ESPECIAL | As estórias das contadoras 14/06/2024 - 16:57

Em depoimento a Francisco Camolezi; Maria, Antonia e Maísa narram suas experiências no Grupo de Contadores de Estórias Miguilim

 

Francisco Camolezi

 

Depoimento de Maísa Liboreiro de Araújo, 12 anos de idade, estudante do ensino fundamental e Miguilim

Bom, eu vou narrar para você agora o meu texto favorito que ele chama “Lua e mar", do livro Manuelzão e Miguilim.

"Pai largou de mão o serviço todo que tinha, montou a cavalo, então carecia de ir no Cocho, visitar seo Deográcias que perdeu o filho Paturi, visita de tristezas. Então, aquela noite, sem pai nem vovó Izidra, foi o dia mais bonito de todos. Tinha lua-cheia, e de noitinha Mãe disse que todos iam executar um passeio, até onde se quisesse, se entendesse. Eta fomos, assim subindo, para lá dos coqueiros. Mãe ia na frente, conversando com Luisaltino. E a gente vinha depois, com os cavalos-de-pau, a Chica trouxe uma boneca. A rosa cantava silêncio de cantigas, Maria Pretinha conversava com o vaqueiro José. Até os cachorros vinham — tirante Seu-Nome, que esse Pai tinha conduzido com ele na viagem. Quando a lua subiu no morro, grandona, os cachorros latiam, latiam. Drelina disse para ele: lua, luar! Lua, Luar. Vaqueiro Salúz disse que era o demônio que tinha entrado no corpo de Patori. Aí o Dito perguntou se Deus também não entrava no corpo das pessoas, mas o Vaqueiro Salúz não sabia. Dito semelhava sério — 'Dito, você não gosta de conversar do Paturi, que morreu?'. O Dito respondeu. — 'Estou vendo essa lua'.

Assim era bom, o Dito também gostasse. — 'Eu espio a lua, Dito, que fico querendo pensar muitas coisas de uma vez, as coisas todas'. — 'É luão. E lá nela tem o cavaleiro esbarrado'. O Dito examinava. Lua era o lugar mais distanciado que havia. Claro, impossível de tudo. Mãe conversando só com Luiz Altino. Atenção naquilo ela nem não estava pondo. Mas Miguilim queria que, a lua assim, Mãe conversasse com ele também, com Dito, com Drelina, a Chica, Tomèzinho. A gente olhava Mãe, imaginava saudade. Miguilim não sabia muitas coisas — 'Mãe, a gente então nunca vai poder ver o mar, nunca?'. Ela glosava que quem-sabe não, iam não, sempre, por pobreza de longe. — 'A gente não vai, Miguilim', o Dito afirmou — 'Acho que nunca! A gente é no sertão'. Então por que é que você indaga?' — Nada, não, Dito. Mas às vezes eu queria avistar o mar, só para não ter uma tristeza'. Essa resposta Mãe escutou, prezou; pegou na mão de Miguilim para perto dela".

Esse é o meu texto favorito porque só quem mora em Minas sabe como é bom ver o mar. A gente não tem o mar aqui, então, essa grandeza do texto é porque Miguilim morava em Minas Gerais e o sonho dele era ver o mar, para ele ter uma alegria. Esse texto é muito importante para mim por isso, porque eu também sempre quis ver o mar, desde quando eu era pequenininha. Quando eu vi, a primeira coisa que eu fiz foi colocar o dedo na água para ver se era salgada. Quando eu li esse texto pela primeira vez, eu entendi muito pouco, porque Guimarães Rosa é muito difícil. Mas aí, a minha professora me explicou. A mãe do Miguilim estava conversando só com o Luisaltino, e o Miguilim queria mais atenção para ele. Então, ele puxou esse assunto do mar e a mãe dele ficou com dó e resolveu andar mais pertinho dele. E ele gostou muito. Quando eu li esse texto pela primeira vez, eu estranhei um pouquinho, mas, mesmo assim, eu achei ele muito bonito, porque fala da lua, do mar. Mas depois que a Elisa, que é minha professora, me explicou, eu consegui entender tudo, e amei demais esse texto.

 

Maria Antonia Rodrigues Costa, 15 anos, estudante secundarista e Miguilim

Um trecho de Guimarães Rosa que eu tenho muito carinho é o texto “Seo Aristeu". Ele foi retirado do conto “Campo Geral”, do livro Manuelzão e Miguilim. Eu escolhi falar sobre esse trecho porque quem me apresentou foi o meu irmão, que fez parte do Grupo Miguilim. Eu conheci a literatura de João Guimarães Rosa por meio dele, principalmente por causa desse trechinho, porque esse era um trecho que o meu irmão tinha nos textos decorados e era um trecho que ele contava muito em apresentações. Então, ele narrava muito para mim, para poder treinar, e eu acabei criando um carinho imenso por esse texto. E depois de um tempinho, quando eu comecei a fazer parte do Grupo Miguilim, esse foi um dos primeiros trechos que eu peguei. E eu acho engraçado porque de tantas vezes que eu ouvi meu irmão narrando esse texto, ele ficou praticamente gravado na minha memória. Então, quando eu comecei a preparar esse texto, ele já estava praticamente decorado. Tinha só alguns pedacinhos que não estavam preparados. Mas a maior parte do texto já estava na minha memória, de tantas vezes que meu irmão narrou ele para mim. Esse textinho fala sobre um dia específico da vida de Miguilim, que é o protagonista do conto “Campo Geral”. Nesse dia específico o Miguilim estava se sentindo meio mal. Ele estava meio triste, não estava se sentindo muito bem. Meio doentinho. E nisso, os familiares dele estavam bem preocupados. Principalmente o Dito [irmão do Miguilim], porque eles eram muito próximos, então ele sentiu a falta do irmão. Nisso, ele saiu para fora de casa e viu o Seo Aristeu passando, descendo de cavalo. O Seo Aristeu era conhecido na região por ter muito jeito com criança. Ele era uma pessoa muito alegre, que tinha muita presença, e que muitas pessoas gostavam. E como o Dito estava preocupado com seu irmão, ele resolveu chamar Seo Aristeu para entrar na casa dele e ver como é que seu irmão estava. E o Seo Aristeu entrou e começou a conversar com Miguilim, e, nessa conversa, o Miguilim começou a ficar mais feliz e percebeu que na verdade ele não estava doente, ele só só tava meio tristinho. Era coisa de criança e logo, logo passava.

