ESPECIAL | A volúpia da escrita 15/07/2024 - 12:21
O impacto de Cassandra Rios na literatura percorre uma trajetória de ineditismos, rupturas e liberdade de expressão
Marianna Camargo
Cassandra, personagem da mitologia grega, era considerada louca. Tinha o dom de anunciar profecias nas quais ninguém acreditava, mas que sempre se concretizavam. Profeticamente ou não, este foi o pseudônimo utilizado por Odette Pérez Rios a Cassandra Rios (1932 – 2002), que durante toda sua trajetória foi tachada de proibida, maldita, provocadora, contra a “moral e os bons costumes”, entre outros rótulos que marcaram sua obra. Contudo, para especialistas sobre a autora, Cassandra está muito além de estereótipos e reducionismos. Uma escritora que criou narrativas diretas, ousadas, livres, populares e eróticas (ou sobre o amor, como ela preferia), extremamente atuais, que arrebatou milhares de pessoas.
O pioneirismo de Cassandra percorreu diversos aspectos: em seu posicionamento sobre a sexualidade — era abertamente lésbica —, na escrita libertária e acessível, na independência financeira, na extensa produção literária, em suas diversas expressões e habilidades artísticas e na atitude autêntica e corajosa em enfrentar situações de opressão e preconceito, tanto da sociedade e da academia, como da crítica literária e do Regime Militar.
Kyara Maria de Almeida Vieira, professora doutora da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), autora da tese "'Onde estão as respostas para as minhas perguntas'?: Cassandra Rios – a construção do nome e a vida escrita enquanto tragédia de folhetim (1955 – 2001)", mensura o pioneirismo da escritora em suas múltiplas camadas. “Além de ser a única autora brasileira a viver exclusivamente de direitos autorais, juntamente com Jorge Amado e Érico Veríssimo, foi a primeira, no Brasil, a escrever e publicar romances centrados num casal de mulheres. Também foi a primeira a criar personagens de mulheres sexuadas, com desejos sexuais desvinculados da necessidade da reprodução biológica”, afirma.
Cassandra foi sucesso de vendas durante décadas, lida por um milhão de pessoas, de acordo com o jornal Pasquim, em 1976. Circulando por todas as regiões do país, publicou seu primeiro romance aos 16 anos, A Volúpia do Pecado, em 1948. O livro foi reeditado 9 vezes durante dez anos, até ser censurado em 1962 por "ofender os valores familiares". Adriane Piovezan, professora, mestre em Estudos Literários e doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), reafirma o pioneirismo de estreia. “A Volúpia do Pecado inaugura a literatura homoerótica feminina no Brasil. É um marco porque as personagens precisam até de um dicionário para entender o significado de quem são, lesbianas”.
Rodolfo Londero, professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL), autor de Pornografia e Censura: Adelaide Carraro, Cassandra Rios e o Sistema Literário Brasileiro nos anos 1970 (2016), discorre sobre a coragem de ambas. “O mais impressionante na trajetória de Cassandra, bem como de sua colega de ofício, Adelaide Carraro, é o desejo de continuar escrevendo mesmo com censura após censura, e sem o apoio dos escritores e intelectuais da época, que compartilhavam um preconceito estético contra sua literatura. O legado de Cassandra é a liberdade de expressão”, pontua. A repercussão dos seus livros foi enorme, com tiragens que podiam alcançar 300 mil exemplares.
Piovezan enfatiza a importância da obra de Cassandra, que trouxe elementos reais sobre grupos minorizados pela sociedade. O conteúdo de seus livros retrata o processo da formação das minorias sexuais, em que elementos da vida real eram vivenciados por suas personagens. “A homossexualidade aparecia geralmente até a primeira metade do século XX envolvida no pecado, no crime e na patologia. Estas questões também apareciam nos romances de Cassandra Rios eventualmente, e suas personagens enfrentavam estes e outros desafios presentes na moral daquele período”.
