ESPECIAL | A cidade como protagonista 21/12/2022 - 19:15

Autores com formações diversas buscam explicar a complexidade da cidade a partir de histórias esquecidas e ignoradas

 

Isabella Serena e Juliana Sehn

 

Para Raphaela Corsi, quadrinista e professora na Gibiteca, Curitiba reúne muitas cidades em uma só — mas a grande maioria das pessoas ainda não entendeu isso. Sua HQ Sankofa: a História dos Afro-curitibanos (Editora Humaita, 2022) integra uma safra de livros recentes que retratam fatos e personagens históricos locais a partir de diferentes linguagens e novas perspectivas. São obras produzidas por autores com formações diversas (jornalismo, arquitetura, fotografia, artes gráficas) e o mesmo desejo: mostrar, por meio de histórias muitas vezes esquecidas ou ignoradas, que a cidade é muito mais complexa do que parece.

Raphaela conta que só passou a prestar atenção nessa complexidade durante a faculdade. Na escola, se falava muito pouco sobre a memória da capital do estado. “Curitiba, primeiro, era o que eu via na rua. Ir nas feirinhas de domingo, visitar um ou outro ponto turístico e aproveitar a cidade. Mas estudar, aprender ou não aprender sobre Curitiba na escola, não fazia diferença”, diz.

O interesse sobre a história local só se intensificou em 2016, quando Raphaela passou a fazer parte do Centro Cultural Humaita, voltado para os estudos sobre a presença negra na cidade. De acordo com os pesquisadores ligados ao grupo, os registros históricos de Curitiba são construídos principalmente a partir da chegada dos imigrantes. “Então, cadê o resto dessa história que aconteceu antes do século XX?”, questiona a artista.

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Raphaela Corsi

 

Investigando mais a fundo, o centro passou a encontrar vestígios e memórias do povo negro que chegou até aqui escravizado e ajudou a construiu a cidade no período anterior à intensificação da imigração. A partir daí, o Humaita, que também atua como editora, começou a publicar pequenos livros abordando esses pedaços de história que não aparecem em outros lugares.

Mais tarde, já formada em Artes Visuais, Raphaela Corsi decidiu unir os interesses pela arte e pela antropologia e propôs a publicação de um livro em quadrinhos sobre a história afro-curitibana, em parceria com o centro. A ideia era despertar um interesse maior nas pessoas sobre as histórias pesquisadas e publicadas pelo Humaita. Além disso, seus quadrinhos ajudam a suprir não apenas a carência de registros escritos sobre o tema, mas também a falta de imagens.

Durante a produção de Sankofa: a História dos Afro-curitibanos, foram realizadas diversas discussões com os participantes do centro cultural. "Sou uma pessoa branca, então até onde posso ir? Porque essa história não é minha. Nós discutimos muito entre nós sobre o racismo não ser um problema só de pessoas negras ou só de pessoas brancas. Todo mundo tem que estar falando disso”, conta.

 

LAÇOS ESTREITOS

O jornalista Diego Antonelli escreve sobre Curitiba a partir do que considera a função social do jornalismo: levar informações ao público em uma linguagem acessível. Autor de 11 livros, grande parte deles sobre a História do Paraná, ele acredita que a construção social e cultural do estado está diretamente ligada à colonização e às ondas migratórias.

Entre seus principais trabalhos está o projeto Vindas: Memórias da Imigração, publicado em dois volumes pelas editoras ABC Projetos (2018) e EdUFSC (2022). Ele conta que o método de produção envolveu uma convivência mais próxima com os imigrantes entrevistados, para colher informações por meio de relatos orais. Somente depois iniciou a fase de checagem de bibliografias e conversas com historiadores.

Segundo ele, foi um processo intenso, pois inevitavelmente surgiram laços estreitos e uma confiança mútua entre os dois lados. “Já me emocionei com muitas histórias de vida. Não foram raras as entrevistas realizadas com pessoas perseguidas por regimes totalitários, vítimas de repressão, que fugiram de seu país natal e jamais voltaram a ver seus familiares”, relata o jornalista.

 

PATRIMÔNIO NEGLIGENCIADO

A arquiteta e urbanista Iaskara S. Florenzano conta que sempre se interessou pelo que está “por trás ou por baixo” da cidade. Por fatos que não são oficiais, que estão à margem ou sendo esquecidos. “Sempre estive em busca daquilo que a história não contava ou escondia, tentando o tempo todo ter um ‘olhar estrangeiro’ sobre Curitiba, para conseguir me surpreender e não perder a sensibilidade”, explica.

Durante seus estudos, Iaskara percebeu uma lacuna na pesquisa sobre o tema de patrimônio industrial, recentemente incluído entre as “categorias patrimoniais”. Tratam-se de locais e infraestruturas de diversos tipos que possuem algum valor histórico, científico, social ou arquitetônico. De acordo com a pesquisadora, essas estruturas podem ser consideradas como “documentos arqueológicos autênticos das dinâmicas sociais impressas sobre o seu território”.

A arquiteta acredita que os patrimônios industriais podem explicar um pedaço importante do desenvolvimento urbano de Curitiba no século XX. Estudar e discutir o tema é essencial para evitar o risco de demolições irresponsáveis e o consequente apagamento de estruturas históricas que fazem parte da cultura da cidade.

Uma dessas situações marcou Iaskara e a ajudou a definir o objeto de estudo de seu projeto mais recente: a demolição, em 2011, da fábrica da Matte Leão, no bairro Rebouças, o primeiro distrito industrial da cidade (em seu lugar, foi construído um enorme templo da Igreja Universal do Reino de Deus). “Foi definitivo. Assisti, atônita, ao desmantelamento daquele conjunto e precisava entender o tamanho do desastre”, lembra.

