ESPECIAL | Precisamos falar sobre o Harry 30/06/2022 - 11:50

Os livros da escritora J.K. Rowling criaram uma nova geração de leitores em plena era digital — mas ainda têm seus méritos artísticos e acadêmicos questionados

Mariana Balan e Murilo Basso

 

Há 25 anos, leitores de todo o mundo chegavam pela primeira vez à Rua dos Alfeneiros, número 4, no Sudeste da Inglaterra, para conhecer a normal, normalíssima, família Dursley e seu “agregado” — que hoje é possível dizer com tranquilidade que era vítima de maus-tratos, obrigado a viver em um armariozinho completamente insalubre embaixo da escada. O menino era o franzino órfão Harry, sobrinho de Petúnia Dursley e que estava prestes a completar 11 anos.

Algumas páginas à frente, descobre-se que o garoto, na verdade, é o único sobrevivente conhecido da maldição da morte, o feitiço Avada Kedavra, que deveria acabar instantaneamente com a vida de quem o recebe. E não somente isso: Harry sobreviveu ao feitiço quando este foi lançado pelo mais maléfico e temido bruxo de sua época, Lorde Voldemort, que no ato perdeu praticamente todos os seus poderes e quase desapareceu da face da Terra. Em Harry, a única sequela resultante do encontro com Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado é uma cicatriz em forma de raio na testa.

Isso é só uma parte do primeiro livro de uma série que, um quarto de século depois, continua um fenômeno global. Harry Potter e a Pedra Filosofal apenas apresentou alguns dos personagens, dramas e lugares fantásticos de uma saga que, além das publicações, rendeu diversas adaptações cinematográficas — inclusive filmes inspirados em um livro didático obrigatório para os estudantes de Hogwarts —, parques temáticos, milhares de livros licenciados e até uma peça teatral premiada que se passa duas décadas após os eventos de Harry Potter e as Relíquias da Morte, lançado em 2007.

Mestre e doutorando em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Mateus Fernando de Oliveira diz não ser exagero afirmar que a série Harry Potter inaugurou um novo ciclo da literatura juvenil mundial, especialmente por atualizar o sentido do insólito, do não habitual, na ficção literária por meio de um universo de magia e de infinitas possibilidades. O resultado? Mais de 500 milhões de cópias vendidas ao redor do globo e traduções para 80 idiomas, segundo a Bloomsbury Publishing, editora responsável por publicar as obras no Reino Unido.

 

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Imagem: Reprodução / Rocco

 

“Os best-sellers [infanto-juvenis] publicados entre o final dos anos 1990 e a primeira década dos anos 2000 foram influenciados por Harry Potter como um todo. E não necessariamente pela narrativa, mas pelo impulso mercadológico, porque o mercado editorial viu que poderia alçar voos mais altos. Quem apostaria que escrever livros em sagas, com vários volumes, poderia ser a fórmula para atrair novos leitores? Podemos também citar o envolvimento da literatura com o cinema. Antes de Harry Potter, a ideia de escrever um livro esperando que ele pudesse se tornar um filme era quase impensável. A série de J. K. Rowling levou a literatura juvenil para as telas e abriu caminho para outras adaptações”, comenta Oliveira, citando sagas como Percy Jackson e os Olimpianos, de Rick Riordan, e Jogos Vorazes, de Suzanne Collins.

Sobre o principal mérito de Harry Potter, os especialistas costumam ser enfáticos: atrair novos leitores, sobretudo jovens, o que sempre foi um desafio para pais e professores, mas se tornou ainda mais difícil em uma época com tantas outras opções de entretenimento à disposição, da televisão ao videogame, culminando na atual era do streaming. Não significa, contudo, que a série esteja restrita ao público adolescente.

“A saga despertou o gosto pela leitura em milhares de pessoas, de todas as idades e de todas as partes do mundo. Daí sua relevância, pois o peso de uma obra deve ser levada em consideração pelo número de leitores que pode atingir, de uma maneira positiva. Harry Potter é para todos”, pontua Letícia Adriana Palamar, professora de Língua Portuguesa e Redação do Colégio Positivo em Joinville (SC).

No entendimento da docente, a competência de J. K. Rowling também está no fato de abordar, junto às crianças e adolescentes, temas sérios como discriminação, tolerância, autoritarismo, ética, saúde mental e morte. Quando se fala em Harry Potter, aliás, é quase um chavão dizer que os livros amadurecem junto com seus leitores, tornando-se mais sombrios conforme a série avança. É clichê, mas é verdade.

“O impacto cultural é imensurável quando falamos de Harry Potter. Por alcançar pessoas de todos os lugares, podemos pontuar que existe uma literatura pré e pós-Harry Potter. J. K. Rowling trouxe, com as suas obras, questionamentos sobre os mais diversos assuntos. Esses aspectos, com certeza, fizeram com que o público jovem tivesse uma outra percepção acerca de suas realidades, condutas e relação para com a sociedade e, por que não, consigo”, acrescenta Letícia.

 

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Imagem: Reprodução / Reilly Brown

 

Ademais, ainda que o universo potteriano seja de feitiços, seres mitológicos, artefatos que conferem invisibilidade ou permitem que se volte no tempo, os leitores conseguem se identificar com os personagens. Harry Potter e seus amigos não se encaixam na visão tradicional de herói em termos de beleza, força, sabedoria e inteligência — Hermione é uma exceção neste último quesito, mas ela também tem seus momentos de pedantismo e é uma pé no saco em algumas situações, diga-se de passagem.

