ESPECIAL | A letra do poeta 31/10/2023 - 13:24

Entrevista com Arthur Dantas Rocha, autor do livro Racionais MC’s: Sobrevivendo no Inferno

 

Por Marianna Camargo

 

Arthur, quanto tempo você demorou para escrever este livro e como foi sua aproximação com os Racionais MC´S?

Eu demorei cerca de sete meses pra escrever o livro, mas costumo dizer que foi o tempo de uma vida, já que muito do material que usei de referência eu vim guardando desde 1996. Minha aproximação com os Racionais se deu a partir de 1993, como quase todo mundo na periferia: alguém chegava com um disco, gravava em fita K7 e distribuía pra geral.

 

O seu livro faz parte da coleção Livro do Disco, da Editora Cobogó, e consta como um dos mais vendidos. Qual o significado deste alcance na esfera educacional, social e literária?

Não me surpreende o livro vender tão bem: Racionais é gigantesco, construíram em mais de 30 anos uma carreira muito sólida e respeitável. O que me surpreende é o uso que o livro vem alcançando na educação, sobretudo no Ensino Médio. Por outro lado, não deveria causar espanto: o disco Sobrevivendo no Inferno é um intérprete muito acurado da vida nos grandes centros brasileiros.

 

É muito comum a adaptação de filmes para livros e vice-versa, mas menos comum adaptar um álbum musical para livro. Levando em conta o tema desta coleção, como se deu a concepção de Racionais MC’s: Sobrevivendo no Inferno?

Eu tive uma trajetória em meados dos anos 2000 como jornalista cultural e cobri bastante o rap e o grafitti paulistano. Publicando parte do que escrevi em meu blog pessoal (arthurdantas.wordpress.com), os dois editores da coleção Livro do Disco chegaram até mim e lançaram o desafio: topa escrever um livro sobre o Sobrevivendo no Inferno? Eu sabia que era uma responsabilidade enorme, mas também sabia que tinha ideias sobre o disco e topei o desafio.

 

Como é a relação do meio editorial para publicações de obras que busquem reconstituir linhas de pensamento e realidades que contem a História sob outros pontos de vista? Há uma abertura das editoras? E também, se isso consequentemente estimula o acesso das pessoas à leitura desses títulos?

O mercado editorial é muito amplo, mesmo em um país que lê tão pouco como o nosso. Talvez nas grandes editoras seja mais difícil se embrenhar, talvez tenha um jogo de cartas marcadas, autores já reconhecidos etc. Mas nas pequenas editoras se apresentam mais oportunidades e aí seja possível escrever sobre acontecimentos históricos mais diversos, com maior variedade de pontos de vista. Neste exato momento estou escrevendo um livro sobre um aspecto do rap paulistano pouco explorado e o projeto foi acolhido por uma editora bem pequenina. E assim caminhamos.

 

O álbum Sobrevivendo no Inferno foi obra obrigatória para o vestibular da Unicamp de 2020, e o Conselho Universitário da UFSB (Universidade Federal do Sul da Bahia) aprovou em agosto deste ano a concessão de título de doutor honoris causa a Mano Brown. Como você analisa a importância destes fatos para o fortalecimento da questão negra no Brasil dentro do meio acadêmico?

Um jornalista certa feita chamou os integrantes do Racionais de “os quatro pretos mais perigosos do Brasil”. O trabalho do grupo ser reconhecido por instâncias mais oficialescas da sociedade brasileira reafirma a urgência, a sabedoria, a capacidade criativa de um grupo com obra radical, que pensam o país sob uma ótica particularíssima. Isso para mim tem que ver inclusive com uma recente nova apreciação da produção cultural afro-diaspórica nacional, dando conta de uma miríade de posições e pontos de vista, o que só pode engrandecer o país.

 

capa livro

 

 

Sobrevivendo no Inferno foi lançado em 1997 e discute temas como: violência policial, desigualdade social e racismo. Estamos em 2023 e estas pautas continuam atuais. Na sua opinião, qual o grande obstáculo que o Brasil enfrenta por não resolver problemas cruciais como estes, e qual a importância desta obra para aumentar a consciência das pessoas em relação a isso?

O problema do Brasil, disso não tenho dúvidas, é um problema de origem racial, começa com a escravidão e toda ordem de estruturas sociopolíticas que foram erigidas a partir disso. O mito da democracia racial, que é um tipo de mito fundador no Brasil, obstrui e atrapalha a compreensão da dimensão do problema racial no país. Enquanto o negro for um cidadão de segunda classe no país, não encontraremos termo pra resolver as grandes emergências do país. Meu livro acho que dá chaves pro leitor compreender o disco e também aponta como o disco foi sagaz ao lidar com os temas que você apontou. Muita gente aprende sobre esses temas na faculdade, por exemplo; eu aprendi com os Racionais.

 

Você percebe alguma mudança estrutural ao longo destes quase 20 anos ou qual poderia ser o caminho para tentar solucionar essa questão?

