ESPECIAL | Sempre pop 31/07/2023 - 15:14

Com origem nos folhetins, novelas expõem estereótipos e mantêm impacto cultural e social no Brasil do século XXI

 

Hiago Rizzi

 

Jorge Tufão é um ex-jogador de futebol que vive em uma mansão no Divino, bairro da periferia do Rio de Janeiro. Quando uma nova cozinheira começa a trabalhar em sua casa, Nina, tem início entre os dois uma relação baseada em livros. Tufão lê clássicos indicados por ela, mas demora a perceber que as obras são tentativas de fazê-lo notar os conflitos que rondam sua vida caricatural de classe média emergente: dramas envolvendo a família e o poder.

Machado de Assis, Kafka, Flaubert e Platão são alguns dos vários autores que aparecem nas mãos do jogador aposentado em Avenida Brasil, novela de João Emanuel Carneiro que foi ao ar em 2012. Os livros estão na tela e no texto — o autor disse que a vilã Carminha (Adriana Esteves) foi inspirada em personagens de Dostoiévski, enquanto a trama tem ares de Crime e Castigo (que também é devorado por Tufão, vivido por Murilo Benício e ilustrado na capa desta edição do Cândido).

Não poderia ser diferente: a literatura é parte de novelas desde o seu início, na década de 1950. Algumas das primeiras telenovelas foram adaptadas de romances, caso de Helena, do folhetim de Machado de Assis para a TV Paulista em 1952 — a primeira autoria de Manoel Carlos. A Muralha, de Dinah Silveira de Queiróz, saiu na revista O Cruzeiro e foi adaptada pela TV Cultura em 1961. Ambas tiveram novas versões nas décadas seguintes.

Os folhetins brasileiros, capítulos de histórias publicados em revistas e jornais no fim do século XIX e início do século XX, surgiram na França e têm uma subdivisão — os folhetins-variedades, que deram origem às crônicas, e os folhetins-romances, que antecederam as rádios e as telenovelas. Senhora, de José de Alencar, e A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, também fizeram esse caminho.

Com a mesma origem francesa, os melodramas se encarregaram de dar o tom às obras no rádio e na TV, com formatos e arquétipos de personagens comuns. Beto Rockfeller, de 1968, é reconhecida como a primeira obra a nacionalizar a telenovela brasileira. A trama da TV Tupi abraçou a linguagem coloquial e paisagens externas reconhecíveis ao público, distinguindo-se do melodrama presente em produções de outros países latinos que são exibidos até hoje nas tardes do SBT.

A pesquisadora Sandra Reimão aponta que nos anos 1980 e 1990 as novelas brasileiras, solidificadas em linguagem e como produto comercial, não precisavam mais se basear em romances para para garantir prestígio — mas não por isso se desvinculam de sua origem folhetinesca. “A revolução é mais da ordem tecnológica do que narrativa, e não houve nenhum ponto de virada depois de Beto Rockfeller”, destaca Nilson Xavier, autor do Almanaque da Telenovela Brasileira (2007).

Hoje, o formato persevera em meio à dispersão da audiência e à convergência de telas, com o fortalecimento do streaming e guiado também por propósitos mercadológicos. Há também uma contínua demanda por remakes e reexibição de novelas passadas, que têm espaço no Vale a Pena Ver de Novo, Canal Viva, Vídeo Show e SBT. “Há um público ávido por rever”, pontua Nilson.

“A telenovela é relevante para a sociedade brasileira e segue como um fenômeno mundial na era da fragmentação porque constrói um laço social com o país — e por isso continuará viva”, afirma a autora Rosane Svartman. Vai na Fé, folhetim de Rosane que está em sua reta final, é sucesso de público na Rede Globo e tem entre seus trunfos justamente a citação a outras novelas, pela personagem de Renata Sorrah.

O termo laço social, usado por Rosane, foi criado pelo sociólogo francês Dominique Wolton para expressar a capacidade da televisão de pautar a conversa entre as pessoas pelo que se vê na TV, “criando uma teia comum que independe de classe social ou formação cultural”, escreveu Alana Freitas, professora de Literatura na Universidade de Feira de Santana (Bahia).

Em artigo publicado no fim do ano passado, a pesquisadora mostra como as novelas e livros seguem lado a lado nas últimas décadas. Bom Sucesso (2019), de Rosane Svartman e Paulo Halm, é uma reverência a essa relação e tem como um dos cenários centrais uma editora. A ideia veio da experiência de Rosane como mediadora na Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, em 2017.

