ESPECIAL | A resposta da literatura 28/06/2021 - 11:18

Lançamentos deste ano mostram como os escritores investigam e interpretam a realidade imposta pela pandemia

Jonatan Silva

 

Numa entrevista à Folha de S. Paulo publicada em junho, o norte-americano Don Delillo, que acaba de lançar a novela O Silêncio, diz que, daqui para frente, não há como fugir do coronavírus na ficção. "É inevitável", afirma lacônico. E parece ser mesmo. Desde que a pandemia tomou de assalto todo o globo, o vírus se transformou em uma espécie de personagem onipresente da realidade e do ficcional.

Não à toa, pandemia e quarentena foram alçadas como temas necessários para se discutir, por meio da literatura, o lugar do ser humano no planeta. Maior fenômeno recente do mercado editorial francês, com mais de 1 milhão de exemplares vendidos, L’Anomalie (2020), romance de Hervé Le Tellier, parte da crise de covid-19 para construir um mundo caótico e estranho, em que as certezas e as seguranças são colocadas em xeque em uma intrincada rede de intrigas cujo objetivo final é o esgotamento da identidade como a conhecemos.

No Brasil, o cenário não é diferente. Desde os primeiros dias de isolamento, a literatura tem buscado investigar e interpretar essa nova configuração de realidade que surgiu de forma tão imediata e chocante. Os desdobramentos estão em toda parte. Segundo o crítico literário Ítalo Moriconi, em entrevista ao jornal O Globo, já é possível identificar uma “literatura de pandemia” e que, portanto, reflete as indagações do indivíduo sobre as possibilidades de futuro.

Antes de se tornar um movimento literário, é preciso identificar uma unidade que ultrapasse o tema puro e simples. Para o escritor e crítico literário José Castello, os textos que tratam da pandemia estão em busca de uma estética e de um estilo. “Nas oficinas de escrita que estou ministrando online, por exemplo, ela é talvez o tema dominante. Nossa vida anda muito restrita, sem horizontes e, seja para que lado olhemos, é com a pandemia que damos de cara. Também participando do júri de prêmios literários, percebo claramente isso. O tema é o mesmo, se repete, é insistente”, esclarece.

 

Em 2020 L'anomalie ganhou o prêmio Goncourt, um das principais horarias literárias de língua francesa
Em 2020 L'anomalie ganhou o prêmio Goncourt, um das principais horarias literárias de língua francesa. Foto: reprodução

 

Ainda que seja difícil identificar uma mobilização coletiva, como foi a autoficção tempos atrás, a pandemia, definitivamente, não passará ao largo da produção literária. Em simultâneo a tantas paralisações, todos os elementos que dão corpo a esse processo de calamidade — o isolamento, as mortes, o comércio fechado, o desemprego — que representam o “agora” prefiguram também como uma força-motriz.

Nessa lógica, por trás de grandes desastres há também obras de arte igualmente grandiosas como resposta. Se Por Quem os Sinos Dobram (1940) foi a resposta de Hemingway à Guerra Civil Espanhola (1936 – 1939) e Hiroshima (1946) o testamento de John Hershey contra a bomba atômica, é esperado uma articulação natural dos artistas na tentativa de interpretar e devolver suas impressões. A escritora sergipana Taylane Cruz observa que a arte, e sobretudo a literatura, pode ser um amparo em face às catástrofes. “Escrever é, justamente, transformar as agonias do mundo em palavras”, avalia a autora de O Sol dos Dias, lançado durante o confinamento. “Agora, mais do que nunca, sabemos como ela deve ser servida como pão na mesa de cada um de nós. É alimento.”

Para Gustavo Faron, publisher da editora Dublinense — que, em 2020, em parceria com outra casa independente, a Elefante, publicou a coletânea Retratos da Vida em Quarentena — mesmo quando o coronavírus não for o tema central, fugir da sua sombra não parece ser uma opção. “É impossível passar ao largo. É impossível não ser afetado por um acontecimento dessa magnitude”, comenta, e completa: “Não tem como evitar incorporá-lo de alguma maneira à arte que produz.”


Reinauguração

Estar diante do abismo, porém, oferece uma perspectiva de enxergar os novos sentidos que podem ser atribuídos à literatura. O Último Gozo do Mundo, romance mais recente de Bernardo Carvalho, surge dessa tentativa de investigação do mundo a partir do caos e do colapso.

