ESPECIAL | Tremor artístico 28/01/2022 - 19:08

Centenário da Semana de Arte Moderna estimula celebrações e críticas sobre seu impacto, além de movimentar as mídias e o cenário editorial

Gisele Eberspächer

 

 

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Foto: reprodução

 

Janeiro de 1922 terminou, no Brasil, com um leve tremor. Um terremoto que, além de virar manchete de jornal, serviu como metáfora para o tremor artístico que aconteceria logo mais, entre 11 e 18 de fevereiro: a Semana de Arte Moderna. Realizada na cidade de São Paulo por artistas como Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Anita Malfatti e Mário de Andrade, a Semana foi financiada por políticos e figuras da elite financeira paulista, principalmente a oligarquia cafeeira. O evento trouxe para o público uma grande variedade de obras — de declamação de poesia à exposição de arte visual, de concertos musicais a maquetes de arquitetura, o ideal modernista se manifestou de diversas maneiras. Mas, seja na escultura, seja nos livros, o grupo apresentou uma arte que tinha como objetivo romper com a tradição estética anterior, buscando uma inspiração em vanguardas internacionais para valorizar o local e o nacional com uma nova linguagem.

Cem anos depois, o evento é celebrado, comentado e criticado. Na época, já criou polêmica com o grupo que ficou conhecido como "passadista", que via nas novas formas do modernismo uma feiura e simplicidade desprovidas de valor estético. Monteiro Lobato, por exemplo, fez uma crítica forte às obras de Anita Malfatti, afirmando que eram semelhantes aos quadros que ornam as paredes internas dos manicômios. Para Lobato, essa crítica se baseia na maneira de ver o mundo — só uma visão normal das coisas leva ao que o autor chama de "arte pura". O texto, feito em ocasião de uma exposição de Malfatti, foi publicado em dezembro de 1917 no jornal O Estado de São Paulo e deu o tom da crítica que a Semana receberia em termos estéticos depois de sua realização.

A exposição de Malfatti em 1917 foi um dos eventos mais significativos do momento chamado pré-modernismo — ou seja, as manifestações artísticas com características modernistas antes de 1922. Outro destaque é o poema “Os Sapos”, de Manuel Bandeira, publicado em 1919, que apresenta uma crítica à poesia parnasiana. A Semana, usada como um marco, é um momento de celebração e institucionalização das ideias que já estavam circulando na obra de vários artistas, além de ter servido como incentivo para uma experimentação que continuou colhendo frutos nos anos seguintes.

É o caso de Macunaíma, de Mário de Andrade, tido como um dos grandes exemplos do Modernismo brasileiro em termos literários. Publicado em 1928, depois de o autor ter se dedicado ao estudo das origens do povo brasileiro, apresenta o índio Macunaíma e as aventuras entre seu nascimento, sua morte e sua transformação em estrela. Para isso, o autor utiliza uma linguagem experimental, buscando expressões e lendas para construir a narrativa.

O próprio Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, tão conectado à proposta da Semana, foi publicado apenas em 1928. Em busca de uma linguagem literária "não-catequizada", o texto foi um incentivo para diversas produções posteriores.

Outra autora com uma obra marcada pelas propostas da Semana, apesar de não ter participado dela, é Patrícia Galvão, conhecida como Pagu. Ativista política, ela traz para as páginas um retrato da industrialização brasileira com foco na vida de seus trabalhadores.

Cem anos depois, o impacto da Semana na literatura e na arte brasileiras é inegável — tanto que é recebida com entusiasmo pelas editoras, pelos museus e por outros espaços culturais. E encontra nesse momento um espaço de reflexão do seu resultado e seus paralelos com a arte e o Brasil de hoje.

O historiador Francisco Alambert, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo, defende no artigo "A reinvenção da Semana" que o evento já foi criado como um mito, e que parte de sua repercussão deriva do fato de que é constantemente interpretado e reinterpretado, de acordo com os interesses de cada momento.

 

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Foto: Pagu / reprodução

 

A forma com que o centenário do evento vai reinventá-lo está em aberto, mas Alambert comenta um pouco sua percepção em uma entrevista por e-mail. "A maior parte das discussões que tenho acompanhado versa sobre motivos tolos, muito desatualizados (como a insistência em ficar repetindo a retórica dos 'excluídos' da Semana, do 'paulistrocentrismo' e outras formas de bairrismos atuais, coisa que vem dos anos 80). Há também a ênfase contemporânea voltada para arranjos identitários anti-modernistas (uma exceção é o extraordinário projeto AmarElo, do Emicida). E tudo isso quando vivemos a época em que todos os mais generosos projetos do século do modernismo vão sendo destroçados, junto com todo o país. Como já escrevi também, usando um conceito do filósofo da arte Didi-Huberman, a Semana, mais do que nunca, deveria ser vista como um ‘levante’ para alimentar a nossa imperiosa necessidade de sair do lodo do presente", comenta.

