ESPECIAL | Um monumento de palavras 27/03/2024 - 16:47

Estante Afro Maria Águeda, na Biblioteca Pública do Paraná, marca a importância da decolonização de acervos, com iniciativa pioneira nos espaços culturais do país

Cristine Pieske

 

Há nela uma presença diferente, uma força, um pulsar. Algo que chama o olhar e que convida, de imediato, à aproximação. Carregada de memórias, mensageira de histórias e saberes negros, a Estante Afro Maria Águeda ergue-se como símbolo da vitória contra o esquecimento, da batalha ganha pelas palavras ao silêncio. Uma estante-monumento.

Ela acolhe, no hall do segundo andar da Biblioteca Pública do Paraná (BPP), os 500 livros doados pelo Centro Cultural Humaitá, associação cultural de Curitiba dedicada ao estudo e à pesquisa da arte e da cultura afro-brasileira. Cuidadosamente construída por Melissa Reinehr e Adegmar José da Silva, o Mestre Kandiero, ambos pesquisadores, ativistas, produtores culturais e fundadores do Humaitá, a coleção inclui publicações de diversas áreas — de literatura infantil a ciências sociais, história, biografia, artes visuais e poesia — que registram as muitas nuances da experiência de povos africanos e seus descendentes em terras brasileiras e paranaenses.

Quase todos os títulos são novos no acervo da Biblioteca, o que reafirma a relevância desta doação. Outros 1.500 livros que integram a coleção do Centro Humaitá poderão vir a completar o conjunto inicial já incorporado pela Biblioteca. A Estante Afro também está aberta a doações de quem desejar contribuir para a ampliação do conhecimento sobre a temática afro. Dos títulos atuais, todos já estão disponíveis para empréstimo.

A existência de uma coleção específica sobre a temática afro é algo ainda pouco frequente entre as bibliotecas públicas brasileiras, sendo a BPP uma das pioneiras nesse movimento. A iniciativa apresenta, ainda, a particularidade de ser um tributo a uma personalidade importante para a história dos afrodescendentes no Paraná. O nome escolhido para a estante recorda a primeira pessoa negra cuja identidade ficou registrada, em documentos, por ter resistido ao racismo da sociedade escravagista curitibana. Maria Águeda, mulher livre que foi castigada por defender sua liberdade na Curitiba de 1804, é também uma homenagem às mulheres negras e ao matriarcado africano, muito forte até hoje nas comunidades quilombolas.

O trabalho urgente a ser feito no resgate e na defesa da produção intelectual e artística dos afrodescendentes do Paraná foi o que motivou, desde o início, segundo Kandiero, a proposta de doação do acervo do Centro Cultural Humaitá para a BPP. O epistemicídio — apagamento do conhecimento e da memória negra —, diz o ativista, muitas vezes ocorre de forma consciente ou inconsciente nas instituições, e elas precisam estar atentas à importância do seu papel na criação e na consolidação de espaços que reconheçam a contribuição do pensamento negro na formação cultural do Estado. Ele cita dois autores paranaenses que são afrodescendentes e que até hoje raramente são reconhecidos como tal: Bento Cego (1821-?), poeta e trovador do município de Antonina, e Emiliano Perneta (1866-1921), conhecido como o “Príncipe dos Poetas do Paraná”. A produção paranaense negra atual, fervilhante não só nas periferias, mas também na academia, continua encontrando barreiras para o seu reconhecimento e circulação.

O diretor da Biblioteca Pública do Paraná, Luiz Felipe Leprevost, defende a importância da Estante Afro Maria Águeda como um passo inicial para uma maior presença de autores e autoras negros e negras, e no reconhecimento da instituição como um espaço democrático e diverso. “A Biblioteca tem vontade de ser colaboradora das necessidades de resposta que a sociedade precisa dar a si mesmo no seu crescimento e no seu desenvolvimento, na diminuição dos seus preconceitos”, afirma.