Todo esse conjunto de fatores revela como sua obra foi crucial para que estas minorias não fossem invisibilizadas na literatura. “Por isso Cassandra Rios pode ser muito criticada, mas jamais ignorada pela literatura brasileira”, afirma a professora.
Produção, censura e perseguição
Rios escreveu inúmeros livros, mesmo com as dificuldades que enfrentou diante de uma sociedade conservadora, com a crítica literária e com a Ditadura Militar (1964 – 1985). Na segunda autobiografia da escritora, Mezzamaro, Flores e Cassis (2000), ela cita 59 livros publicados, mas Kyara Vieira diz que, em sua pesquisa, considerando menções feitas nas autobiografias da escritora e os anúncios contidos nos livros publicados, constam aproximadamente 72 títulos.
Durante o período do Regime Militar, todas as suas obras foram retiradas de circulação, além de ela ter sido detida e levada a prestar constantes depoimentos ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), como aponta Kyara. A própria autora declarou em uma entrevista à revista Realidade, em 1970, que a promulgação do AI-5 (Ato Institucional Número Cinco, em dezembro de 1968), que oficializou a censura no país, teve impacto direto em sua vida pessoal e profissional.
Porém, todo o aparato censório contra Cassandra atiçou a curiosidade sobre o conteúdo de sua literatura. Até mesmo os militares que a proibiram, ironicamente, a liam: o livro A Lua Escondida (1952) foi um dos mais emprestados pela Biblioteca do Exército Brasileiro. Em termos de mercado editorial, a censura contribuiu na época para tornar sua obra mais conhecida, ainda que o rótulo de “escritora maldita” beneficiasse somente as editoras, como a própria autora declarou diversas vezes. Londero complementa: “o que explica o atual apagamento de Cassandra é justamente o apelo popular de sua obra, uma qualidade que a crítica literária costuma interpretar de forma negativa”, explica o professor. Ela mesma bradou: “Escondiam meus livros debaixo do colchão, meu nome virou palavrão”, no que seria sua última entrevista, para a revista TPM, em 2001.
Entretanto, a sua obra já havia sido proibida muito antes. Em 2 de abril de 1959, o jornal O Estado de São Paulo trouxe uma matéria informando que a peça de Cassandra Rios, "A mulher proibida", baseada no seu livro Eudemônia (1949), foi censurada e sua estreia não aconteceria naquele dia. “Neste período, o Brasil estava sob o comando do então presidente Juscelino Kubistchek (1956 – 1961), que aboliu a censura prévia herdada do segundo governo de Getúlio Vargas, mas que tomou medidas mais severas. O mesmo jornal, em abril de 1962, informa que cinco livros da autora foram censurados”, elucida Kyara.
Apesar da destruição de grande parte do seu acervo, é possível encontrar exemplares da autora em bibliotecas de diversos países além do Brasil, como, França, Portugal e Inglaterra, assim como em sebos espalhados pelo mundo.
A Santa Vaca
Cassandra era uma escritora profissional e ganhava por meio dos direitos autorais, possuía propriedades e até uma livraria — fato raro tanto pelo gênero como pelo ofício. Não era tão comum, na sua época, mulheres escritoras. Menos ainda, mulheres que escrevessem sobre sexualidade, desejo, erotismo. Recebeu duras críticas e descredenciamento de sua obra, “ao ponto de seu nome ser retirado da lista final de assinaturas do ‘Manifesto dos Mil’, que foi enviado em 1977 ao Ministro da Justiça da época, Armando Falcão, com 1.046 assinaturas de intelectuais do Brasil opondo-se à proibição de mais de 400 livros de autores∕as nacionais e internacionais”, explica Vieira. Para continuar a publicar, Cassandra inventou pseudônimos masculinos, como Oliver Rivers, "Rios" em português, que adaptou também em outros idiomas, e não teve mais problemas. Suas personagens seguiam a mesma lógica: "Nas obras, algumas delas assumiam várias identidades e performavam várias posições de sujeito, possibilitando críticas às incongruências da nossa sociedade", afirma Kyara. Nesse contexto, fica nítido que o incômodo que causava aos militares era por ser mulher, lésbica, escritora e independente financeiramente.