 

Contexto Histórico

A Semana está longe de ser um fato isolado — ao contrário, como veremos mais adiante, acontece em uma década importante para a literatura mundial —, mas ela também se passa em um momento de modernização do próprio país. Quarenta anos depois da abolição da escravatura, o país vivia um momento de ascensão política e econômica da República Velha. A mão de obra, formada por africanos recém-libertos e imigrantes recém-chegados da Europa em decorrência do comércio de café e crises sociais europeias, formou um grande grupo de trabalhadores nas cidades. "Em São Paulo e, sobretudo, na cidade de São Paulo, essas transformações foram mais fortes e rápidas, especialmente por conta da incipiente industrialização favorecida pela Primeira Guerra Mundial. Com a indústria, o comércio e a modernização tardia e acelerada, chegavam as ideias do modernismo e as reivindicações não menos modernas do movimento operário urbano (primeiro anarquista, depois comunista)", explica Alambert.

A própria Semana, de certa forma, já marca um centenário: a Independência do Brasil, em 1822. Cem anos depois, os artistas buscavam uma arte que também fosse independente e dialogasse com as especificidades do país, assim como uma linguagem literária que falasse português brasileiro.

Além disso, é curioso notar como a década de 1920 viu o controle da pandemia de Gripe Espanhola. O vírus chegou no Brasil em 1918, e os dois anos seguintes foram marcados por mortes e incertezas. Com isso, havia um momento de abertura e uma revolução de costumes.

Quando perguntado sobre possíveis paralelos entre a década de 1920 e o Brasil de hoje, Alambert afirma que o principal ponto de encontro é a crise. "E essa crise tem nome: Brasil — boçal, grotesco, desigual. A modernização conservadora e excludente continua reivindicando seus direitos. Por isso é preciso rever o modernismo revolucionário (do qual a Semana foi apenas um momento simbólico), levantá-lo novamente (criticando, sem anacronismos, seu erros e limites) para repetir o melhor dele: o desejo de ter um país justo, aberto ao mundo e a si mesmo", afirma.

 

Lançamentos

Não há nenhuma novidade aqui: como qualquer grande efeméride, o centenário da Semana de 22 também incentiva uma grande onda de lançamentos e relançamentos no mercado editorial brasileiro. Entre livros marcantes dos autores envolvidos na Semana e obras críticas e históricas sobre o período, são várias as oportunidades de refletir e retomar as ideias modernistas.

Um projeto marcante é realizado pelo Sesc, que reúne pela primeira vez as gravações integrais das apresentações da Semana. Com organização assinada pelas pesquisadoras Claudia Toni, Flávia Camargo e Camila Fresca, o material Toda Semana, composto de um conjunto de CDs com um livreto, será apresentado em uma edição física que deve chegar nas lojas em fevereiro, mas será também disponibilizado em versão digital no site da instituição.

O interessante é que o projeto busca mostrar todas as apresentações da Semana. Isso inclui, claro, os concertos de Heitor Villa-Lobos, mas também as declamações de poesias e palestras.

"Ao gravar a totalidade de obras musicais apresentadas na Semana, procuramos levar aos ouvintes atuais um pouco da sonoridade do evento, recuperar aquilo que o público que esteve presente no Theatro Municipal de São Paulo ouviu. Lembremos que os poemas e conferências também foram recitados, fazendo parte desse mesmo universo sonoro. Talvez ao ouvir (e não simplesmente ler) os poemas e conferências, o público atual possa se aproximar mais do espírito festivo e contestador que permeou o evento", comenta Camila Fresca, doutora em musicologia pela USP e uma das idealizadoras do projeto, em entrevista.

