ESPECIAL | Tecendo Miguilins 14/06/2024 - 17:12

Os desafios de educadores na formação de jovens leitores a partir de clássicos da literatura

 

Francisco Camolezi

 

A sala Juvenal Dias, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, estava lotada. Sem assentos vagos, a fila de espera tomava conta do Parque Municipal Américo Renné Giannetti. Fosse do lado de dentro ou fora do Palácio, todos estavam a fim de uma única coisa: escutar estórias. Era a noite dos “Contos de Amor, encontros e desencontros”. No palco, em formato semiarena, Dôra Guimarães narrou Aníbal Machado, "Viagem aos Seios de Duília"; Marina Colasanti e Vilma Guimarães. Elisa Almeida deu voz às páginas de Mário Quintana; ao conto “Uma história de tanto amor”, de Clarice Lispector, e o primeiro encontro de Riobaldo e Diadorim, jagunços protagonistas do Grande Sertão: Veredas (1956).

 

O palco em formato semiarena na Sala Juvenal Dias no Palácio das Artes
Reprodução: O palco em formato semiarena na Sala Juvenal Dias no Palácio das Artes

 

Na plateia estava Calina Guimarães, tia de Dôra e prima de João Guimarães Rosa, autor do Grande Sertão, que, na época, estava dedicada à missão de revitalizar o Museu Casa Guimarães Rosa (MCGR), em Cordisburgo. Calina era médica e professora na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e, durante uma visita à cidade, deparou-se com o Museu de portas fechadas. “Pronto! Já sei o que fazer com a minha aposentadoria”, deve ter pensado, comenta Dôra Guimarães. Calina retorna para Juiz de Fora, encerra suas atividades como médica docente, compra uma casa em Cordisburgo e, no Museu, passa a trabalhar a leitura de Guimarães Rosa com os jovens da cidade.

Calina, no entanto, era cética em relação à narração em voz alta do texto de Guimarães Rosa. Convida‐ da por Dôra para assistir aos contos de amor no Palácio das Artes, só deu o braço a torcer depois de escutar Elisa narrar o encontro de Riobaldo e Diadorim. Era possível, sim, narrar Guimarães Rosa. Então, por que não preparar os jovens de Cordisburgo, com quem Calina já trabalhava, para narrá-lo também? Dôra e Elisa realizam uma primeira oficina, que iniciava os jovens às estórias de tradição oral, e Calina continua o trabalho de formação dos contadores de estórias no Museu.

Tudo isso aconteceu em 1995 e, dois anos depois, o Grupo de Contadores de Estórias Miguilim do MCGR foi oficialmente fundado. Quem batizou o grupo, que leva o nome da criança protagonista de Campo Geral (1964), um dos mais emblemáticos personagens de João Guimarães Rosa, foi Calina Guimarães, diretora do Grupo Miguilim até o início dos anos 2000, quando, por conta do Alzheimer, passou o bastão para Dôra.

Passados 20 anos, hoje, Dôra reside em Cordisburgo e Elisa viaja para realizar oficinas na cidade a cada quinze dias. Cada contadora coordena uma turma que varia entre 13 e 15 Miguilins — como são chamados os jovens frequentadores do Grupo —, e ambas dividem a direção do núcleo. Além dos ensaios com as diretoras, os Miguilins também são responsáveis pelas visitas guiadas ao Museu. Calina faleceu em 2018, aos 93 anos, mas sua memória permanece viva entre os que frequentaram suas oficinas. Ficou conhecida pela sua personalidade forte e, ao mesmo tempo, fraterna. Chegou, por exemplo, a disponibilizar seu apartamento em Belo Horizonte para acolher Miguilins que se mudavam para a capital a fim de estudar.

 

Magia e prática

Há algo de mágico em reunir crianças e adolescentes para discutir, ler e narrar Guimarães Rosa, cuja proposta estética de subverter e renovar a linguagem, submetendo o leitor a passagens e construções de palavras propositalmente inusitadas, tornou-o um dos escritores mais difíceis entre os clássicos brasileiros. Mas, por trás da magia, há uma prática. E funciona mais ou menos assim: de acordo com as diretoras do Grupo, Dôra e Elisa, todo Miguilim ingressa por volta dos 10 anos de idade. São estudantes oriundos do ensino público da cidade de Cordisburgo. O ciclo de uma turma dura, em média, sete anos — o tempo que os Miguilins levam para concluir o Ensino Fundamental e Médio. No último ano novas turmas se abrem, cada uma com, em média, 15 Miguilins. Uma é coordenada por Dôra e outra por Elisa. No total, cada ciclo do grupo conta com cerca de 30 Miguilins.

