo mercado, pela historiografia, por necessidade do casamento como instituição burguesa opressora. Ainda que ambicione a realização deste texto para além do modelo posto, converte sua missão em uma fratura reversa, descolada de si e do outro. Não há périplo. Não há começo. Não há fim. E porque todas as histórias são as mesmas, desconfio que haja pouca probabilidade de terem sido as musas a soprarem todas elas.
As minhas, as suas, as nossas histórias
Condensar, num texto ficcional, características de pluralidade, indeterminação, fragmentação, ruptura e descontinuidade desses sujeitos antes títeres e reféns do sistema, opressor em espaço e tempo, é, antes de um processo compulsório, uma consequência do viver na contemporaneidade, vivência híbrida em processo contínuo de desconstrução e invenção, uma maneira de existir no discurso, o que impacta nos modos de narrar, nos modos de representar, nos modos de criar. O híbrido, em sua forma, em seus materiais e em seu conteúdo, passa a ser um simulacro, uma tentativa de resposta, um tempo-espaço onde, despretensiosamente, a escritora contemporânea mediadora-artista está. Não se trata de uma, como sugere Leila Perrone-Moisés, em seu Altas Literaturas (1998), "liquidação sumária da estética, do cânone e da crítica literária". Contraditório, o gênero que não é gênero, a pulular em manifestações menos lineares e institucionalizadas da literatura, seja na internet ou nos circuitos alternativos ao mercado das grandes editoras, nas redes sociais ou nos coletivos criados por mulheres, grande parte das vezes feitas por escritoras que mantém a literatura viva para além dos redutos intelectualmente aristocráticos, é esse gênero, que que abarca vários dentro de si, que é inclassificável. É o Minotauro, que não sabemos se é touro ou humano, é o centauro Quíron que substitui Prometeu no Cáucaso, é a mescla de seres, de textos, de linguagens, de suportes. O gênero híbrido, ao mesmo tempo que é uma resposta contida em nosso tempo, reflexo situacional, comporta uma solução criativa para os problemas da linguagem no que cerne às questões de identidade e precisa ser uma escolha estética. É ali que está o espaço para a invenção, para a reinvenção e para a autocrítica, tão própria de uma sujeita fragmentada, sobrevivente da pós-modernidade, vivente de um tempo ainda sem nome. É no híbrido que reside a identidade em trânsito, sempre transformada, transmutada, alternada, convertida, metamorfoseada, imprevisível e antropofágica.
Ainda que não se possa se prevenir acerca dessa modalidade lábil de gênero, há, hoje, uma consciência mais lúcida em relação a sua enunciação como posição estética, mas também política. E, por isso, sem espaço definido num mercado que ainda insiste em falar em literatura feminina, posto que os personagens das histórias que nascem, crescem e se reproduzem à margem, seguem contra a pasteurização. Avançamos? Gostaria de dizer que sim. A realidade é que a luta pelo poder dentro da literatura, tal qual o campo de Bordieu, já está dando seus últimos suspiros, mas ainda há quem não queira largar o osso. A crítica argentina Josefina Ludmer canta essa bola há algum tempo falando em uma proposta de Literatura Pós-autônoma: para ela, fica evidente que, a partir da década de 60 e 70, as classificações literárias passam a responder a outra lógica e outras políticas e, portanto, só poderiam funcionar formas, classificações, identidades e divisões numa esfera que é concebida como autônoma. Quando isso acaba, é nítido que o que está em jogo é o poder literário e a definição de poder na literatura, colocada abaixo a partir do momento em que não se reserva à aristocracia intelectual do eixo das grandes cidades o protagonismo na história e nas histórias.