 

Maria Eduarda Romanelli, 23 anos, estudante de Direito e ex-miguilim

Como explicar o Grupo Miguilim? a importância dele na vida, né? Eu acredito que o Grupo Miguilim seja capaz de abrir horizontes que uma criança, que um jovem interiorano de Minas Gerais jamais seria capaz de fazer [por conta própria]. Ele nos proporciona um contato com a cultura, com a intelectualidade literária, com pessoas do ramo que realmente expandem nossa visão e nos fazem ver que o mundo não é só aquele cercadinho de oito mil pessoas, que você pode mais buscar mais dentro da própria intelectualidade. Eu, desde muito nova, acompanhava as apresentações do grupo Miguilim. Minha irmã mais velha foi Miguilim. A minha tia, que foi quem me criou, gostava muito desse lado cultural. Então, eu, muito nova, antes mesmo dos 7 de idade, já acompanhava as apresentações de Miguilim e já assistia apresentações teatrais na área de Guimarães. Eu lembro que, quando criança, antes de entrar no grupo, eu não entendia muito bem o que estavam narrando, mas eu gostava daquilo, gostava da musicalidade que tinha nas apresentações e aquilo me cativava. E eu fui crescendo e acabei entrando no Miguilim. Eu fui Miguilim do ano de 2012 ao ano de 2019, quando tinha entre 11 e 18 anos. Foi quando eu entrei no grupo que minha mente se abriu, porque lá é feito todo um trabalho de explicar a obra e de contextualizar os textos. Então, ali eu comecei a entender o que era falado naquelas apresentações. Eu comecei a aproveitar tudo que dava para se extrair daquelas apresentações. A primeira vez que eu contei estória, eu me lembro que, na verdade, foi um misto de sensações. Era um pouco de frio na barriga, de ansiedade, um pouco de vergonha por estar em público e, ao mesmo tempo, o narrar já me causava, naquela época, uma certa excitação em se realizar aquilo. E bom, chegamos à época de narrar Guimarães Rosa. O primeiro texto que eu narrei se chama “Seo Aristeu”. É um texto muito bonitinho do Campo Geral, que fala de um médico que vai cuidar de Miguilim, que tá numa crise. Mas é uma crise mais psicológica, uma coisa mais da idade, e se compara o Seo Aristeu a um ser do Sol. É um texto lindo. Mas o texto que mais me marcou, o texto que eu via que eu conseguia entrar mais e realmente narrar com mais propriedade é um que se chama “A Fuga de Riobaldo”. É um texto que tá no Grande Sertão Veredas, e ele retrata justamente essa saída do personagem Riobaldo para a busca de algo que lhe trouxesse paz, uma paz psicológica, paz emocional. Porque todo o decorrer do livro tem a questão do dúbio, de gostar ou não de um outro homem. E, justamente nesse texto, Riobaldo foge disso. Ele foge do acampamento que estava. Só que Diadorim percebe, e é um texto permeado de muita reflexão, de muita simbologia, com passagens extremamente poéticas. Na primeira vez que eu contei esse texto eu senti que ele já me tocou, que eu consegui in‐ terpretar ele de uma forma bem mais profunda que al‐ guns outros que eu também narrava. E hoje em dia eu continuo narrando. Narro histórias em um outro grupo. Mas eu percebo que este texto ainda consegue extrair de mim uma forma de narrar que em poucos eu consigo colocar. Entende? Parece que cada narrador tem a conexão com um texto que às vezes transcende. É algo místico, mesmo. Só com a apresentação para quem está assistindo possa entender. Mas, em suma, eu diria que o contato com as obras de Guimarães é transformador.. De fato, é um divisor de águas na vida de quem já foi Miguilim ou de quem ainda será Miguilim, eu posso te garantir isso. É algo que nos liberta. Nos liberta de uma cultura que às vezes é muito aprisionada. E não que seja ruim, mas é porque, às vezes, a gente quer buscar outras coisas. Inclusive, atualmente eu trabalho com pesquisa científica dentro da obra de Guimarães. Mesmo na faculdade de Direito, eu estudo a obra literária por meio desse olhar político, desse olhar de justiça, desse olhar moralista que muitas obras carregam. Então, por mais que seja uma literatura exímia de se estudar, também nos possibilita abranger outros campos de pesquisa. E isso, sem dúvida, foi o que formou a maior parte do meu intelecto. Hoje eu consigo ter destaque em empregos, eu consigo ter destaque acadêmico por ter sido Miguilim e por conhecer a obra de Guimarães. Então, o que eu posso realmente falar do Projeto Miguilim é que ele transforma vidas.