É claro que não há, pelo menos não no Grupo Miguilim, criança que, aos 10 anos, já narra Guimarães Rosa. Elisa Almeida acredita que o mineirês de Rosa ajuda os Miguilins a se familiarizarem com o texto: “é a linguagem da região de Cordisburgo”, diz a diretora. No entanto, formar-se leitor e narrador é um longo processo. O primeiro contato dos ingressos no grupo geralmente se dá pelo livro João, Joãozinho, Joãozito: O Menino Encantado (2016), escrito por Claudio Fragata, que conta a história da infância de Guimarães Rosa, entrelaçando-a, por meio da ficção, com a de Miguilim. Apesar da ansiedade por parte dos contadores, é só depois dos primeiros anos do ciclo de formação que os jovens começam a ler e narrar, de fato, Guimarães Rosa. Partem de textos do Campo Geral e, mais tarde, Sagarana (1946). Depois do amadurecimento dos Miguilins, mais próximos dos anos finais do ciclo, vão para textos recortados de Grande Sertão: Veredas, como o primeiro encontro de Riobaldo e Diadorim que Elisa narrou na noite dos “Contos de Amor”, trinta anos atrás, e fez Calina mudar de ideia quanto à possibilidade de contar Guimarães Rosa em voz alta.

Quanto aos textos narrados, Elisa explica que há ainda uma espécie de dramaturgia, uma teatralidade por trás da contação de estórias. Os textos são selecionados e recortados pelas diretoras levando em consideração a sua clareza para serem expressados através de narração. Dôra acrescenta que, nas primeiras oficinas, são trabalhados textos de tradição oral “para eles irem entrando no mundo da memorização e da narração”. São poucos os Miguilins que leem, na íntegra, os livros de Guimarães Rosa, no entanto, é durante a narração e discussão dos textos já curados que os Miguilins travam o desafio de “viver a história” e a sensibilidade por meio da literatura, desde o personagem, o enredo, até o foco narrativo. É preciso desafiar, Dôra acredita. “A gente menospreza muito a nossa juventude. ‘Ah, eles não dão conta [de ler os clássicos]…’, aí você não dá, e eles nunca vão dar conta mesmo”, diz.

No Brasil, de acordo com a última edição da pesquisa “Retratos da leitura” do Instituto Pró-livro, publicada em 2020, o auge da leitura se dá na faixa etária entre 10 e 13 anos, com 81% dos respondentes dessa população identificando-se como leitores. Dos 14 aos 17 anos, 67%. Entre 18 e 24, o índice cai para 59%. Aqui, leitor é considerado “aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos um livro nos últimos três meses”. No Brasil, 48% da população é considerada não leitora. O gosto pela leitura também cai conforme a idade, passando de 97% entre 11 e 13 anos, 63% na faixa etária dos 50 e 60 e 58% a partir dos 70 anos.

 

Exposição no Museu Casa Guimarães Rosa
Reprodução: Exposição no Museu Casa Guimarães Rosa

 

A leitura na infância e depois

Renata Nakano, idealizadora do projeto de impacto social Quindim, um clube de assinatura de livros infantis, apoiada em sua experiência pessoal e nas pesquisas de hábitos de leitura, é categórica ao afirmar que o que torna uma pessoa leitora é a presença de uma figura de afeto leitora na infância. De acordo com a pesquisa do Instituto Pró-livro, 48% dos leitores relataram a influência de alguma dessas personalidades, geralmente algum(a) professor(a), familiar ou responsável. E é daí que surge a proposta inicial do Clube Quindim: oferecer bibliodiversidade — ou seja, livros de temáticas e espaços culturais, estéticas, tempos e gêneros literários diversos — por meio do envio mensal de livros às famílias assinantes do Clube, para que o responsável pela criança possa atuar como um mediador de leitura pela interação entre os universos da criança e do adulto. Renata reconhece que, no Brasil, preparar as crianças para a leitura de imagens e linguagens poéticas e líricas é um caminho árduo, visto que o mercado editorial infantil nacional é mais voltado para livros escolares didáticos ou marcas não relacionadas a uma proposta literária menos óbvia e mais desafiadora, porém, a infância é o momento ideal para a experimentação porque, em geral, a criança manuseia e explora o livro sem receios ou preconceitos. Citando Kveta Pacovska, ilustradora e escritora tcheca, Renata lembra que “o livro é a primeira galeria de arte da criança”.