Essa inquietação resultou em uma pesquisa e na publicação do livro Um Olhar Sobre o Patrimônio Industrial do Rebouças (Edição do autor, 2022) — bairro que ainda não é reconhecido como uma área a ser preservada, estando sujeita ao desaparecimento. “Há um consenso de que só preservamos aquilo que conhecemos e com o que nos identificamos. Dessa forma, achei importante que a pesquisa ficasse registrada em livro, saísse do universo acadêmico e fosse divulgada para um público mais abrangente”, afirma a arquiteta.

 

NARRADOR DA CIDADE

Em 2008, José Carlos Fernandes foi convidado pelo editor Oscar Röcker Neto a integrar um grupo de cronistas que estava sendo formado no jornal Gazeta do Povo. A equipe contava com nomes da literatura como Cristovão Tezza, Roberto Gomes e Carlos Dala Stella — além de receber colaborações de Miguel Sanches Neto, que selecionou o time. “Eu me perguntei: ‘O que vou fazer no meio dessas pessoas?’ Me senti intimidado”, conta o jornalista e professor da Universidade Federal do Paraná.

Zeca, como é conhecido entre seus alunos e colegas de jornalismo, propôs, em contrapartida, que, em vez de crônicas produzidas com um toque pessoal, escrevesse microrreportagens sobre a cidade e seus personagens. “Eu achava que a minha vida não era tão interessante assim. Mas a cidade poderia ser uma protagonista”, diz o jornalista.

Segundo ele, a proposta de transformar Curitiba em personagem das crônicas se relaciona com uma das características essenciais do jornalismo moderno, em que o repórter é um narrador da cidade. Também veio de sua observação sobre estudos que apontavam um aumento da violência na capital do estado durante os anos 2000 — o que desmotivava cada vez mais a interação dos moradores com o ambiente. A partir deste contexto, suas crônicas buscavam encorajar as pessoas a saírem e olharem mais para o espaço em que viviam.

Já são mais de 500 textos publicados desde então, em que Zeca faz o exercício de buscar pelos “semianônimos” de Curitiba. Ou seja, figuras que não estão muito em evidência, mas que ainda assim possuem histórias especiais que tenham tocado um relativo número de pessoas. Um dos pontos centrais desse trabalho é o que ele chama “espírito humano”: uma característica específica que geralmente humaniza e quebra o estereótipo do personagem.

Recentemente, José Carlos Fernandes lançou Um Lugar Chamado Cocaco — A Galeria que Abrigou uma Geração de Modernos (Editora Insight, 2022). O livro conta a trajetória de um pequeno espaço de 70 metros quadrados, criado no Centro durante os anos 1950, mas que ajudou a inaugurar a arte moderna no Paraná.

A produção do livro começou quando Zeca soube da venda do acervo de Eugênia Petriu, dona da Cocaco. O jornalista passou a frequentar sua casa e realizou, em cerca de dez encontros, entrevistas longas com a galerista, que na época já tinha mais de 70 anos. “Foi uma delícia de fazer. Como é que pode um espaço tão pequeno ter sido um lugar em que os jovens se reuniam para conversar, trocar ideias, pensar cultura, falar de arte e de outras coisas também?”, reflete.

 

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José Carlos Fernandes. Foto: Maga Van Ervan

 

MÚLTIPLOS LADOS

Após a experiência de aprender sobre “outros lados de Curitiba”, Raphaela Corsi conta que finalmente sabe onde está. “Curitiba é uma cidade que ganharia muito se entendesse esses múltiplos lados que possui. Do ponto de vista das mulheres, das pessoas negras, das pessoas da periferia, por exemplo”, afirma a artista, que procura transpor para os quadrinhos visões diferentes presentes em um mesmo espaço.

Pensando na literatura curitibana de hoje, José Carlos Fernandes acredita (alertando que pode ser uma “hipótese furada”) que existem menos escritores falando sobre a cidade. Ele cita o escritor Miguel Sanches Neto, para quem a literatura curitibana e paranaense permanece muito presa ao simbolismo. Dentro dessa perspectiva, é mais comum ler escritores discorrendo a partir de um mundo etéreo e que produzem textos mais existencialistas e menos conectados com o território — o oposto de um tempo em que os escritores, segundo Zeca, eram a tradução dos lugares em que viviam.

“Não acho que seja um problema, talvez não seja”, diz o cronista, lembrando da obra de Caio Fernando Abreu, que nos “libertou” um pouco do território, possibilitando a criação de cenários mais existenciais. “Ele vai mostrar o lugar onde ele queria estar. Ele não estava preso”, reflete Fernandes. “O Caio estava nos inferninhos de São Paulo ou podia estar em Porto Alegre, o personagem dele podia estar em qualquer lugar.”

Do ponto de vista da História, Diego Antonelli observa diferenças entre os autores do passado e do presente. Para ele, antes havia, com exceções, a predominância de uma narrativa em favor dos “vencedores”, das classes dominantes. Hoje, ao contrário, Antonelli percebe uma preocupação maior em contar os meandros mais obscuros e esquecidos. “Noto que agora há uma busca maior para se contar a história que não foi tão bem contada. A história de povos que foram subjugados, como os escravos africanos e os indígenas”, explica o pesquisador.

Já Iaskara S. Florenzano acredita que Curitiba tem um jeito único de se colocar no mundo. Segundo ela, a capital paranaense se orgulha de quase sempre se manter fora das tendências e do mainstream, produzindo arte, cultura e conhecimento de um modo muito particular. “Da literatura ao cinema, da música às HQs, do teatro às artes plásticas, temos um modo que é nosso, que nem sempre é compreendido e muitas vezes é tido como acanhado ou tímido. Mas nunca menor”, conclui.