Acho que teve um pontual avanço com as cotas para universidade e concursos públicos. E só. A periferia, como diz um rap, segue sangrando e as oportunidades para a comunidade negra permanecem sendo poucas. De certo, a obrigatoriedade do ensino de história afro-brasileira também oferece oportunidade nas escolas para desmontarmos o mito da democracia racial e também é uma mudança importante.

 

A letra Capítulo 4, Versiculo 3, escrita no fim dos anos 1990, começa com uma estatística: "60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial; A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras; Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros; A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo". De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, pessoas negras representam 83,1% das mortes por intervenção policial. A questão da violência contra os negros no Brasil é, segundo alguns especialistas, um projeto de extermínio. Em 2016, 45,9% dos estudantes universitários brasileiros eram autodeclarados negros. O número subiu para 49% em 2019 e, passada a pandemia, em 2022, caiu para 48,3%. Nesse sentido, a política de cotas parece surtir efeito, no entanto, em momentos de crise, é a população negra a primeira a evadir o ensino superior. Como escritor, como você analisa a importância da leitura e especificamente das letras dos Racionais MC´s para combater esses dados?

As letras dos Racionais dão contorno reais para as estatísticas né? Eles são exímios tradutores da vida da população preta, pobre e periférica do Brasil.

 

Entre passagens bíblicas, política e sociologia, a influência literária nas composições de Sobrevivendo no Inferno é diversa. Como você explica as leituras que influenciam o álbum?

Sabe-se que o Mano Brown, por exemplo, é um bom leitor. Mais de uma vez ele já destacou o peso da leitura da autobiografia do Malcolm X, por exemplo. A Bíblia, com certeza, é um livro que também encontra ressonância na obra do grupo. Mas explicar as leituras que podem ter influenciado a obra deles ainda é um trabalho a se realizar.

 

Você acredita que por meio do acesso a obras com este conteúdo pode haver uma transformação efetiva na sociedade? Qual a amplitude da leitura com conteúdos invisibilizados, e principalmente, da compreensão deste problema a partir disso?

Eu sou modesto e realista quanto ao poder da leitura, por mais que saiba quanto o ato de ler transforma a consciência pessoal do leitor. Minha única ambição com o livro é que a obra dos Racionais saia ainda mais importante para a vida do leitor após a leitura do livro.

 

O hip hop atualmente é um dos gêneros musicais mais consumidos do mundo, de acordo com o Spotify, que aponta um crescimento de 68% em consumo nos últimos três anos. Até o momento, em 2023, aproximadamente 1/4 de todos os streams desta plataforma no mundo são deste gênero. Como você vê a questão da marginalidade do movimento do início para essa ascensão mundial, quais os pontos positivos e negativos?

É um paradoxo próprio da indústria musical: quanto mais integrado e ouvido o rap fica, menos importante socialmente parece ficar, porque suas ideias tendem à diluição. O rap e a cultura do hip hop se estabelecem como um tipo de contracultura, mas hoje parecem bem integrados à cultura oficial. Isso pra mim, que tenho como primeira vivência o punk rock, parece uma questão problemática. Por outro lado, sempre terão os artistas que defenderão o lado insubmisso e contestador do rap – a existência de um Djonga é prova disso. E esses artistas ganham maiores audiências, esse é o ponto positivo. Um dado negativo pra mim de maiores consequências é que escutar rap nos anos 1990, por exemplo, te forçava a pensar sobre a questão racial, era um componente intrínseco ao rap. Isso pra um garoto branco, como era o meu caso, fazia toda a diferença. Hoje já há toda uma leva de artistas do rap que constroem seus imaginários a revelia da questão racial. Isso com certeza é um grande problema, porque eu não tenho dúvidas que o Brasil tem uma grande dívida com o rap que colocou o tema racial na ordem do dia.

 

Como você lida com as críticas do meio acadêmico e literário, principalmente, que não consideram letras do rap como literatura e/ou poesia. Inclusive Rap em tradução ao português quer dizer Ritmo e Poesia, ou seja, está no próprio nome do gênero. Qual sua visão sobre isso?

Isso já foi um grande problema e certamente influiu muito na recepção do Sobrevivendo no Inferno em 1997, porque essa questão de não respeitar o rap enquanto arte tinha alguma centralidade nos meios pensantes brasileiros. Mas hoje, e isso foi um avanço, é uma posição bem marginal e folclórica do debate cultural. Ninguém em sã consciência hoje há de desconsiderar a verve poética de um Mano Brown, por exemplo.

 

Como a leitura pode ser um transformador social e como obter um alcance maior de leitores/as?

A leitura confere dignidade e humaniza o leitor, isso quase que independe do tipo de leitura que se realiza – ainda que ache importante qualificar o melhor possível o tipo de leitura que se realiza. Alcançar mais leitores é um trabalho que deveria começar, primordialmente, nas escolas. Em segundo lugar, criar uma cultura entre os pais onde a existência de livros dentro de casa seja uma realidade. Ao autor, resta se colocar à disposição para situações nas quais possa falar diretamente com os leitores. Acho que é isso. Leitura é basicamente um trabalho de políticas públicas sólidas.