ESPECIAL | A transgressora geração de 45 uruguaia 30/11/2023 - 16:37

Poetas da Geração de 45 no Uruguai são referência crucial na literatura latino-americana, apesar de pouco conhecidos no Brasil 
 

por Marianna Camargo

 

“Como sempre acreditei que são os poetas os verdadeiros avançados da cultura, aqueles que definem melhor os campos do sentir e do pensar, é neles onde encontro apresentada inicialmente a ruptura.’’

 

É assim que Ángel Rama (1926-1983) se refere à poesia uruguaia, em seu artigo La conciencia crítica, publicado na revista Enciclopedia Uruguaya (1969, p.104, tradução Ana Carolina Freitag). Além dele, a Geração de 45 no Uruguai concentrou uma safra importante de poetas, como: Alfredo Gravina, Amanda Berenguer, Carlos Brandy, Carlos Maggi, Humberto Magget, Ida Vitale, Ideia Vilariño, Gladys Castelvecchi, Juan Carlos Onetti, Juan José Morosoli, Líber Falco, Mario Benedetti, Sarandy Cabrera, entre outros (as). Além de poetas, o movimento era composto por músicos, pintores, artistas e filósofos (as). 

Foi Emir Rodrigues, considerado um dos maiores críticos da literatura hispano-americana, quem nomeou esse grupo de intelectuais de Geração de 45, ano que marca o final da Segunda Guerra Mundial e o começo da era atômica. Além disso, este ano é importante para a cultura uruguaia, porque começa a ser preparada a criação da Facultad de Humanidades y Ciencias, y de la Comedia Nacional. 

Essa combustão de linguagens resultou em uma frente vanguardista, que tinha como premissa delinear uma identidade cultural do país, alinhando a arte com a questão histórica e política. Para Ángel Rama, o descontentamento com as normas artísticas preestabelecidas, com os padrões sociais e culturais do Uruguai, criou em um grupo de pessoas uma nova consciência que, para ele, é crítica, e, justamente por esse motivo, Rama prefere chamar a Geração de 45 de Geração Crítica. 

De acordo com Ana Carolina Freitag, tradutora, professora, pesquisadora e mestranda em Estudos Literários no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPR,  os integrantes da Geração de 45 influenciaram a identidade intelectual uruguaia contemporânea. “Esse movimento formou pensadores importantes para a cultura uruguaia, como políticos, sociólogos, diretores de teatro, economistas e artistas”, comenta.

Freitag explica que o ano de 1939 foi importante para o início desse movimento literário por dois acontecimentos. “O primeiro foi a criação do jornal Marcha, por Carlos Quijano. Esse semanário foi um importante meio de divulgação para os artistas daquela geração. E o segundo, o lançamento do El pozo, de Juan Carlos Onetti”, aponta.

A partir de 1947, segundo ela, acontece a primeira eclosão de revistas como Clinamen, Escritura, Asir, Marginalia e Número. Inclusive, Ida Vitale publica seus primeiros sonetos em Clinamen (1947) e participa da fundação da Número. “A revista Asir representou a tentativa de criar uma arte exclusivamente nacional, publicando frequentemente textos sobre a temática da vida cotidiana e do catolicismo dominante. Isso acentuou um nacionalismo tradicional e fez com que o grupo não obtivesse sucesso”, analisa Ana Carolina. E completa: “Também existiam outras revistas literárias. Rama argumenta que nelas os artistas tinham liberdade para trabalhar novas técnicas, pois os gêneros publicados nesses periódicos eram curtos. Isso demonstra como esses jornais foram importantes para a divulgação e acesso da população aos textos produzidos por esses escritores”.

Segundo o poeta uruguaio Rafael Courtoisie, “os artistas começaram a enxergar a América Latina -  julgada como um território pouco atrativo e desconhecido depois da revolução cubana e das mudanças que estavam ocorrendo no continente”. É nesse contexto que apareceram novas revistas, a partir de 1954, como Nuestro Tiempo, Nexo, Tribuna Universitaria e Estudios.

No artigo O Uruguai e sua Literatura: Mario Benedetti, a professora Rosemary Conceição dos Santos escreve:  “O uruguaio configura-se como um ressignificador da história da América Latina, resistindo às interpretações prontas dos fatos históricos, de sua arte e de sua cultura”.

 

Identidade artística

 

Ana Carolina considera que uma das características desse movimento era a busca por uma identidade nacional para a literatura, a formação da literatura da juventude, o caráter intimista e a retomada de valores antigos como o parnaso.

De acordo com Rama, foi a busca por uma identidade artística nacional que fez com que esses intelectuais rompessem com o internacional — mesmo influenciados pelas vanguardas europeias — e se aproximassem do nacional e da América Latina.

A instituição uruguaia Plano Ceibal, focada em projetos socioeducativos do país, cita como característica desse movimento “o reconhecimento de uma narrativa complexa e de uma prosa cuidadosa; a inovação em técnicas narrativas que visavam a subjetividade, como o fluxo de consciência e o monólogo interno”.

 

O “golpe imediato” das poetas

 

Resídua

 

Curta a vida ou longa, tudo

o que vivemos se reduz

a um gris resíduo na memória.

 

Das antigas viagens restam

as enigmáticas moedas

que pretendem valores falsos.

 

Da memória apenas sobe

um vago pó e um perfume.

Acaso será a poesia?

 

(Poema de Ida Vitale – Tradução de Heloisa Jahn, do livro Não Sonhar Flores, editora Roça Nova, publicado em 2020).