A formação do leitor na infância, no entanto, vai além da leitura compartilhada em casa. É o que defende Giselly Lima de Moraes, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenadora do Projeto de Extensão Narrativas Literárias Multimodalidade e Mediações (NAMME). Para Giselly, o leitor precisa passar por uma progressão, uma trajetória que amplie seus horizontes literários, e a escola cumpre um papel fundamental no incentivo à leitura enquanto experiência estética. A educação literária escolar deve acompanhar o leitor desde a primeira infância, que vai até os seis anos.

O diagnóstico é que, hoje, na escola, muito se fala em literatura, mas pouco se lê e, nesse processo, a criança é muito subestimada. Ainda, nos raros momentos de leitura, há um certo pacto não-dito entre os educa‐ dores e o adulto na literatura infantil: tudo fica na normatividade, nada se contesta, tudo é obediente e, quando algo desagrada, a censura é de praxe. Para Giselly, apesar dos riscos, é preciso insistir na qualidade literária e, quando houver uma reação, partir para o diálogo com a comunidade escolar a fim “permitir que outras infâncias emerjam nessas leituras”.

Além disso, a professora defende investimentos na formação de professores mediadores. Chama atenção, por exemplo, o fato de que as universidades brasileiras não têm acesso ao Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) literário, política do Ministério da Educação (MEC) de distribuição gratuita de “obras fundamentais” para bibliotecas públicas e comunitárias, professores e estudantes da rede pública da educação básica. Ela acredita que é essencial que os estudantes dos cursos superiores da área de Educação, como Letras e Pedagogia, tenham acesso a esses livros durante a graduação, para que possam se dedicar a uma reflexão crítica sobre esses textos. No âmbito do NAMME, Giselly e seus alunos(as) desenvolvem sessões de mediação de leitura a partir de uma seleção de livros ilustrados avaliados e disponibilizados pelo Instituto Emília. O livro escolhido pelo projeto é lido e dialogado em turmas do primeiro ao quinto ano do Ensino Fundamental de escolas públicas, abrindo espaço para que os estudantes compartilhem suas perguntas, entusiasmos, inquietações e estranhamentos. Giselly surpreende-se com a capacidade de leitura e debate que as crianças lançam sobre as obras, especialmente em relação à imagem, o que a professora atribui ao repertório audiovisual. Atualmente, o NAMME tem procurado propor a leitura de livros em que o personagem se encontra no limiar entre realidade e imaginação, buscando entender a recepção das crianças aos elementos fantásticos e realistas do livro. Do começo do ano até agora, trabalharam com os livros Onde Vivem os Monstros (1963), de Maurice Sendak, e Boa Noite, Bo (2022), de Kjersti Skomsvold.

Por outro lado, se as crianças são mais abertas à leitura, na adolescência, a escola assume a voz do adulto. A cadeira de literatura é massante, os clássicos são difíceis e a leitura, quando há, é roteirizada, voltada para o ingresso no Ensino Superior. É relativamente comum encontrar por aí egressos do Ensino Médio brasileiro que sugerem a substituição de obras da literatura clássicas por leituras que supostamente dialogam melhor com o momento da vida que é o colegial, como Harry Potter. Tanto Renata Nakano como Giselly Lima concordam que a sugestão consiste em uma miopia, um desvio. Não se trata de crucificar Harry Potter, no entanto, é preciso ir adiante. Ler é decodificar o mundo, e propor a leitura dos clássicos é ampliar horizontes. De acordo com Giselly, no ensino da literatura do segundo grau, o professor geralmente faz uma propaganda dos livros e lança a leitura para o estudante enfrentá-la sozinho, o que é insuficiente. Para transformar a literatura em uma experiência estética, algo profundo e sensível, é preciso um certo desejo pelo desafio relacionado à forma do texto, ou seja, por superar as dificuldades que a linguagem literária pode apresentar para o leitor. Porém, as dificuldades vão além, e esbarram nas pressões exercidas pelas formas de ingresso na universidade, frequentemente representantes de uma urgência de ascensão financeira e qualificação para o mercado de trabalho pelo Ensino Superior, tornando a leitura extremamente utilitária e valorizando disciplinas mais mecânicas como matemática, física, química e até mesmo a gramática, em detrimento da literatura. Então, melhorar a leitura passa invariavelmente por uma revolução sistêmica na educação brasileira.

