ESPECIAL | Procurando Marcos, encontrando Edmundo 07/04/2025 - 17:07
Um tributo aos 100 anos de Marcos Rey, um dos principais autores da Vaga-Lume e a verdadeira e mais precisa descrição de São Paulo
Por Flavio Jacobsen
Direto do Tietê, faço uma pequena conexão na Sé e desembarco na estação Anhangabaú. Encaro a Xavier de Toledo rumo à Consolação e atravesso a praça Dom José Gaspar ladeando a Biblioteca Mário de Andrade, rumo ao Paribar, com suas mesas na calçada.
Meu nome é Octávio. Sou redator desempregado. Escrevo qualquer coisa — cartas de suicídio cobramos adiantado, é meu lema — e me encontro há mais de cem dias na rua da amargura. Estou à procura de Marcos. O garçom, Pitchinin, baixinho invocado que — segundo Marcos — já liberou um tonel de choros das mais diversas doses de uísque, vermute e gim à fauna local. Era o garçom mais antigo do lugar, e além da generosidade citada ainda tinha o hábito de ficar cego quando a grana era curta.
— O Marcos? Não está não. Nunca mais apareceu por aqui.
Surpreso, mas nem tanto, pergunto pelo Lorca. Não o poeta espanhol, mas o biscateiro que vivia de arrumar pequenos trabalhos aos publicitários, roteiristas e escribas de toda sorte que apareciam a este "bar dos cento e tantos dias", em busca de uma oportunidade qualquer.
— O Lorca morreu — responde Pitchinin, sem cerimônia —, e faz bastante tempo já. Foi atropelado ali na esquina da São Luís — diz apontando para a rua, a uns vinte metros do bar.
Ia perguntar pelo Fontana, o "Homem Providencial", que presidia uma agência média, a qual costumava empregar bons criadores e pagava bem. Mas temendo nova negativa, ou outra morte, me contentei com uma dose de meia-de-seda. Aquela bebida que Marcos descrevia como "aquilo que se pode beber quando estamos em situação de penúria". Onde deve andar o Marcos?
Marcos é o cara mais foda que eu conheço. Sou um escriba, como referido. Foi através do Marcos que aspirei a esta ingrata profissão pela primeira vez, ainda na tenra infância. Foi mais ou menos quando descobri que aqueles livros de bolso que me encantavam não nasciam nas bancas de jornal, tampouco em árvores.
Acho que foi em alguma matéria no jornal, coisa que o pai nunca deixou faltar em casa. Havia terminado os quadrinhos, seção que lia sempre primeiro, e os esportes, quando olhei o caderno de literatura — devia ser domingo — que trazia uma entrevista com Marcos. Ele falava de uma coleção na qual havia sido contratado para escrever, e imediatamente me lembrei da professora que versara sobre algo a respeito na aula de dias antes. Se era domingo, devia ter sido sexta-feira, a aula.
Na mesma página daquele jornal de domingo, Marcos contou outras coisas que me deixaram completamente fascinado. Ele escrevia também algumas coisas para o rádio, criava várias propagandas que eu já havia visto nas revistas e na televisão! Ele escrevia o Sítio do Pica-Pau Amarelo! E novelas, aquelas que a mãe tanto gostava! Aí já é demais. Que legal esse Marcos!
Devorei os seus livros na escola. Aqueles infantojuvenis da tal coleção — a Série Vaga-Lume. E tudo mudou. Alguma coisa estranha aconteceu pouquíssimo tempo depois. Parece que esqueci do Marcos. Fui a outros mundos em outros livros, um tanto mais densos. Foi natural, nada demais. Avancei à poesia, aos clássicos, aos fantásticos latino-americanos, aos existencialistas, aos norte-americanos, aos mestres brasileiros do século 19, aos modernos, aos franceses, ingleses, aos policiais, às teses, à história, ao teatro, ao cinema — foi quando recordei Marcos de novo, mas brevemente.