A escritora considerada "a mais pornográfica e a mais proibida do Brasil", com o passar do tempo foi se transformando, porque aos poucos foi reconhecido o mérito de sua forma específica de descrever os conflitos e subjetividades de suas personagens, seus temores, questionamentos e o preconceito já internalizado. "Essa narrativa destaca o caráter transgressor de sua obra: o de alcançar um público mais amplo que precisava saber da existência de mulheres que amavam outras mulheres", comenta Adriane Piovezan.
Como abordou pela primeira vez temas LGBTI+ na literatura brasileira, a obra de Cassandra Rios demonstra como é fazer literatura em tempos sombrios, marcados por repressão e censura. "Revalidar sua obra também significa questionar valores estéticos muitas vezes adotado pela crítica literária para excluir a literatura produzida por e para classes populares", argumenta Londero.
A Santa Vaca, de 1978, foi uma resposta à perseguição e difamação causada pelos militares, como declarou em algumas entrevistas. "Escrevi A Santa Vaca de raiva. De tanto me perseguirem, resolvi fazer pornografia, então fiz esse livro. Na introdução, está a minha intenção: mostrar a força da mulher ao ser chamada de prostituta", contou Cassandra.
Subversão literária
A percepção sobre a literatura de Cassandra seria diferente nos dias de hoje? As três fontes concordam que poderiam haver polêmicas em torno disso. O professor Rodolfo Londero realça a questão do julgamento crítico. "Acredito que Cassandra Rios teria tanto sucesso como antigamente, mas a crítica literária continuaria negando o seu reconhecimento por causa desse sucesso, que entende o apelo popular de sua obra como característica de uma literatura menor, de uma literatura simples no pior sentido, sem qualidade estética. Não consegue enxergar que esse 'erotismo pobre', como disse Pedro Vieira, é uma subversão dos valores literários canônicos". Londero diz que Cassandra conseguia "conversar" com todos os leitores, "uma preocupação que poucos escritores demonstram atualmente".
Enquanto hipótese, a recepção seria menos censória, menos cruel. Porém, se formos considerar que em pleno século XXI, novelas deixam de transmitir beijo entre homens e∕ou entre mulheres porque a pesquisa de opinião identificou que o público não aprovaria; que um banco foi obrigado a cancelar a exposição "Queermuseu – cartografias da diferença na arte da brasileira" devido aos protestos de conservadores religiosos e determinado movimento político; que há cinco anos o prefeito de uma das maiores cidades do Brasil ordenou a retirada da Bienal do Livro os exemplares da HQ "Vingadores: A cruzada das crianças" (Salvat), "não consigo acreditar que Cassandra deixaria de receber reações negativas ou críticas baseadas na moral e nos ditos bons costumes", analisa Kyara.
Seguir a linha de Cassandra Rios seria anacronismo, pois é um contexto muito diferente. Os diferentes nichos de mercado hoje sugerem a fragmentação destas experiências, temos a literatura afro-brasileira lésbica, a literatura lésbica periférica, etc. Selos e editoras específicas sobre a temática demonstram como a temática está fortalecida na atualidade.
Legado literário e social
A autora explorou temas avançados, hoje em discussão, e experimentou outros gêneros literários, deixando uma obra vasta, ainda pouco analisada no nosso tempo recente. Escreveu livros de contos, poesias; romances entre dois homens; entre heterossexuais e, ainda na década de 1950, publicou romances que têm como centro a experiência e vida de pessoas transgênero.
Vieira faz uma ressalva na importância dessa literatura para as construções de pensamentos não heteronormativos. “Poderíamos considerar que Cassandra Rios conseguiu ser, para muitas pessoas, o primeiro contato a lhes mostrar que não eram monstruosas ou as únicas no mundo. A partilha de seus livros, e das histórias neles contidas, permitiu que redes fossem construídas, que as sexualidades e os papéis de gênero fossem questionados em suas fragilidades, numa época em que 'Tradição, família e propriedade' era muito mais que um bordão da extrema direita utilizado para atacar os direitos humanos e civis das populações mais vulneráveis", analisa.