E Harry, lembre-se, é um órfão. De Oliver Twist a Anne de Green Gables, passando pelos irmãos Baudelaire de Desventuras em Série e por Tom Sawyer de Mark Twain, a literatura está repleta deles. Mas ainda que a grande maioria dos leitores de Harry Potter não seja formada por órfãos, há algo de relacionável em protagonistas sem pais ou família.

“Os órfãos são um reflexo tangível do medo do abandono que todos os humanos experimentam. Os órfãos são párias, separados porque não têm conexão com a estrutura familiar que ajuda a definir o indivíduo. Esse estado de pária não é causado por ações próprias, mas por sua diferença em relação ao padrão ‘normal’ estabelecido pela sociedade. Os órfãos são um lembrete de que a possibilidade de uma solidão indesejada existe para qualquer ser humano. Os órfãos são, ao mesmo tempo, dignos de pena e nobres. São uma manifestação de solidão, mas também representam a possibilidade do ser humano se reinventar”, escreveu a pesquisadora Melanie A. Kimbal no artigo “From Folktales to Fiction: The Orphan Character in Children’s Literature”, publicado na revista acadêmica Library Trends, da Johns Hopkins University Press.

 

É ou não é literatura?

Apesar do estrondoso sucesso expresso em números e de um séquito de fãs fiéis, fanáticos, Harry Potter não é uma unanimidade. Uma discussão que permeia a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, o vilarejo de Hogsmead, o Beco Diagonal, a assustadora Travessa do Tranco e tantos outros lugares mágicos do universo criado por J. K. Rowling a partir de uma ideia durante uma viagem de trem diz respeito à seriedade da obra. Harry Potter, afinal de contas, é ou não é literatura?

“Para muitos acadêmicos tradicionais, trata-se de uma literatura ‘pobre’, já que não pertence a um cânone literário, não é uma referência, um clássico”, ressalta Letícia Adriana Palamar, que considera, sim, a obra séria, justamente pela já citada abordagem de temas espinhosos com leveza e de forma acessível a leitores mais jovens.

Ao mesmo tempo, o mestre e doutorando em Letras pela UEL Mateus Fernando de Oliveira afirma que é equivocado falar que a academia tem “preconceito” contra a série, muito pelo seu papel em levar crianças e adolescentes para a literatura. Isso, ele argumenta, os acadêmicos reconhecem.

“Com mais frequência, a academia busca destacar a elaboração artística de uma obra, o que não é necessariamente o foco de produção desses livros, que contribuem para a formação de novos leitores. A literatura tem como aporte a ficção e a linguagem e quando esses dois universos se juntam e alcançam o mais alto nível de inventividade, verossimilhança e originalidade, como é o caso das obras de Machado de Assis ou Clarice Lispector, passamos a inserir tais obras no repertório cultural da sociedade, porque elas comunicam além do enredo, oferecem leituras da sociedade de determinada época e reinventam o próprio ato de escrever dentro de um determinado idioma”, explica.

Não se trata, portanto, de preconceito. Pelo contrário, são escritos complementares, porque a literatura juvenil é uma ponte até os clássicos, segundo Oliveira.

Dez anos atrás, mais de 60 estudiosos do mundo todo se reuniram durante dois dias na Universidade de St. Andrews, na Escócia (onde fica Hogwarts!), para discutir os méritos acadêmicos de Harry Potter, incluindo temas como o papel do paganismo na literatura, identidade nacional britânica e como a morte é tratada na série, além de análises sobre a estrutura narrativa dos livros. O evento, é claro, não aconteceu imune a críticas.

“De fato, estudar Harry Potter como uma obra literária vira o mundo literário de cabeça para baixo. Se Dumbledore e Hagrid podem receber o status de Dom Quixote e Hamlet, é alarmante contemplar o que vem a seguir. Uma interpretação distópica de A Lagarta Muito Comilona? A série Crepúsculo como uma obra nível A? (...) Vamos esperar que os participantes tenham aprendido alguma coisa: J.  K. Rowling pode ser uma grande contadora de histórias, mas ela não é Shakespeare. Seus livros, embora fascinantes, não foram escritos para estudos acadêmicos. É uma injustiça para os verdadeiros grandes nomes literários da Grã-Bretanha fingir o contrário”, escreveu, na época, a jornalista Sarah Rainey em uma matéria do The Telegraph.

Há, ademais, outras polêmicas envolvendo Harry Potter, da falta de diversidade entre os estudantes e corpo docente de Hogwarts a comentários de J. K. Rowling postados no Twitter ao longo dos últimos anos e interpretados como transfóbicos por usuários da rede social. Como quando a autora criticou o termo “pessoas que menstruam” em vez de “mulheres” ou defendeu que se seguisse usando “sexo” (masculino ou feminino, atrelado à biologia) em vez de “gênero”.

Discussões necessárias e que são um sinal dos tempos. Não há dúvidas de que Harry Potter é um fenômeno e despertou o gosto pela leitura de milhares, quiçá milhões, de leitores nesses 25 anos — porque de nada adianta ter lido a série e ficado somente nela, não é? —, mas é o olhar crítico que separa a realidade do encantamento.

 

Mariana Balan é jornalista, com passagem pela Gazeta do Povo e experiência em assessoria de imprensa e relações públicas. Murilo Basso é jornalista, com passagens pela Gazeta do Povo, Rolling Stone e Editora Abril.