ESPECIAL | Um caso improvável 30/03/2023 - 14:49

Único autor de língua portuguesa a receber o Nobel, José Saramago jamais deixou de questionar e denunciar as desigualdades sociais que marcaram sua trajetória e de seus familiares

 

Juliana Sehn

Saramago é uma plantinha muito comum em hortas, terrenos baldios e beiras de estrada do território português. O caule áspero e os pelos grossos contrastam com as florezinhas delicadas em forma de cruz, brancas ou amarelas, que aparecem no fim do inverno. Cozidas com azeite e sal, as folhas picantes e ricas em vitaminas e sais minerais podem ser transformadas em uma refeição. No entanto, essa utilização caiu em desuso por ser associada a momentos de fome e privação, em que pessoas mais pobres recorriam a ela para se alimentar.

Quando José de Sousa e Maria da Piedade — habitantes da aldeia de Azinhaga, na província portuguesa do Ribatejo — registraram o nascimento do segundo filho, o funcionário do cartório estava bêbado e decidiu, por vontade própria, acrescentar ao documento da criança o sobrenome “Saramago”, apelido pelo qual era conhecida a família do casal, pela sua condição de pobreza. Assim, o bebê foi batizado de José de Sousa Saramago (1922-2010), fato que só foi descoberto quando o menino completou sete anos e ingressou no ensino primário.

O pai, que não gostava do apelido desde que se mudara para Lisboa, ficou furioso. Mais tarde, porém, não apenas aceitou o sobrenome do filho, como adotou oficialmente para si mesmo, tornando-se também José de Sousa Saramago. “Suponho que deveria ter sido este o único caso, na história da humanidade, em que foi o filho a dar nome ao pai”, diz Saramago, no livro autobiográfico As Pequenas Memórias (Companhia das Letras, 2006). Mais tarde, o nome ficaria conhecido mundialmente pelo primeiro e único Prêmio Nobel de Literatura concedido a um escritor de língua portuguesa.

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José Saramago

 

De um extremo ao outro

O jovem Saramago tirava boas notas na escola primária e no liceu, onde era estimado por colegas e professores. No entanto, os pais do menino não puderam mantê-lo na escola, o que o levou a concluir sua educação por meio de uma formação profissional como serralheiro mecânico — curso que ofertava, surpreendentemente, uma disciplina de Literatura, na qual ele teve o primeiro contato com a área. Após terminar os estudos, enquanto trabalhava em uma serralheria, começou a frequentar uma biblioteca pública de Lisboa. “E foi aí, sem ajudas nem conselhos, apenas guiado pela curiosidade e pela vontade de aprender, que o meu gosto pela leitura se desenvolveu e apurou”, diz o escritor em uma autobiografia disponível no site da Fundação José Saramago.

Em 1947, quando nascia sua única filha, Violante, nasceu também o seu primeiro livro, Terra do Pecado (Editorial Minerva). Após escrever mais dois romances, um deles inacabado, Saramago abandonou o projeto da literatura, convencido de que não tinha nada a dizer que valesse a pena. Passou os 19 anos seguintes sem escrever, voltando em 1966, com Os Poemas Possíveis (Porto Editora). Após o golpe político-militar de 1974 em Portugal, ele foi demitido do Diário de Notícias, onde era diretor adjunto, o que o levou a se dedicar integralmente à literatura. A partir daí, Saramago escreveu diversos romances, além de contos e peças de teatro. Em 1995, publicou Ensaio Sobre a Cegueira (Companhia das Letras), que viria a ser a sua obra mais conhecida. Ganha, no mesmo ano, o Prêmio Camões e, em 1998, o Nobel de Literatura.

Para além da qualidade literária, Saramago impressiona por ser um “caso improvável”, como comenta o ensaísta e professor português Carlos Reis, comissário das comemorações do centenário do autor em 2022, e curador da exposição Voltar aos Passos que Foram Dados, atualmente em cartaz na Biblioteca Pública do Paraná após circular por outras cidades brasileiras e portuguesas.

 

“É extraordinária essa capacidade de um sujeito como Saramago sair de condições tão precárias do ponto de vista social e econômico e atravessar, em poucos anos, de um extremo ao outro, e de uma maneira tão íntegra e qualificada”, adiciona o pesquisador e produtor cultural Érico Vital Brazil, um dos organizadores do livro Saramagos: 100 Anos de José (Solar do Rosário).

Mesmo chegando a esse outro extremo, Saramago manteve-se sempre muito ligado aos primeiros anos de vida, marcados por dificuldades e escassez. A conexão permanente com essa primeira memória contribuiu para que o autor se tornasse um militante e crítico persistente dos sistemas de poder vigentes e da injustiça entre as relações humanas. Saramago nunca deixaria para trás a realidade que viu e vivenciou no passado. “Tentei não fazer nada na vida que não envergonhasse a criança que fui”, diz ele em As Pequenas Memórias.


Críticas diretas

Marcado por uma trajetória de cenários contrastantes, o escritor português se tornava, quanto mais conhecido, também mais polêmico, em consequência das críticas diretas que fazia em relação a assuntos como desigualdade social e capitalismo. Saramago tocava a ferida de muita gente até mesmo em relação à religião, em um país como Portugal, de população majoritariamente católica. Em 1993, antes do Camões e do Nobel, ao ter o romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo (Companhia das Letras) vetado de ser apresentado no Prêmio Literário Europeu pela censura do governo português — que o considerou ofensivo aos católicos —, o autor e sua esposa Pilar del Río decidiram se mudar para a ilha Lanzarote.