Fresca também conta que o projeto demandou uma pesquisa muito extensa. "É muito difícil determinar com certeza absoluta o que foi lido e declamado na Semana de Arte Moderna. Pois, de um lado, sabemos que pessoas programadas para falar acabaram não aparecendo — por exemplo, Renato Almeida daria uma palestra sobre poesia, mas não compareceu. Com relação aos poemas, o programa oficial não elencava quais poemas seriam lidos, apenas dizia: poemas declamados por x, y ou z. Então, foi por um cruzamento de informações (notícias de jornais, relatos de quem esteve presente em determinado dia, etc.) que conseguimos levantar alguns dos poemas. Da mesma forma, às vezes sabemos que determinada pessoa fez uma palestra, mas ela nunca foi publicada como tal, então não temos como ter certeza do conteúdo", relata.

No âmbito literário, a editora Companhia das Letras prepara uma série de lançamentos para comemorar a data, entre eles o romance Parque Industrial, de Pagu, e Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, obra publicada em 1933 com um formato de colagem que a coloca entre um livro de anotação, memórias, sátira e poesia. No campo da crítica, a editora traz Modernidade em Preto e Branco, do historiador Rafael Cardoso, que pensa como o modernismo perpassou classes sociais e áreas geográficas para além do grupo paulistano; o livro O Guarda-Roupa Modernista, de Carolina Casarin, análise da indumentária de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade; e Modernismos 1922-2022, organizado por Gênese Andrade, que conta com 29 ensaios que pensam a Semana e seus desdobramentos.

 

Mário de Andrade
Foto: Mário de Andrade / reprodução

 

Ainda entre os lançamentos do início do ano, a Todavia traz um livro crítico. Assinado pelo professor do departamento de sociologia da USP Sérgio Miceli, Lira Mensageira: Drummond e o Grupo Modernista Mineiro analisa a Semana de 22 e seus caminhos pelo país. E a Antofágica, editora de clássicos, traz uma nova edição de Macunaíma, de Mário de Andrade. A Faro Editorial, por sua vez, lança o Box Modernismo — do Surgimento no Mundo à Explosão do Movimento no Brasil, que combina o texto “As revoltas modernistas", do historiador da literatura Otto Maria Carpeaux, e as obras Paulicéia Desvairada e Amar, Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade, o que permite acesso a um texto que contextualiza os movimentos modernistas e as vanguardas.

Mas não só de áudios e livros vive a celebração do centenário da Semana — várias exposições e eventos já estão confirmados. A Prefeitura de São Paulo organizou um site com vários conteúdos sobre a Semana e uma programação cultural que traz exposições e apresentações de vários tipos (o conteúdo pode ser acessado em cultura.sp.gov.br/semana22). Já o Centro Cultural Fiesp e o Instituto de Estudos Brasileiros da USP apresentam a mostra Era uma Vez o Moderno [1910–1944], também em São Paulo. A exposição , em cartaz até 29 de maio, conta com mais de 300 itens, entre obras e documentos, e pretende apresentar uma grande variedade de manifestações do movimento.

 

A Semana em 2022

Como o próprio Alambert já levantou, as comemorações do centenário chegam com vários textos e opiniões de interpretação sobre a data.

Parte da discussão gira em torno do protagonismo paulista em relação ao evento e à agenda modernista no Brasil. Luís Augusto Fischer, professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, criticou em um texto publicado no jornal Folha de S. Paulo ("Consagração da Semana de 22 impôs falsa ideia de que São Paulo foi o berço do modernismo", publicado em 11 de dezembro de 2021) a centralidade dada à cidade de São Paulo em relação à data e seus desdobramentos, defendendo que o modernismo contou com uma participação bem mais ampla de outros lugares do país.

Já Marcos Augusto Gonçalves, jornalista, editor da “Ilustríssima” e autor do livro 1922 — A Semana que Não Terminou (Companhia das Letras, 2012) defende, em um texto no mesmo jornal ("Semana de 22 deve ser revista, mas é delírio querer cancelá-la", publicado em 11 de dezembro de 2021), que a visão ufanista da Semana serve ao propósito de ser um marco da cidade de São Paulo. Mas acrescenta que a própria noção de que a data foi uma espécie de Big Bang da arte brasileira está longe de ser uma unanimidade.