Se em Simpatia pelo Demônio (2016) e Reprodução (2013) — assim como em boa parte da sua produção literária — já existia uma espécie de gênese desses dois ingredientes, em seu último trabalho parece existir uma urgência de nomeá-los e criar uma relação com a memória daquilo que já foi e a imaginação do está por vir. “Acho que dentro do cenário mundial, a pandemia nos confronta com o suicídio coletivo, com um ponto de não-retorno na nossa relação social e econômica com o mundo, com a natureza, com o planeta, com o outro”, reflete. “E, nesse sentido, ela passa a ser um tema muito rico e urgente para a literatura e para a reflexão literária.”

Em uma das passagens d’O Último Gozo do Mundo, Carvalho comenta sobre “o fim do mundo travestido de reinauguração”, como um recomeço compulsório. É a mesma angústia e agonia que o escritor e tradutor Fernando Koproski compartilha. O isolamento e a ausência são um ultimato em que “você rasga com as próprias mãos uma janela na parede ou morre”. Na visão do autor de Pequeno Dicionário de Azuis, a literatura é a única opção para responder à altura de um vírus que já levou quase quatro milhões de pessoas em todo o mundo. “Tudo isso me afeta o tempo todo, todo o tempo. Escrever sobre isso é inevitável”, comenta.
 

Bernardo Carvalho
Bernardo Carvalho, autor de O Último Gozo do Mundo. Foto: Divulgação

 

A partir dessa inevitabilidade, surge também uma sensação de despertencimento e de culpa por tudo aquilo que está alheio à questão do covid-19. Essa percepção norteia o olhar Julián Fuks sobre as implicações de um fato histórico na função de escritor. Ao mesmo tempo em que a literatura deve ocupar espaços e ideias, se faz necessário refletir acerca de seu esgotamento. “A pandemia provoca uma sequência de falências: a falência do tempo e a falência do sentido. Uma tragédia não existe para nos engrandecer, ela simplesmente existe e a gente tem que lidar com o seu impacto e o possível trauma”, explica.


Nova geração

Em 2019, Joca Reiners Terron publicou A Morte e o Meteoro, que se debruçava sobre o genocídio indígena, e que, aos olhos de hoje, parece uma certa premonição ainda mais ampla e devastadora. Há pouco, no entanto, publicou O Riso dos Ratos, romance que parece dar conta do mundo pós-apocalíptico traçado na obra anterior. Agora, Terron, ao criar uma história de vingança de um pai cuja filha é vítima de uma brutalidade, esmiuça as gradações de barbárie que fazem parte da “realidade” — como gostava de grafar Nabokov (1899 – 1977), entre aspas.

Na visão do autor de Noite Dentro da Noite (2017), é injusto esperar que, imediatamente, a literatura possa compor um retrato definitivo do mundo mergulhado no coronavírus. “O grande livro sobre a pandemia será escrito por alguém dessa geração de jovens que, a despeito de ter possibilidade quase nula de morrer, sacrificou dois anos da juventude no isolamento. Ou, no futuro, por uma criança que passou metade da vida em casa durante a pandemia”.

O percurso histórico, entrementes, pode ser mais complexo e imprevisível. Segundo Castello — para quem as gerações futuras devem, sim, superar seus predecessores, mas também observar e resolver aquilo que não foi possível anteriormente — não há garantia de que tempo ou distância tornem mais fácil o caminho de interpretação. “A história não avança sempre como, em geral, imaginamos. Agora mesmo estamos vivendo um presente cheio de grandes recuos e de negação”, pondera. “Um presente que, infelizmente, anda para trás”.


Processo criativo

O confinamento que, para alguns pode ter surgido como um antídoto para a falta de tempo ou de planejamento para escrever, se revelou um tempo dúbio. Entre o medo do vírus e a necessidade de transportar para a literatura a agonia do mundo lá fora, escritores e escritoras desenvolveram formas de se adaptar ao novo modus operandi de criar. A receita é que, na verdade, não existe receita alguma.

De acordo com a escritora gaúcha Natália Borges Polesso, o remédio está em adotar um certo tom de praticidade e pragmatismo. Foi durante o isolamento social que a autora finalizou A Extinção das Abelhas, romance prestes a ser lançado e que trata de um futuro próximo e distópico. “Tive alguma dificuldade de concentração e até mesmo pensei ‘Puxa, por que estou fazendo isso quando pessoas estão morrendo?’, mas não tive muita escolha, é o meu trabalho”, analisa. “Acho que a pandemia é um grande acontecimento e suas marcas vão nos acompanhar por muito tempo ainda.”
 