Piovezan destaca as obras representativas de Cassandra. "Eudemônia, de 1949, em que a personagem é internada em uma clínica psiquiátrica por ser homossexual, retrata o aspecto do tratamento patológico para o que era considerado uma doença. Já em Copacabana Posto 6 – A Madrasta (1956) encontramos a descrição da cultura lésbica consolidada, as frequentadoras da Galeria Alaska em Copacabana no Rio de Janeiro, personagens que enfatizam sua autoafirmação enquanto homossexuais femininas. Por fim, o livro Eu sou uma lésbica, de 1981, também merece destaque porque, mesmo diante da maior visibilidade deste grupo, os desafios e o preconceito ainda eram marcantes na sociedade brasileira", detalha.
Girândola
Cassandra Rios nasceu em São Paulo (SP), em 1932, batizada como Odette Pérez Rios e faleceu em decorrência de um câncer, em 2002, aos 69 anos, no Dia Internacional da Mulher, 8 de março. Exerceu muitas outras atividades, foi apresentadora de um programa na rádio Bandeirantes−SP e na Rádio São Paulo (1974 – 1986), jurada no desfile das Escolas de Samba de São Paulo, dos programas "Quem tem medo da verdade" no canal 7 (TV Rio), "A mulher é um show" no SBT, e do programa de calouros de Carlos Aguiar (TV Gazeta). Participou do "Almoço das Estrelas" da TV Tupi, e foi entrevistada por várias pessoas de sucesso na época (Clodovil, Jô Soares, Marília Gabriela, etc). Falava português, espanhol, francês; escrevia músicas, fazia esculturas, foi editora e revisora, ghost writer, pintou algumas miniaturas em óleo sobre tela, gravou aulas de Geobiologia. Nunca frequentou uma universidade e foi vilipendiada pela crítica literária.
Portanto, a importância e amplitude de Cassandra não se limita como escritora, mas, se difunde por vários espaços da arte ocupados por ela. "Uma mulher que não furtou do direito de vestir-se com trajes associados ao mundo masculino, transitar com suas namoradas, viajar pelo Brasil e fora dele, sem esconder-se e sem cair nas armadilhas dos dispositivos de controle, a exemplo da mídia, da justiça, do Estado (ditatorial ou não), que insistiam em querer aprisionar seu corpo e suas ideias", descreve Kyara.
As obras de Cassandra Rios revelam elementos da transformação histórica que as lésbicas vivenciaram no Brasil nas décadas de 1940 até o final de 1970. O comportamento, os lugares, o modo de vestir, de falar, de se relacionar do mundo literário criado por Cassandra, permitem entender os desafios dessas minorias que mudaram ao longo do tempo. Para Adriane Piovezan, "sua obra abrange todo o contexto de criação de uma cultura lésbica. Iniciando com personagens que nem sabiam o significado do termo lésbica em A Volúpia do Pecado até o livro que no título já possui a afirmação Eu sou uma lésbica. Esta é a maior contribuição de Cassandra Rios na minha opinião", analisa.
Kyara Vieira utiliza uma metáfora para medir a intensidade de Cassandra: "Costumo dizer que a vejo como uma girândola: quando pensamos que ela parou de girar e soltar suas luzes em explosão, ela recomeça, não da mesma maneira nem com a mesma intensidade ou na mesma direção. Mas, ela segue, mesmo após sua morte, a afetar sentidos, a atiçar curiosidades, a ser descoberta para quem não a conhecia e redescoberta por quem já a conhecia, atravessando várias gerações", finaliza.
Marianna Camargo é jornalista, escritora e editora do jornal Cândido. Possui especialização em Gestão Cultural Comunitária, pela Universidade da República do Uruguai (Udelar) e Gestão de Informações Públicas e Base de Dados (Agesic∕Governo Federal do Uruguai).