Recupero a análise que Jacyntho Lins Brandão faz dos trechos da Teogonia, de Hesíodo, e Odisseia, de Homero para pontuar uma última questão relativa à nossa inevitável herança grega: como a ideia de criação está atravessada pelo dedilhado das narrativas gregas sobre a memória. Se entendemos que nem as musas, nem o sistema de educação ética da memória na Grécia solapam os ecos das epopeias, estou propensa a achar graça que a dolorosa experiência do herói que esteja sujeito ao canto da sereia, esteja também, sujeito a uma experiência de sumissão às vontades de uma musa “desregrada, enlouquecida, sem limites em sua operação, uma ampliação funesta do canto que supõe uma produção infindável e mortífera, porque prescinde totalmente da operação do poeta”. (2015). É Hesíodo que propõe uma leitura crítica a Homero e muda a perspectiva das coisas: a musa é a própria lítote, ela diz também pelo não dito: porque são híbridas, porque são, na lógica cosmogônica, junção de Zeus e Memória, não são só memória, são também não-memória e aqui Brandão atenta para o que está em jogo aqui: um conceito de mimese que afeta a própria arqueologia da ficção. Quando Josefina Ludmer registra que as políticas da memória são também políticas da justiça, da identidade, da filiação e do afeto, ela nos lembra que a memória coletiva e pública é também o balizador do que é tido como à altura do cânone e, portanto, digno de aplauso.
O mergulho solitário no chão torto da criação tem sua razão de ser, portanto. A pontuação dos versos de Hesíodo é decisiva na ideia de memória e repertório - e claramente um afeto pela não-totalidade da memória a partir do entendimento das Musas: se as Musas fossem só memória, sem o esquecimento e a pausa, não deixariam de ser o mesmo que as Sereias: deusas fatais. Ora, ao unir-se à Memória, Jacyntho recupera, mesclando-se sexualmente com ela, Zeus nela introduz-se e introduz nela algo diferente (que a fecunda), o que, tratando-se de uma deusa cujo nome revela um atributo unívoco bem estabelecido, só pode ser não-memória. As Musas, portanto, não são exclusivamente memória, mas o resultado dessa mistura: mais exatamente, atentando nas próprias palavras de Hesíodo, elas são fruto da memória (o útero de Mnemósine) e da pausa e do esquecimento (sêmen de Zeus).
A voz das sereias também acaba
A rouquidão que balbucia essa irregularidade ética que é acreditar no amortecimento da memória como um cântico hipnótico tece uma espessa paleta de cores que tingem esse estatuto distorcido e esburacado da criação que ativa os mesmos personagens. A nós, escritoras, o confessional e a autoficção não são somente o que interessa. A ficção que já deveria ser cânone porque desestrutura o que está posto, sim. A escritura cifrada, o desalento causado por figuras centrípetas e centrífugas, estratagemas olímpicos para mimetizar grandes estratégias narrativas que colocam o mundo em suspensão, uma válvula desregulada que transforma o vivido em artimanha ilusionista esquecem do poder da memória a partir de suas próprias raízes míticas. Se não pudéssemos esquecer o cânone, aí, sim, estaríamos condenadas. Que dádiva, e perdão por usar de substantivos divinos, que a memória seja ruína de um mapa ilegível. Recorrer somente às narrativas icônicas como se fossem delas as costelas que permitem as narrativas femininas, como aquela personagem que, lembrando só do passado, não é capaz de ter consciência do presente e do tempo que a atravessa. Não havendo consciência do presente, não se tem consciência do passado e não se tem consciência do futuro porque a espiral é uma só. É o próprio padre do balão que levanta voo no nevoeiro com a intenção de chegar à torre dos céus, talvez a mítica Babel, mas acaba atingido pela agulha de Notre-Dame, um texto pontiagudo estilhaçado pelo incêndio de uma torre de fortim. Fomos destituídas de nossas escolhas políticas pelo próprio mito do herói, não podemos continuar a creditá-lo. O perigo da realidade não é a provisoriedade das narrativas, mas sua própria tentativa de permanência.
Sereios, deuses fatais, e musos, a nos soprar histórias: onde estão?