Também causava alvoroço o fato de o português se considerar comunista. Após o desmoronamento da União Soviética, quando questionado sobre esse posicionamento político, ele declarou ser um “comunista de espírito”, no sentido de adotar o marxismo como regra de pensamento e comportamento, com base especialmente em princípios humanistas.

Os questionamentos que apimentavam as falas do autor e provocavam debates por onde passava marcavam também os temas centrais de seus livros. Para a professora de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Paraná e coordenadora da Cátedra Camões José Saramago da UFPR, Patrícia Cardoso, é justamente a preocupação de Saramago com as questões sociais, para além da escrita singular, que concedem maior qualidade à sua obra. “Ele era um ativista. A sua preocupação não se restringia ao âmbito do texto literário”, explica Patrícia.

Érico Vital Brazil enxerga a combinação entre a militância e a literatura de Saramago como uma ferramenta poderosa que o autor soube utilizar, conforme foi ganhando mais espaço, para reivindicar direitos humanos básicos e universais. “A arma dele é a palavra”, comenta.

A capacidade do autor português de tocar em assuntos essenciais nas relações humanas permaneceu atual mesmo após a sua morte, a exemplo do período mais agressivo da pandemia do coronavírus, em que seu Ensaio Sobre a Cegueira esteve entre os livros mais vendidos no Brasil — chegando à nona posição entre os best-sellers da lista de ficção da revista Veja em março de 2020. A obra, que inspirou um filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, trata de uma epidemia de cegueira branca que se espalha pelo mundo e impulsiona a capacidade de violência e egoísmo da humanidade em meio ao caos.

 

Língua escondida

“O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever”, afirmou José Saramago há 25 anos, na cerimônia em que recebeu o prêmio Nobel de Literatura. O escritor se referia a seu avô materno, Jerónimo Melrinho, que, junto com a esposa Josefa Caixinha, passou por uma vida de escassez na aldeia de Azinhaga. Ainda assim, Jerónimo era apegado à vida que tinha, a ponto de abraçar chorando cada árvore de seu quintal para se despedir no momento em sentiu a morte se aproximar. "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer", disse Josefa ao neto, quando o marido já havia partido.

Ao homenagear os avós em um evento solene como a cerimônia do Prêmio Nobel, Saramago chacoalhava mais uma vez quem o estivesse assistindo, chamando a atenção para a injustiça e a desigualdade social.

Desde então, nenhum outro autor de língua portuguesa recebeu um Nobel de Literatura. Antes de 1998, já se debatia quem poderia ser o primeiro escritor do idioma a ser laureado pela Academia Sueca. Jorge Amado e José Saramago comentavam sobre a possibilidade de um dos dois ser escolhido, ambos comprometendo-se a se convidarem à cerimônia caso a conquista de fato ocorresse por um ou outro. Mais tarde, abatido por problemas da velhice e com uma profunda depressão, o brasileiro interrompeu a correspondência com o amigo. No entanto, quando soube que Saramago finalmente havia vencido o prêmio tão confabulado entre os dois, reuniu forças para ditar uma mensagem parabenizando-o, em sua última carta ao português.

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Jorge Amado e José Saramago

 

Hoje, os debates permanecem diante do fato de que um segundo escritor ou escritora do nosso idioma ainda não recebeu o Nobel. As principais hipóteses para explicar o cenário têm a ver com o âmbito político, econômico e social que influencia a premiação, além do pequeno espaço ocupado pela língua portuguesa em escala mundial.

“A língua portuguesa, como diz o grande escritor Machado de Assis, é uma língua escusa, um pouco escondida. Não é uma língua de poder”, explica Carlos Reis. O professor acredita que, para escritores do idioma chegarem ao patamar do prêmio Nobel, não basta apenas a qualidade. Há a necessidade de uma boa tradução em diversas línguas, além da circulação em editoras ou jornais que forneçam destaque internacional. Reis adiciona que o fato de Saramago ter vivido na Espanha o ajudou muito nesse sentido, uma vez que o país é uma caixa de ressonância muito mais forte do que Portugal.

Por conta desses fatores, muitos autores considerados geniais pelo professor não chegaram a ser premiados. Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado e João Cabral de Melo Neto são alguns dos brasileiros citados como merecedores não reconhecidos pelo Nobel, na opinião de Carlos Reis e do próprio Saramago, como disse em entrevista ao Caderno G da Gazeta do Povo no ano de 2000.

Antes de receber o prêmio, o autor português lamentou a Jorge Amado: “Não há nada que fazer. Eles não gostam de nós. Não gostam da língua portuguesa (que deve parecer-lhes sueca...) não gostam das literaturas que em português se pensam, sentem e escrevem”.

Patrícia Cardoso acredita que o ativismo e a preocupação de Saramago com questões fundamentais à sociedade, as quais transcendem ao próprio texto, foram elementos que também contribuíram para que ele recebesse a distinção. Para a professora, assim como para Érico Vital Brazil, a capacidade do escritor de tocar o que há de mais humano nos leitores, lidando com questões universais, que ultrapassam a barreira da língua, é uma característica que o destacou como candidato ao Nobel.

Érico também reitera a existência de um lado político da premiação que dificulta a visibilidade mesmo dos mais excelentes autores lusófonos. Para o pesquisador, a falta de políticas públicas que incentivem e valorizem a cultura certamente têm um impacto nessa questão. “Ninguém pode dar valor ao que não conhece. Se você não tem contato com aquilo, não existe”, explica.