 

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Elenco para a versão de 2019 de Éramos Seis. Reprodução / Rede Globo

 

“A Bienal é popular em todos os sentidos — do público à diversidade de vozes. A inspiração surgiu ao perceber a literatura como um produto popular e para toda a nação”, revela. Logo no início da trama, os protagonistas são unidos por um incidente no Laboratório Flaubert — uma homenagem ao autor francês. Nos últimos capítulos, quando a editora sofre um incêndio, Alberto (Antônio Fagundes) lê Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, e, como no livro, cada personagem escolhe um livro ligado à sua história para guardar na memória.

Ao todo, mais de 70 obras e autores são citados em Bom Sucesso — lista que vai de Goethe e Foucault a Geovani Martins e Conceição Evaristo, passando por Hemingway e Clarice Lispector. O movimento rendeu ainda um podcast sobre literatura narrado por Antônio Fagundes. Como mostra Alana Freitas, os protagonistas encarnam o Quixotismo e o Bovarismo: pautam sua existência a partir da influência de suas leituras.

 

Recortar, reescrever, ajustar: adaptar

 

Nilson Xavier é noveleiro desde a infância. A versão de 1977 de Éramos Seis (1943) é o primeiro folhetim que lembra ter acompanhado do início ao fim. Anos depois, foi pelo livro de Maria José Dupré que passou a colecionar as obras da Série Vaga-Lume, da Editora Ática. Aos 10 anos, começou a anotar em um caderno todas as novelas que assistia, como os nomes dos atores, a ficha técnica da produção e informações de revistas.

Quando a internet deu as caras, nos anos 1990, usou o conhecimento como Analista da Tecnologia da Informação para criar o primeiro portal sobre novelas brasileiras, o Teledramaturgia. Os cadernos migraram para o computador e o projeto lançado em 2000 ganhou reconhecimento — a própria Rede Globo não atualizava informações em seu site. Do hobby ainda saiu o Almanaque da Televisão Brasileira (2007), aproveitando o boom do formato na segunda metade dos anos 2000.

Éramos Seis já teve cinco versões para as telas, a última exibida em 2019. A primeira, de 1958, foi exibida ao vivo pela Record, semanalmente, enquanto a de 1968 foi produzida pela TV Tupi. Também pela Tupi, a adaptação de 1977 é de Sílvio de Abreu e Rubens Ewald Filho, que criaram tramas paralelas, além da família protagonista. As versões de 1994, do SBT, e de 2019, da Globo, são remakes desta edição. Uma das principais alterações na história é o adultério cometido pelo patriarca, que não existe no livro. A mudança desagradou Maria José Dupré.

“É impossível transcrever um livro para as telas — seja para novelas, séries ou filmes. A linguagem se moderniza, mas quando a novela deixar de usar o folhetim, não será mais novela”, afirma Nilson. Vilões, mocinhos, romances proibidos, segredos e vinganças estão no DNA do formato, além do texto aberto — as novelas seguem sendo escritas enquanto são exibidas, passando por adaptações a partir do desempenho do elenco, recepção do público, ditames comerciais e leituras externas.

O que faz de um livro boa fonte para uma adaptação é também a quantidade de viradas que a narrativa apresenta — os plot twists. “As viradas de Vai na Fé foram mantidas, mudou a forma de chegar a elas”, conta Rosane. A obra tem 179 capítulos, o que equivale a 90 longa-metragens. O Conde de Monte Cristo, folhetim de Alexandre Dumas que tem mais de 1 mil páginas em suas edições comerciais, já foi usado como base para projetos como O Outro Lado do Paraíso (2017) e Avenida Brasil (2012) por apresentar essa característica.

“Há um comentário comum sobre uma suposta ‘serialização’ das novelas, que não é real. O que acontece é que as séries vêm se apropriando dos folhetins. Succession é Rei Lear recontado”, diz Nilson. É o que configura Todas as Flores (2022-2023), exibida somente no streaming e com 85 episódios distribuídos em dois blocos, como pertencente ao gênero televisivo.

Avenida Brasil é reconhecida justamente por “acelerar” o tempo da história, se tornando a novela mais exportada pelo país (chegou a 130 países) e modelo para as produções seguintes, com vários plots twists em menos de 180 capítulos. A última novela da Globo a ultrapassar 200 capítulos foi Império, em 2014, com 203 capítulos.

