Ensaio | Gisele Barão 17/03/2020 - 16:08

O chamado à ação


Morto há 60 anos, Albert Camus deixou uma obra marcada por temas que inquietaram a humanidade no século XX — e ainda hoje nos rondam


Gisele Barão

 

E m uma viagem à França, a cantora, compositora e escritora americana Patti Smith recebeu um convite da filha de Albert Camus, Catherine, para conhecer a antiga casa da família em Lourmain, e lá vivenciou uma espécie de epifania. Durante uma hora, ela folheou o manuscrito de O Primeiro Homem, obra inacabada do escritor franco-argelino encontrada depois do acidente de carro que o matou em 4 janeiro de 1960, aos 46 anos. O relato dessa visita está nas páginas finais de Devoção (Companhia das Letras, 2019): “Era possível perceber uma missão concentrada e um coração acelerado impulsionando as últimas palavras do parágrafo final, as últimas que ele escreveria”, escreveu Patti. Comovida ao ter em mãos as anotações originais de uma de suas influências na literatura, a cantora conclui que o grande poder de uma obra singular é “o chamado à ação”. Nós escrevemos, ela diz, “porque não podemos somente viver”.

Escritor, jornalista, ensaísta, dramaturgo, filósofo, integrante da resistência francesa contra a ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial, Albert Camus deixou uma obra extensa que nos estimula a pensar a condição humana tanto na dimensão individual quanto na coletiva e política. No Brasil, a Record reeditou 11 de seus livros entre 2017 e 2018, a maioria com tradução de Valerie Rumjanek. Em 2019, quando completaram-se 70 anos da vinda dele para o país, a mesma editora lançou Camus, O Viajante, com seus diários de viagem. Além disso, a edição brasileira do livro A Armadilha, de Emmanuel Bove (Mundaréu, 2019), retrata a tensa atmosfera social durante o domínio nazista e tem como conteúdo complementar alguns editoriais escritos por Camus para o Combat — jornal clandestino do período da militância na França. Agora, a Record pretende colocar mais lançamentos no mercado: estão previstas as publicações de Núpcias, O Verão e Correspondência: 1944-1959, que reúne cartas trocadas entre o escritor e a atriz Maria Casares, com quem teve um relacionamento.

O autor de clássicos como O Estrangeiro e A Peste soube articular como poucos a literatura e o pensamento filosófico. “Camus tinha especial afeição pela literatura enquanto forma de filosofia, o que põe em prática em peças, romances e em seus magistrais comentários sobre a visão de mundo que se depreende das obras de Melville, Kafka, Dostoiévski, entre outros”, explica o jornalista Caio Liudvik, doutor em Filosofia com tese sobre o escritor. Os textos de Camus expõem temas que inquietaram a humanidade no século XX e que, em diferentes esferas e contextos, ainda hoje nos rondam: absurdo, solidão, autoritarismo. Ter acesso a essas produções, apesar das marcas históricas, também é uma oportunidade de olhar para os dias atuais e, quem sabe, vivenciar nosso próprio “chamado à ação”.

 

Camus
O escritor e filósofo franco-argelino Albert Camus. Foto: Reprodução

 

No romance A Peste, de 1947, que narra a história de uma cidade assolada por uma epidemia — lido também como metáfora da ocupação nazista na França durante a guerra —, a impressão é de que a doença pode voltar a qualquer momento: “[…] o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada”. Para o jornalista e crítico literário Manuel da Costa Pinto, tradutor e organizador de obras de Camus no Brasil, esse e outros textos podem se encaixar em contextos diferentes, apesar das demarcações históricas e geográficas. Mas não necessariamente anteciparam os conflitos que vivenciamos hoje. “As polarizações ideológicas atuais, marcadas pela xenofobia e pelo ódio à diferença, à alteridade, são ditadas por um populismo fruto da precarização do trabalho e dos vícios do sistema político democrático globalizado — algo bem distante do contexto em que havia ideologias fortes, como fascismo, marxismo-leninismo ou mesmo o liberalismo colonialista / imperialista do pós- -guerra. A obra de Camus não tem relação com questões identitárias e religiosas que pareciam ultrapassadas à sua época, e que retornaram de modo surpreendente em pleno século XXI”, explica.