 

Ida Vitale (1923) simboliza com maestria o que significou a Geração de 45 uruguaia. Única representante viva deste movimento, a poeta, ensaísta, crítica literária e tradutora completou 100 anos em novembro deste ano e é considerada uma das maiores poetas da América Latina, tendo recebido os prêmios literários mais importantes da língua espanhola – Prêmio Internacional Octavio Paz de Poesia e Ensaio, Prêmio Internacional Alfonso Reyes, Prémio Reina Sofia de Poesia Ibero-americana, Prêmio Internacional de Poesia Federico Garcia Lorca, Prêmio Cervantes, entre outros. 

Apesar do reconhecimento, a poesia de Ida Vitale só foi publicada no Brasil em 2020, quando a editora brasileira Roça Nova lançou a primeira antologia da poeta no país: Não Sonhar Flores, que reúne seis livros da escritora, um recorte de sua obra poética ao longo de seis décadas, com tradução de Heloisa Jahn.

Laura Di Pietro, editora da Roça Nova, diz que houve um contato direto com a autora para a realização da publicação, a quem agradece por acompanhar “com seu ouvido agudo, seu olhar afiado e sua energia inesgotável os passos dessa edição brasileira". Ela relembra uma frase do poeta colombiano Álvaro Mutis, que disse que inveja o leitor que se inicia na obra de Ida Vitale, pois “um prazer insuspeito o aguarda”.

Priscilla Campos, editora, crítica literária, poeta, pesquisadora e Doutoranda em Letras Modernas – Espanhol pela Universidade de São Paulo (USP), afirma a importância das poetas dessa geração: “Destaco a produção de Amanda Berenguer (1921 – 2010), Idea Vilariño (1920 – 2009) e Armonía Somers (1914 – 1994). As duas primeiras, poetas que trataram, principalmente, de um espaço ligado à natureza, como o mar e os rios; a terceira, uma contista e pedagoga para qual os espaços de fantasmagoria eram uma constante de investigação”. 

Ela diz que a partir das leituras dessas mulheres, a cartografia da Geração de 45 expande-se, “fazendo com que os leitores conheçam alguns espaços oníricos e aterrorizantes que também fazem parte do contexto urbano e das nuances das cidades, sempre tão governadas e detalhadas pelos homens”, pontua.

Idea Vilariño é aclamada também pelo poeta chileno Raúl Zurita, que escreve na Revista da Biblioteca Nacional do Uruguai que sua poesia é como um “golpe imediato”, e continua: “Nada do corpo amado permanece unido”.


 

Brasil e Uruguai, reescritura de espaço

 

O ano era 1956, quando a poeta brasileira Cecília Meireles realizou uma conferência chamada Expressão Feminina da Poesia na América, na Sala do Conselho da Universidade do Brasil. Neste dia, a poeta enumerou cerca de 30 autoras de países como Cuba, Bolívia, Argentina, Colômbia, Peru, México e Chile, além de dez escritoras uruguaias, entre elas, Ida Vitale. 

Passados quase 70 anos, tanto Ida Vitale, como as outras poetas que Cecília Meireles citou continuam pouco conhecidas, apesar das conexões literárias entre ambos os países. Ida é admiradora da poesia brasileira, escreveu ensaios sobre Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, assim como outros/as importantes escritores (as) brasileiros (as) admiravam a literatura uruguaia.

Priscilla ressalta que a centralidade e importância desse movimento passa por uma reafirmação e reorganização de território, estabelecendo paralelos com o Brasil. “De certa maneira, a importância da Geração de 45 uruguaia está em, ao mesmo tempo, reafirmar e reorganizar um território. Nesse sentido, a produção de autores como Juan Carlos Onetti, Amanda Berenguer e Idea Vilariño, acompanha as produções modernistas em outros países latino-americanos, como no Brasil. Podemos pensar em um tipo de paralelo possível entre os dois países, por exemplo, em termos de reescritura de espaço: a cidade e seus elementos tornaram-se passíveis de palavra e contorno e, com isso, quando falamos da Geração de 45, falamos de uma cartografia que se atualiza em formas de narrar esse imaginário.” 

Ángel Rama tornou-se um dos mais profundos conhecedores das literaturas latino-americanas, inclusive a brasileira. Para o sociólogo, crítico literário e professor Antonio Candido (1918-2017), que o convidou a dar cursos no Brasil, "são valiosas as ideias de Rama sobre o problema das literaturas nacionais do subcontinente".

A professora licenciada em Letras, Daniela Diana, discorre sobre este tema: “A Geração de 45 representou um grupo de literatos brasileiros da terceira geração modernista. Ela surgiu com a Revista Orfeu (1947) e teve representantes tanto na prosa quanto na poesia. Entre os (as) principais autores do período estão: João Cabral de Melo Neto, com obras como Morte e Vida Severina, Clarice Lispector, com A Hora da Estrela, João Guimarães Rosa, com Grande Sertão: Veredas, além de outros autores como Ariano Suassuna, Lygia Fagundes Telles e Mário Quintana”, cita a professora.

Campos enfatiza a questão do espaço: “Quando menciono o espaço, é menos como uma descrição das cidades, da paisagem natural e da sua função temática – que sempre esteve presente na história da literatura –, e mais como um espaço motor de organização de vida, de sentido e de liberdade; um espaço que se permite capturar e oferece um constante movimento de outras construções possíveis tanto para as temáticas dos textos quanto para a estrutura das narrativas e dos poemas. A Geração de 45, portanto, tornou-se uma possibilidade de espaço de transgressão e montagem, um conjunto político-cultural que remontou, na época, a uma nova ordem de leitura do país”, afirma.

Quando o sol se põe no Rio da Prata, em Montevidéu, é possível imaginar a poesia em estado bruto. É possível percebê-la como ato, como palavra transformada em arte. Transgressão e linguagem. E mirá-la. Atravessá-la. Assim aconteceu a chamada Geração de 45 uruguaia.