 

Novela faz ciência

 

Além de autora, diretora e produtora, Rosane Svartman também é pesquisadora. Sua tese de doutorado, Telenovela e o Futuro da Televisão Brasileira (Cobogó, 2023), aposta nas diferentes formas de consumo e na participação dos espectadores para a permanência do formato — o modelo ideal soma noveleiros das redes sociais, do streaming e das pesquisas qualitativas.

O interesse pela multiplicidade e convergência das mídias também está no seu currículo: Quando Éramos Virgens (2006), livro escrito em parceria com Juliana Lins, se desdobrou no filme Desenrola (2011), dirigido por Rosane, e em um novo livro homônimo revisto pela dupla. “A academia ajuda a refletir sobre o trabalho com mais profundidade, a pesquisa de tendências é muito pontual”, garante.

 

 

A novela equivale aos blockbusters, best-sellers e grandes shows e, apesar do seu alcance, muitas vezes é descredibilizada por sua vocação ao entretenimento e associação à cultura de massa. O filósofo e teórico da comunicação Jesús Martín-Barbero, falecido em 2021, usou o termo “mal de ojo” como metáfora para a negligência de pesquisadores e intelectuais para a televisão.

“A visão da TV somente pela perspectiva da alienação faz com que a oportunidade de entender a cultura popular seja perdida. O melodrama surgiu em um contexto de luta de classes na França, as novelas ainda estão ligadas a isso”, frisa Valquíria Michela John, pesquisadora do Núcleo de Estudos em Ficção Seriada e Audiovisualidades (Nefics), da Universidade Federal do Paraná.

Mesmo dentro do audiovisual, a telenovela não é vista com o mesmo valor estético e artístico que o cinema. “As séries também não tinham esse prestígio, mas a HBO inaugurou uma suposta ‘televisão de qualidade’. Não há como pensar processos socioculturais na América Latina sem pensar também nas telenovelas”, aponta.

Analisando gênero e representatividade nas tramas, um dos projetos do Nefics mapeou todas as heroínas e vilãs das novelas da Rede Globo entre 1980 e 2018. Foi possível concluir, por exemplo, que a identificação de mulheres com as heroínas muitas vezes se dá pela maternidade, e não pelo amor romântico.

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Tufão lê Dostoievski em Avenida Brasil (2012). Reprodução / Rede Globo

 

Mas existem críticas. Órfãos da Terra, novela de Thelma Guedes e Duca Rachid, exibida em 2019, integra um nicho conhecido por apresentar culturas de outros países — como O Clone (2001) e Caminho das Índias (2009), ambas de Glória Perez. Um estudo realizado por Beatriz Castro, do Nefics, mostra que a vilã muçulmana Dalila (Alice Wegmann), em oposição à mocinha cristã Laila (Julia Dalavia), corrobora uma visão negativa sobre o islamismo, reforçando estereótipos.

A Rede Obitel Brasil, integrada por Valquíria, é braço do Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva (Obitel), rede que reúne pesquisadores de onze países. Uma pesquisa iniciada pelo grupo no fim de 2022 tem como objetivo investigar a relação entre a telenovela e a cidadania, além de desenvolver ações sociais com organizações civis e órgãos públicos.

“As novelas criam ações além do merchandising social, geram mobilização. A pressão do público de Mulheres Apaixonadas [2003] impactou na aprovação do Estatuto do Idoso”, cita Valquíria, lembrando a personagem de Regiane Alves que agredia os avós. A atriz deixou de sair de casa depois de ser abordada por espectadores que cobravam satisfações pela ficção.

E outra vez o laço social: a leitura e as novelas estão presentes na vida de Valquíria desde a infância com as avós, no interior do Paraná. No doutorado, pesquisou memórias e narrativas melodramáticas de mulheres encarceradas no Presídio Regional de Itajaí, a partir das telenovelas — elas não tinham acesso a uma biblioteca, mas assistiam TV e contavam suas próprias histórias.

Rosane Svartman foi aluna de Glória Perez, e um dos aprendizados mais importantes foi o de que, para escrever, é preciso ir ao teatro, ler livros, ver filmes e assistir televisão. “Eu dizia que para escrever é preciso ler, mas agora percebo que é preciso escutar o mundo ao redor. Nem a literatura nem a academia podem ficar numa torre de marfim”, finaliza.