Já Caio Liudvik vê atualidade na perspectiva de temas presentes em ensaios e romances do escritor, como a morte (suicídio e assassinato, por exemplo) e a intolerância. “Camus nos ajuda a fazer frente às epidemias que nos ameaçam sempre de novo, nos prepara para suportar os infortúnios sem abandonar a lucidez, sem apelar para covardias como a de um professor de teologia que vi outro dia na televisão insinuar que o mundo ‘paga’ com catástrofes como o novo coronavírus por sua indiferença em relação a Deus — discurso que repete quase que literalmente o do padre Paneloux em A Peste”, analisa. Liudvik acredita que a leitura de Camus é cada vez mais urgente em meio a radicalismos. “Épocas como a dele, e como a nossa, parecem favorecer não os que pensam melhor, mas os que gritam mais alto, os que são mais grosseiros, mais simplistas. Quem não se enquadra nisso passa por ‘isentão’, o que ele nunca esteve nem perto de ser, vide a coragem com que arriscou a reputação, a liberdade e até a própria vida por uma solução ponderada para a sangrenta guerra de descolonização do seu país natal.”

Camus ficou com fama de idealista e conservador depois de romper com os existencialistas da década de 1950. As críticas ao ensaio O Homem Revoltado (1951) foram o principal motivo para a briga com filósofo Jean-Paul Sartre, de quem tinha se aproximado em 1943, na luta contra a ocupação nazista. O livro, em que o escritor franco-argelino defende a ética acima da eficácia na política, não agradou aos membros mais radicais do grupo. Aliás, apesar de compartilhar pressupostos com essa corrente, Camus negava o título de existencialista e mesmo de filósofo.

 

O jornalista Manuel da Costa Pinto explica que a polêmica em torno da publicação de O Homem Revoltado marcou profundamente a recepção da obra de Camus após sua morte, mas não o enquadrou como um conservador ou reacionário. Na verdade, suas posições eram resultado de sensibilidade artística e pensamento filosófico difíceis de definir em correntes pré-estabelecidas. “É verdade que pensadores conservadores tentaram cooptar Camus para seu lado, mas isso é incoerente com o modo como ele articulava seu pensamento”, diz. Hoje, os especialistas o interpretam como alguém que foi, de certa forma, isolado intelectualmente por insistir em um humanismo sem concessões. Na visão do pesquisador Caio Liudvik, a questão central no pensamento de Camus é a defesa da liberdade e da igualdade que, se não andarem juntas, viram álibi para a opressão em diferentes níveis e posições políticas.

 

homem revoltado
A peste
o viajante

 

Uma descoberta
Graças a uma pesquisa do historiador francês Vincent Duclert, um texto inédito de Camus veio a público neste ano. Escrito em 1943 a pedido do Comitê Francês de Libertação Nacional, o artigo datilografado em três páginas estava nos arquivos do general Charles de Gaulle, líder da resistência francesa durante a ocupação nazista. “De um Intelectual que Resiste” foi publicado pelo jornal francês Le Figaro e incluído no livro Camus, des pays de liberté, lançado em janeiro pela editora francesa Stock. Apesar de não ter assinatura, a autoria foi confirmada por várias fontes, incluindo a filha do escritor, Catherine Camus, pois tem características dos editoriais do jornal clandestino Combat, que Camus editava.

Produzido num período de forte tensão política, o texto evidencia a angústia desse contexto e mostra que a maior preocupação de Camus era como a sociedade iria se refazer após a libertação da França ocupada pelos nazistas. O escritor diz que a justiça e a liberdade são os valores essenciais para reconstruir o mundo e que uma nação morre quando suas elites se dissolvem — e explica, no entanto, que está chamando de elite o povo e a inteligência. Em outro ponto, Camus utiliza o termo “elite” para fazer referência a outro grupo, o daqueles que “se colocam como testemunhas e não foram mais do que prudentes”. Aqui, na análise de Manuel da Costa Pinto, ele se refere a pessoas que foram omissas ou que até colaboraram com a ocupação nazista. Esse tipo de elite, para Camus, deveria “aceitar a ideia da desaparição”. Para o jornalista, “De um Intelectual que Resiste” mostra que Camus já previa as críticas que viriam com a publicação de O Homem Revoltado e também a divisão entre intelectuais e homens públicos ao fim da Segunda Guerra

A obra de Camus tem diferentes ciclos. Aos 30 anos de idade, época em que já era militante na França e editava o jornal Combat, ele já havia publicado O Mito de Sísifo (1941) e O Estrangeiro (1942), livros que representam suas reflexões no plano subjetivo, sobre a falta de sentido da existência, a solidão, o suicídio. Já A Peste (1947) e O Homem Revoltado (1951), por exemplo, são responsáveis por estender o absurdo para uma dimensão coletiva e histórica, sinalizando que não há sociedade sem contradição.