Polessa
Natália Borges Polesso, autora do romance distópico A Extinção das Abelhas. Foto: Divulgação


A experiência do luto é uma constante durante os meses de pandemia. A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie exuma a sua própria vivência da perda em Notas sobre o Luto. Taylane Cruz compartilha com a autora de Americanh a morte do pai e a necessidade de escrever para se manter de pé. “Tenho medo todos os dias. Então, os efeitos da minha vivência humana vieram, essas sensações que precisam de tempo para serem decantadas certamente entram na minha escrita”, desabafa. Ainda assim, escrever se tornou um refúgio: “O isolamento me tornou mais prolífera, sem dúvida, porque afetou a minha escrita injetando uma rotina diferente.”

Fuks, que apensar de ter publicado em meados de maio deste ano Romance: História de uma Ideia  — em que faz uma revisão crítica do gênero com base na sua tese de doutorado —, não transmutou seu confinamento em produção, à exceção da sua coluna no UOL. “Lá no início da pandemia, quando a vida era feita só de compromissos domésticos e parentais, vi que enquanto durasse eu não escreveria nada”, comenta o autor de A Resistência. “Aí aceitei um convite antigo para escrever uma coluna, e passei a me obrigar a escrever ao menos isso, semanalmente. Mas até agora não tenho sido capaz de escrever muito mais que a coluna.”

Nem sempre, todavia, o vazio é a ausência do que dizer, e sim a ruptura com o que está posto. O escritor português Gonçalo M. Tavares usou da intranquilidade causada pelas circunstâncias brutais da doença para criar um dos seus projetos mais ambiciosos, o Diário da Peste. Publicado originalmente como coluna em diversos jornais, o livro é um retrato do que o autor de Jerusalém testemunhava todos os dias. Sem conseguir ler ou escrever ficção, só lhe restou mergulhar no que estava ao alcance dos olhos. “No meu caso, sinto que a ficção afastada do que está do que está a acontecer, do que é importante, para de alguma maneira dinamizar uma espécie de elegia do imaginário – que é fundamental estar arte de pensar além daquilo que está à frente dos nossos olhos”, disse.

 

Retrato da leitura

Se estar fora de casa se tornou, como diria Cazuza, um risco de vida, ler se converteu em um manifesto de resistência e sobrevivência, ao mesmo tempo em que acompanha as urgências potencializadas pela pandemia. “A leitura passou a tomar uma parte ainda maior dos meus dias em quarentena, já que o hábito de ler, ainda que fundamental à minha profissão, tem sido um dos poucos prazeres possíveis nesse contexto que nos impede de sair de casa”, explica a booktuber e pesquisadora Tamy Ghannam.

O lado sombrio, porém, reside no mito da produtividade exacerbada. A pressão para consumir os clássicos-chave da literatura universal ou as mais recentes novidades do mercado editorial se revelou não apenas um desafio para os produtores de conteúdo, mas uma contradição cujo ponto final pode ser o cansaço e o desgaste de estar, quase que ininterruptamente, em frente ao computador ou com o celular em mãos. “Hoje a realidade toda acontece pelo virtual, único meio de contato seguro com o mundo lá fora, com as pessoas que amamos e que estão distantes”, comenta Ghannam. “Depois de tanto tempo expostos às telas, acredito que todos nós nos sentimos saturados delas, o que sem dúvidas dificulta os processos de criação nos meios digitais.”


Pós-pandemia

O filósofo Theodor Adorno abandonou a sua Alemanha natal quando Hitler subiu ao poder e começou a caça ao povo judeu. Já em solo estrangeiro, onde foi professor e escreveu seus trabalhos mais importantes, o autor de Dialética do esclarecimento  — aqui, uma parceria com Max Horkheimer — idealizou aquele talvez seja o mais forte pensamento da relação entre literatura e Holocausto: “escrever poesia após Auschwitz é um ato bárbaro.”

Bernardo Carvalho, que enxerga a afirmação como bombástica, percebe em Adoro a sua própria antítese. “O tempo provou que a frase estava errada. Ele era um entusiasta da obra do Beckett. Talvez ele estivesse falando de uma forma muito específica e restrita de poesia”, rebate.

Puro exercício de retórica ou um sentimento de indignação diante do genocídio de mais de 6 milhões de pessoas nos campos de concentração, o fato é que a frase de Adorno ganha uma nova dimensão a partir da perspectiva da pandemia. “Fazíamos literatura antes, fizemos depois e continuaremos a fazer após tudo acabar. A literatura é nosso testamento, algo que escreveremos do além-vida”, esclarece Terron.

E dessa impossibilidade de paralisia que é preciso destituir a arte de um caráter utilitarista. Para Gonçalo M. Tavares, é preciso resgatar a beleza e a lucidez, exercitar o pensamento e a reflexão. “Diante de qualquer tragédia, como Auschwitz ou como a pandemia, não podemos recuar em termos dessa produção de obras que não visam ser funcionais, mas visam sim qualquer coisa de exaltante, de exultante do ser humano”, revela. “E, portanto, aos artistas nunca se pode demitir, aconteça o que acontecer.”