 

Livros e antirracismo

 

Leitor ávido desde os 12 anos, quando cruzava a cidade de Curitiba de ônibus sempre na companhia de livros, Kandiero escolheu a literatura e a palavra como instrumentos de ação. Ele, que também é escritor e editor, já fez parte do Conselho Nacional de Política Cultural e foi assessor de Política da Promoção da Igualdade Racial da Prefeitura Municipal de Curitiba, defende a importância da leitura na criação de uma cultura de respeito e de reconhecimento da contribuição dos afrodescendentes. “Todos os livros da Estante Afro Maria Águeda trazem um pouco da cosmovisão africana, e quando uma pessoa conhece diversas verdades, diversas histórias, ela constrói uma consciência negra, uma consciência afrocentrada e uma consciência antirracista”, afirma. Essa é uma tarefa, ressalta, que cabe não apenas às pessoas negras, mas também às pessoas brancas que se debruçam com seriedade sobre o tema.

Um dos grandes entusiastas da criação da estante é o advogado e leitor João Carlos de Freitas, autor da obra Colorado: A Primeira Escola de Samba de Curitiba. Frequentador assíduo da Biblioteca Pública há 63 anos — desde que descobriu, ainda menino, a possibilidade de ler gratuitamente os livros que a condição econômica da família não permitia comprar —, João Carlos considera que a coleção Maria Águeda é um reconhecimento importante à comunidade afrodescendente do Paraná. “Uma instituição com tantos anos de história precisava de algo assim, porque até então não havia nada específico sobre a cultura negra”, comemora. A partir de agora, diz, as pessoas negras que quiserem conhecer sua própria história já têm onde buscá-la, com acesso a publicações de qualidade. Ele acredita que iniciativas como essa ajudam a combater a ignorância e o racismo, dois sinônimos para a violência que ameaça a vida de tantas pessoas.

Após mais de 20 anos da obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, em todas as escolas públicas e privadas brasileiras, determinada pela Lei 10.639, de 2003, houve muitos avanços na valorização da cultura negra. Porém, como analisa a socióloga e educadora Edna Aparecida Coqueiro, que atuou como coordenadora da Educação das Relações da Diversidade Étnico-Racial na Secretaria de Estado da Educação e primeira presidente do Conselho Estadual da Promoção da Igualdade Racial, ainda é necessário haver um reconhecimento maior da importância da educação antirracista, nos âmbitos formal e informal. Ela considera que a criação da estante afro representa uma oportunidade extraordinária, principalmente para as novas gerações de leitores, educadores e pesquisadores. Mas defende que a disponibilização dos livros esteja conjugada com outras ações, com o objetivo de ampliar a discussão e incentivar o comprometimento de todos com a questão racial. Do contrário, os livros ficarão parados. Edna ressalta a importância da realização de atividades que coloquem o foco no protagonismo das pessoas negras e que articulem grupos de diferentes perfis. Ela defende: “A Biblioteca Pública tem força para produzir ações voltadas a vários públicos, o que é fundamental, já que a luta antirracista envolve a todos”.

A importância da estante afro para professores e estudantes é destacada pela educadora, contadora de histórias e autora Rosane Arminda Pereira, que atua na rede estadual de ensino e integra o Conselho Estadual de Cultura na área de Literatura, Livro e Leitura. Para os profissionais da Educação, ela acredita que deva haver um questionamento sobre como os conteúdos presentes na Estante Maria Águeda podem ser usados em formações de letramento racial destinadas a docentes. Para os alunos, a questão pendente a ser resolvida é mais profunda: como promover o acesso à Biblioteca e encurtar as distâncias — reais e simbólicas — dos estudantes das periferias e incentivá-los a se apropriarem desse espaço, que para muitos continua afastado das suas realidades? Rosane Arminda, que teve sua obra de poesia Ubuntu Mulheres selecionada pelo Prêmio Carolina Maria de Jesus de 2023, também defende a importância de mais ações afirmativas voltadas a desenvolver nos jovens o encantamento pela leitura, para além do ambiente escolar.