Também não pude deixar de lembrá-lo quando passei dos dezoito anos e precisei ganhar dinheiro, e fui ser redator, que é a única coisa que sabia fazer. E foi na publicidade e propaganda, depois nos roteiros para empresas, e tantas e tantas coisas que venho precisando escrever desde sempre, que já nem lembro mais. Jornal, revista, folheto, tudo. Parece tudo uma coisa só. Até livros! E filmes! Deus do céu. Onde fui parar?
Vim acertar as contas com Marcos, enfim! A culpa é dele! E andei sabendo, nas minhas andanças, que ele fez mais algumas vítimas por aí. Meu amigo poeta, e também roteirista, o Marcelo Montenegro, lá da região do ABC, costuma dizer que o Marcos foi "o Chuck Berry da literatura" para ele. Vejam se pode uma coisa dessas?
Pitchinin pergunta se quero mais alguma coisa. Sem muito, ele entende meu olhar e serve mais uma meia-de-seda, enquanto vejo a gente toda na rua, apressada. O Lorca — segundo Marcos — dizia que ali era possível ver "até os mortos passarem". A exemplo de Marcos, vi apenas uns dois ou três.
A noite começa a cair. Na metade da minha dose, tomo coragem e deixo minha taça na mesa para ir até o local onde Lorca foi atropelado, bem ali na São Luís. A uns vinte metros. Pobre Lorca.
Volto à minha mesa, resignado. É quando passa Augusto. Augusto é um cão. Lembrei dele por causa do Marcos. Ele ruma para a praça da República, em direção à Vila Buarque. Pitchinin deixa a conta pendurada e lá fui atrás de Augusto. À saída, pergunto por Gianini, o italiano fanfarrão, metido a cantor de ópera e que lutou na Guerra Civil Espanhola.
— Gianini? Morreu...
Desolado, apresso o passo atrás de Augusto, que já dobra a Ipiranga rumo à República. Assim como fizera com Marcos, o "cão da meia noite" não me dá bola. Às vezes apresso o passo e fico a seu lado, ele finge que nem me vê. Não desisto. Vai que Augusto me leva até Marcos. Deve estar enfiado em alguma dessas pensões da Buarque.
Reparo que não existe mais a Aliança Francesa na rua General Jardim, e minha desolação aumenta. Augusto enfim começa a me notar. Já é um avanço. O cachorro segue sem dono pelas ruas. Resolvo parar. Desisto. Ele não vai a lugar algum.
Na Martim Francisco, já em Santa Cecília, sento em um boteco qualquer, para comer alguma coisa. Um bauru e um café com leite. Inadvertidamente, Augusto para, como que me esperando. Peço "pra viagem" e sigo em seu encalço. Ofereço metade do sanduíche para ele, que faz ar de paisagem. Estamos andando em círculos, pois logo reparo que estamos no Arouche.
Rodamos por tudo, já era tarde da noite quando estávamos de volta à Biblioteca, e ao Paribar. O cachorro e eu. Pitchinin olha com ar penoso para mim, nem tanto para Augusto.
— Octávio. Marcos esteve aqui.
Impressionado, não acredito. Até Augusto deixa de se coçar e posta-se em posição vertical, apoiado nas patas traseiras.
— Deixou um cheque. É seu. Para você se hospedar neste hotel aqui, ó...
Pitchinin me entrega o cheque e um cartão. O cheque é gordíssimo. Dá para um mês de boa hospedagem e comida.
Ao olhar o nome do cheque me deparo com algo que quase havia me esquecido. O nome verdadeiro de Marcos Rey é Edmundo Donato.
Augusto desapareceu pela rua. Pitchinin foi embora. No cartão, um tal Emperor Park Hotel. Daqueles de luxo.
São Paulo é assim mesmo. A gente procura por Reys, encontra Edmundos. Depois, com eles, acaba se dando um pouco melhor.
No verso do cartão, a anotação indica que a reserva é para o quarto 222. Algo me diz que esse Marcos está aprontando comigo, de novo...
Solitário, triste, como tenho andado, vou-me ao mistério deste cinco estrelas.
Flavio Jacobsen é escritor. Nasceu em Santos, em 1967, e vive em Curitiba desde os nove anos de idade. Autor de Uns Contos no Bolso (Kotter, 2015), trabalha como redator e roteirista.