 

Guia da literatura pandêmica

O Cândido selecionou livros escritos ou finalizados na quarentena que trazem a pandemia como elemento de sua narrativa
 

A Extinção das Abelhas

Natalia Borges Polesso (Companhia das Letras)

Finalizado na pandemia, o segundo romance de Natália Borges Polesso é uma alegoria do mundo em bancarrota. Como é de costume na obra da escritora gaúcha, A Extinção das Abelhas é um retrato de mulheres fortes e que precisam se contrapor às forças que oprimem suas naturezas.

 

Confinando no Front

Guga Chacra (Todavia)

O livro é o resultado das impressões do jornalista e colunista Guga Chacra enquanto observava o mundo estilhaçado pelo coronavírus. A partir de um olhar bastante pessoal, o relato apresenta ao leitor um panorama político e social ao redor do globo, além de abordar as consequências mais imediatas desse inimigo invisível.

 

Dez Lições para o Mundo Pós-pandemia

Fareed Zakaria (Intrínseca)

O escritor e apresentador da CNN apresenta um mundo em ebulição, cada vez mais veloz e incapaz de compreender as suas próprias mudanças. Partindo da experiência da pandemia, Zakaria escrutina como é possível reaprender a “caminhar” pelas cidades, perceber as consequências da devastação deixada pelo coronavírus e seus efeitos mais imediatos.

 

Notas Sobre a Pandemia

Yuval Noah Harari (Companhia das Letras)

Nos ensaios e entrevistas reunidos neste livro, o historiador israelense faz um balanço do eventos da Covid-19 no modo de ser e agir da sociedade. Buscando também uma percepção pós-pandemia, o autor de Sapiens reflete sobre como as grandes catástrofes moldaram, e ainda moldam, os povos e aponta para um visão mais otimista, em que boa parte do planeta está em busca de uma mesma cura.

 

Notas Sobre o Luto

Chimamanda Ngozi Adichie (Companhia das Letras)

Em um breve relato, íntimo e doloroso, a escritora nigeriana explora a experiência de perder o pai durante a pandemia. Isolada da família mesmo frente à tragédia, Chimamanda Ngozi Adichie usa o seu texto refinado para tratar sobre as questões culturais do luto e de como o sofrimento, que tomou de assalto todo o mundo, acaba por transcender as experiências pessoais.

 

O Riso dos Ratos

Joca Reiners Terron (Todavia)

Como na maioria das narrativas do escritor cuiabano, O Riso dos Ratos é a epopeia de uma busca, a tentativa de personagens — perdidos em uma terra devastada — de encontrarem soluções para seus problemas mais imediatos. Se A Morte e o Meteoro já parecia um anúncio da pandemia e seus desdobramentos, neste romance Terron avalia com lupa as consequências morais do vírus.

 

O Último Gozo do Mundo

Bernardo Carvalho (Companhia das Letras)

Escrito em apenas seis meses, o romance consegue traçar um itinerário contundente dos primeiros meses de pandemia e da pulsão de morte que percorreu aquele período. Para escrever O Último Gozo do Mundo, entretanto, Carvalho deixou inacabado outro projeto, que havia iniciado pouco depois de lançar Simpatia pelo Demônio, em 2016.

 

Pandemia: Covid-19 e a Reinvenção do Comunismo

Slavoj Žižek (Boitempo)

Tentativa de investigar a pandemia e a sua passagem pelo planeta, o livro é um mergulho nos costumes de uma sociedade cada vez mais pautada por valores sociais voláteis. Dialogando com outros nomes da filosofia contemporânea — como Byung-Chul Han, Giorgio Agamben e Bruno Latour —, Žižek acredita que somente uma nova forma de pensar e viver a sociedade nos salvará do colapso.

 

Retratos da Vida em Quarentena

Vários autores (Dublinense & Elefante)

A coletânea é o resultado de uma chamada pública realizada pelas editoras independentes Dublinense e Elefante, em março de 2020, e que resultou em mais de mil inscritos. O textos selecionados para compor o livro são uma tentativa de interpretação de um fenômeno ainda nebuloso, mas funcionam também como uma corrente de empatia e solidariedade diante de um abismo misterioso.



Jonatan Silva é jornalista, crítico e escritor. Trabalhou no jornal Tribuna do Paraná e colabora regularmente com diversas publicações — entre elas Rascunho e Escotilha. É autor dos livros O Estado das Coisas (2015) e Histórias Mínimas (2019).