 

Desafios técnicos

 

Inaugurada em setembro de 2023, a Estante Maria Águeda é a primeira coleção especial da Biblioteca Pública do Paraná, como explica o responsável técnico e bibliotecário Bruno Leonardi, chefe da Seção de Documentação Paranaense. Além de possuir uma catalogação específica, cada volume é sinalizado na lombada com uma etiqueta da Coleção Afro. O objetivo é permitir uma rápida identificação dos seus títulos entre os mais de 750 mil itens que compõem o acervo total da BPP.

O responsável técnico comenta que, desde o início, o desejo foi que a coleção tivesse um caráter dinâmico, permitindo a incorporação de novos títulos provenientes de doações e aquisições específicas. Também tem sido discutida a possibilidade de, futuramente, identificar nas demais seções da Biblioteca livros que já fazem parte do acervo e que abordam a temática afro, com a mesma etiqueta da coleção especial. Nesse caso, os livros permaneceriam fisicamente distribuídos nas salas onde já estão atualmente, mas em diálogo direto com os demais títulos da estante. Essas e outras questões deverão ser analisadas em breve no processo de curadoria relacionado à expansão da estante.

 

Vozes, no plural

 

O aguardado processo de decolonização de acervos de museus e bibliotecas, que vem ocorrendo por todo o mundo, define a necessidade de atualização das narrativas históricas não somente por meio da reorganização e da correta identificação de obras que já fazem parte das coleções, mas também da aquisição de novos itens ainda não presentes nos acervos. Em casos mais complexos e em contextos específicos, pode implicar até mesmo na devolução de objetos às comunidades de origem. É dentro deste movimento, de abertura das instituições a registros materiais até então excluídos ou invisibilizados, que as novas coleções sobre as temáticas afro e indígena representam um ponto de inflexão importante para o questionamento das versões únicas há muito estabelecidas.

Com as mudanças trazidas pelo ensino obrigatório da história e cultura afro-brasileira e africana, muitas instituições culturais brasileiras começaram a dar resposta às demandas sociais para oxigenar seus acervos e ampliar o acesso a autores que trabalham sobre essas questões. A decisão de abrir espaço a uma maior pluralidade de vozes deve ser considerada, antes de tudo, uma questão de justiça à memória de todos os povos que participaram da construção das sociedades atuais. Por isso, a criação dessa coleção especial no Paraná tem sido comemorada como um marco histórico, capaz de inspirar outras bibliotecas a romperem com longos anos de silenciamento.

A partir de agora, o objetivo é fazer com que a presença de livros, escritores e leitores interessados na temática africana continue crescendo. Daí a importância de que a estante receba mais publicações, principalmente de títulos que tratem da realidade dos negros e negras nos diversos municípios do Paraná. O desejo do diretor da BPP e também dos doadores da coleção é que, dentro de alguns anos, este acervo ocupe um espaço ainda maior na instituição, de acordo com a importância da produção cultural negra no Estado.

Em tempos em que os livros que denunciam a crueza do racismo na sociedade brasileira continuam a ser alvo de perseguições e censura — acaba de acontecer com O Avesso da Pele, obra de Jeferson Tenório, ganhadora do Prêmio Jabuti de 2022, retirada das bibliotecas de escolas públicas em três estados — a estante é, além de um gesto de reparação histórica, uma garantia de acesso livre e democrático ao conhecimento. E é, também, um convite ao diálogo entre todas as pessoas, negras e não-negras, que reconhecem o poder das palavras na construção da empatia, do respeito e da igualdade.

Escolham seus livros, sentem-se. Maria Águeda tem muito a dizer.

 

Cristine Pieske vive e trabalha em Curitiba. É jornalista e pós-graduada em Museologia pela Universidade Nova de Lisboa. Pesquisa temas relacionados à memória coletiva e seus mecanismos de transmissão, acessibilidade cultural e direitos humanos.