 

Ou seja, assim como nos revoltamos contra nossa condição absurda — origem da metáfora de Sísifo, condenado a rolar eternamente montanha acima uma pedra que acaba sempre caindo —, também nos revoltamos contra absurdos históricos, mesmo conscientes de que jamais os eliminaremos totalmente, como explica Costa Pinto. “Essa revolta sem ilusão é uma espécie de antídoto contra as soluções radicais, contra a legitimação do assassinato político ou dos sistemas totalitários em nome de uma eficácia que confia numa justiça terrena absoluta — pois matar e oprimir em nome dessas ideologias utópicas consistiria numa instauração do absurdo no plano da história”, explica.

 

Epidemia

No início de março, a epidemia do novo coronavírus impulsionou as vendas de uma das principais obras do escritor franco-argelino. Na Itália, um dos países europeus mais afetados pela doença, A Peste saltou para a lista de mais vendidos em plataformas de comércio eletrônico como a Amazon na categoria dos clássicos (e uma situação semelhante aconteceu com Ensaio Sobre a Cegueira, de Saramago). Lá, milhões de pessoas estão em quarentena, assim como ficaram isolados os personagens infectados na cidade de Orã, onde se passa a história de Camus. Na França, quase 9 mil cópias de A Peste foram vendidas nos dois primeiros meses deste ano, quase metade do total vendido ao longo de 2019, segundo o jornal italiano La Repubblica. Esse é um indicativo de que os temas em evidência no noticiário estão levando os leitores a revisitar os clássicos.

O Brasil em Camus

Enquanto escrevia O Homem Revoltado, Camus viajou pela América do Sul e conheceu o Brasil em 1949. Está tudo registrado em cadernos de anotações, reunidos no livro Camus, O Viajante, lançado no ano passado. Além de elogios a intelectuais e artistas como Manuel Bandeira, Murilo Mendes e Dorival Caymmi, seus diários têm observações sobre as cidades (definiu São Paulo como “cidade estranha, Orã desmedida”, em referência à cidade argelina onde se passa A Peste) e o povo brasileiro. Camus visitou São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Olinda, Salvador, Porto Alegre e Iguape — mais tarde, a cidade ambientou o texto “A Pedra que Cresce”, ficção inspirada na viagem.

O olhar do escritor durante a estadia em nosso país mistura encantamento, tédio, surpresa e sensibilidade. “O Brasil, com sua fina armadura moderna colada sobre esse imenso continente fervilhante de forças naturais e primitivas, me fez pensar num edifício corroído cada vez mais de baixo para cima por traças invisíveis. Um dia, esse edifício desabará, e todo um pequeno povo agitado, negro, vermelho e amarelo espalhar-se-á pela superfície do continente, mascarado e munido de lanças, para a dança da vitória”, escreveu.

A conferência “O Tempo dos Assassinos”, que apresentou por aqui a convite do Departamento de Relações Culturais do Ministério das Relações Exteriores no Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, é entendida como um trabalho preparatório para O Homem Revoltado. Em alguns trechos, a força de suas palavras, mesmo fazendo referência a Europa do século XX, é especialmente impactante hoje. “Não existe vida sem diálogo. E, na maior parte do mundo, o diálogo é substituído hoje em dia pela polêmica, a linguagem da eficácia”, diz ele. E completa: “Tampouco existe vida sem persuasão. E a história de hoje só conhece a intimidação, a política da eficácia. Os homens vivem e só podem viver com base na ideia de que têm algo em comum onde sempre podem se encontrar. Mas nós descobrimos isto: alguns homens não podem ser persuadidos. Era e é impossível para uma vítima dos campos de concentração explicar aos homens que a aviltam que não devem fazê-lo. É que estes já não representam homens, mas uma ideia elevada à temperatura da mais inflexível vontade”. Isso é um pouco do que Albert Camus escreveu, do que desejou nos contar. Talvez porque, como disse Patti Smith, não se pode somente viver.

 

 

GISELE BARÃO é jornalista, com passagens por veículos como Gazeta do Povo, Rede Massa e Jornal da Manhã. Atualmente colabora com o jornal Rascunho.