Mais ou menos como as vozes que perpassam o conceito de polifonia bakhtiniano, a ideia de deslocamento é que, a partir do posto de observação privilegiado do centro para o periférico, não seria possível transmitir verdade, a verdade é um pilar da experiência. Um deslocamento em direção ao outro, um movimento ficcional em direção a uma cena que condensa e cristaliza uma rede múltipla de sentidos. Arrisco-me a ampliar a ideia de deslocamento para além da alteridade como condição literária, como um necessário se colocar a pensar a respeito do outro e retratar essa margem tão carente de representatividade, mas ouso dizer que não temos aqui senão uma problematização que corre o risco de ser sociológica e não literária. Ele estaria partindo da ideia de que toda a sua construção literária não olha para o outro? A literatura, a ficção são justamente o espaço de exercício de sermos o outro. Se o espaço imaginário é o único lugar de transmigrância identitária, é ali que as imagens estereotípicas, com um tipo de homem idealizado, nomeado por Eric Landowski (2002) como o "senhor todo mundo", essas obras com efeito de verdade não criam mais ressonância. É uma areia movediça o campo identitário desde que a ferida se abriu. E é também aí que se produz o que de mais interessante se viu na literatura contemporânea dos últimos anos.
O homem, esse ser em deslocamento, um indivíduo em instabilidade, em uma humanidade em ordenamento, não pode alojar mais uma ideia de proteção, de fixidez, de abrigo. É quase uma obrigação estética olharmos para essas identidades fraturadas que constituem um descentramento de nós mesmos para que a escrita como ética faça sentido porque feita por outros corpos, por outras identidades, por outras narrativas. Antes, uma voz hierárquica nutria a intelectualidade de conceitos e material ficcional e artístico, hoje, o espaço fronteiriço está ocupado por uma voz que já não se sente em casa, que nasceu deslocada de um centro porque nunca a ele pertenceu e pretende reinaugurar uma imagem estética pautada numa outra configuração da experiência e numa consequente reelaboração da ficção e do próprio estatuto literário - um estatuto pós-autônomo. O híbrido por si só minimiza as diferenças. É na mescla que reside a força criadora do século XXI: um mapa rasgado e reconstruído com cola branca e paciência cujas camadas não se conciliam, uma literatura quebradiça, não porque frágil, sim porque inclassificável. Essas fronteiras quebradiças são o calcanhar de Aquiles de tudo aquilo que se chama arte hoje: seu caos e seu trunfo. As lentes não estão embaçadas, os limites é que mudaram de função - e aí o exílio da linguagem, a negação do que está posto, do que é definido como cânone, se configura como oportunidade de redefinição do tempo, do espaço e da nossa própria ideia de sujeitas-leitoras, sujeitas-escritoras, sujeitas-artistas.
A arte é o abrigo, ainda que nem seja um lugar. O deslocamento entre linguagens passa a permitir o que foi encarado como traição: a contaminação, a alta assimilação de um texto em outro, o contágio, a permeabilidade do intertexto, do arquitexto, do hipertexto, de um texto em performance, uma escrita e uma literatura desterradas, nas quais o exílio, de um território ou de uma linguagem, mas principalmente de um sistema que precisa reconsiderar a órbita em torno da qual se organiza um sistema. Não é preciso reafirmar que a terra é redonda, mas quantas vezes mais precisaremos reafirmar que todo um sistema patriarcal tem repetido insistentemente, tal qual um interfone com um botão pressionado porque quebrado, as narrativas de sempre? Se chegamos até aqui juntos, com as cicatrizes coloniais e os resquícios de cânones pouco representativos, a pergunta inevitável resiste em saber o que vem depois dessa discussão. Musas e sereias aprenderam com a academia e resolveram reivindicar os créditos e deixar de ocupar altares. Em cada gesto com a caneta, os narradores do ontem ficariam surpresos com tantas doses de lucidez.
Julie Fank é escritora, artista visual e diretora-fundadora e professora da Esc. Escola de Escrita. Graduada em Letras Português-Inglês, Mestra em Literatura Comparada (UNIOESTE-PR) e Doutora em Escrita Criativa (PUCRS), é autora do texto-instalação Cemitério de Azulejos, do livro de artista Embaraço (2016), do livro-exposição A história da Cebola (2019) e é cronista do Jornal Plural.