 

Os anos 20 pelo mundo

Entre a era do jazz e o lançamento de livros de porte, como Ulysses e Terra Devastada, a década tem muito a ser lembrada

 

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Foto: James Joyce / reprodução

 

A década de 1920 não é marcante apenas na arte brasileira. Só em 1922, pelo menos dois livros importantes da literatura mundial foram publicados: Ulysses, de James Joyce, e Terra Devastada, de T.S. Eliot. Se o contexto sociocultural brasileiro já era agitado, mundialmente a história é ainda mais complexa. “A década de 1920 foi diferente. Até mesmo quem vivia naquela época sabia que era um tempo fora do comum, merecedor de um status especial. (…) O mundo tinha acabado de sair de uma guerra que matara milhões de pessoas e de uma pandemia que dizimara outras dezenas de milhões. (…) Aqueles que chegaram à idade adulta durante esses anos e sobreviveram ao duplo trauma da guerra e da doença ficaram desorientados, completamente perdidos”, afirma o escritor Nick Rennison no livro 1922 — Cenas de um Ano Turbulento (Astral Cultural, 2021). Em um breve passeio pelas grandes manchetes do mundo anglófono do ano, vemos quedas de zepelins, uma ESPECIAL Os anos 20 pelo mundo Entre a era do jazz e o lançamento de livros de porte, como Ulysses e Terra Devastada, a década tem muito a ser lembrada 14 imensa cobertura midiática de crimes reais, processos de independência e avanços de diversas tecnologias — além de um encontro curioso e aparentemente com pouca química entre Marcel Proust e James Joyce.

Isso causa uma grande ebulição cultural e não é à toa que os anos 20 sejam conhecidos também como a era do jazz. Na literatura, vários clássicos modernos foram publicados nessa década. Além dos já citados, temos algumas obras de F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Virginia Woolf; O Processo, de Franz Kafka, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, e O Som e a Fúria, de William Faulkner. Cinco dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, também foram publicados nessa década.

Nem todas essas obras correspondem necessariamente — ou completamente — a um ideal modernista ou vanguardista artístico. Ainda assim, a quantidade de grandes livros produzidos nessa década chama a atenção.

Caetano Galindo, tradutor de várias obras do período (entre elas Ulysses e Terra Devastada) e professor do departamento de Letras da UFPR, elenca algumas das principais características da literatura desse período. “Se a gente pensa que o ideário romântico típico da revolução romântica era um ideário de expressão pessoal e que isso acarretou em uma certa explosão de formas, o que a gente tinha no modernismo era uma culminação desse ideal. Mas me parece que se a gente pensar principalmente nessas duas obras totem, Ulysses e Terra Devastada, existe uma mudança muito grande que é uma mudança social, paradigmática mesmo. Porque o parâmetro da expressão pessoal, do ego, do artista, do eu que enfrenta as convenções começa a ser estilhaçado em prol de uma coisa que é quase um apagamento do eu”, afirma.

“Tanto o Ulysses quanto o Terra Devastada são muito pautados por uma não marca de estilo pessoal, uma concessão de voz a outras vozes, a um aspecto de mosaico, de recorte, de panorama social. Eu acho que de repente isso 15 é uma marca importante desse modernismo, uma junção de estilhaçamento formal, confronto com formas, busca por formas novas mais relevantes para aquele projeto sem se preocupar com o lastro que elas tinham ou não tinham, sem se preocupar se era certo e errado, mas preocupados com elas serem as mais adequadas para o que se queria fazer naquele momento”, completa.

A produção internacional teve, em certa medida, um impacto na produção nacional. Parte dos integrantes da Semana de 22 tiveram contato direto por meio de viagens com exposições e a produção literária de outros países, buscando incorporar no Brasil vários destes conceitos. “Em São Paulo sabia-se algo do futurismo italiano, do cubismo francês e do expressionismo alemão, por exemplo. Acho que só Mário de Andrade sabia de tudo isso, ele que era um estudioso obsessivo e incansável. A grande mudança começa a ocorrer um pouco antes da Semana e se realiza depois dela. Foi quando esses artistas-pensadores, a começar por Mário de Andrade, negaram o rótulo de ‘futuristas’ e passaram a usar o conceito aberto de ‘modernismo’. A partir daí a questão não era mais ‘imitar’ a vanguarda europeia, mas pensar com ela e além dela”, afirma Francisco Alambert.

Cem anos depois, o impacto da produção de 1922 e toda a sua década com certeza permanece como nossa herança. Da busca por uma linguagem que dê conta das experiências de seu período a uma valorização dos temas e da arte nacional, há ainda muito para se aprender com o século passado.

 

Gisele Eberspächer é jornalista, professora e mestre em Estudos Literários pela UFPR. Mantém desde 2012 o canal de crítica literária Vamos Falar Sobre Livros? e colabora regularmente com o jornal Rascunho. Junto com Paulo Pacheco, e sob a supervisão de Ruth Bohunovsky, traduziu a peça O Presidente (2020), de Thomas Bernhard. Vive em Curitiba (PR).