Marcella Abboud, professora de Literatura no Ensino Médio e doutora em Crítica Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), concorda. Apesar de acreditar que, sim, é possível conciliar a formação de leitores com o ensino de literatura pré-vestibular, os primeiros passos para a concretização desse ambicioso projeto passam pela luta contra a precarização do trabalho docente e a valorização, em termos de carga horária, das aulas de literatura. O contexto, no entanto, é de “descaso do próprio sistema de ensino com a fruição literária”, diz Marcella. Com a implementação do Novo Ensino Médio (NEM), a carga horária do ensino de Língua Portuguesa foi reduzida, e, para Marcella, “a impressão é a de que há um processo de transformar as aulas de língua portuguesa em algo mecânico, propositivo e funcional, com pouco espaço para reflexão subjetiva”.

Ainda, Marcella diz que, para que um estudante entenda a importância dos clássicos, é preciso que o professor-mediador também esteja apropriado da leitura, no entanto, com carreiras sucateadas e baixa remuneração, poucos professores podem se preparar para propor adequadamente a mediação da leitura de obras tão complexas em seus contextos históricos, sociais, discursivos e formais como os clássicos da literatura brasileira, como o próprio João Guimarães Rosa.

 

A cidade e o museu-laboratório

Dôra Guimarães gosta de pensar a relação do Grupo Miguilim com a cidade. Seja durante os ensaios que os Miguilins fazem em suas casas, dando aos seus familiares o privilégio de escutar a narração, ou na Semana Rosiana, evento anual organizado pelo Museu para celebrar a vida e obra de Guimarães Rosa em Cordisburgo, a palavra do escritor circula pelas ruas da cidade em que nasceu, penetra no íntimo dos seus vizinhos e, de quebra, movimenta o turismo local.

No ano que vem, Dôra e Elisa se preparam para receber uma nova leva de Miguilins. No entanto, há dois anos, o Grupo perdeu o patrocínio de manutenção da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), o que ameaça a continuidade do trabalho das narradoras. Hoje, contam apenas com a ajuda da Associação Miguilim e os recursos do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) Cultural, que financia, por exemplo, o transporte e a hospedagem de Elisa até Cordisburgo. O novo Ensino Médio também se apresenta como uma dificuldade para as atividades do Grupo Miguilim, visto que, agora, com as aulas em período integral, os Miguilins chegam mais cansados às oficinas e nem sempre estão disponíveis para preencher os horários dos plantões no Museu por toda a semana. O show, no entanto, continua.

Elisa Almeida compara o Museu a um laboratório: por ser muito visitado ao longo do ano, o Museu sempre oferece ao jovem Miguilim a oportunidade de exercício da narração oral da literatura rosiana. Mas, o cientista é o contador de estórias. Imagine você, passeando pelo cerrado mineiro, de passagem por Cordisburgo, avista uma casinha colonial de portas abertas e decide entrar. Lá dentro, despretensiosamente, descobre que ali nasceu e viveu, por nove anos, o maior dos escritores da história da literatura brasileira: João Guimarães Rosa. Uma criança te guia pela exposição e narra, de forma cênica, “Lua e Mar”, trecho retirado do Campo Geral, que conta as visões de Miguilim sobre o horizonte e o desejo da criança de conhecer o mar. O experimento é o turista, que sai dali com nenhuma resposta-comportamento possível que não a leitura, na íntegra, do Campo Geral.

 

Francisco Camolezi nasceu em Jaciara, interior do Mato Grosso, é estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e repórter no Cândido.