ESPECIAL | Passado, presente e futuro 30/11/2022 - 12:18

Leia os melhores momentos do bate-papo realizado durante a 6ª edição da Festa Literária da Biblioteca Pública do Paraná, no início do mês

 

Rápidas transformações

Eu me lembro da casa com fogão de lenha. Lembro da chegada da primeira geladeira em casa. Ou seja, passei por esse processo que também é a História do Brasil. Um país que era predominantemente rural nos anos 1950 e hoje é predominantemente urbano. Essas transformações foram muito rápidas, violentas, estruturais. Dizem que a minha geração foi a mais bem tratada do mundo, a geração pós-Segunda Guerra. Os pais, ou os avós, sofreram com guerras, massacres, pobreza, miséria. Mas, após os anos 1950, houve no ocidente um incrível embalo de prosperidade, via Estados Unidos, que acabou criando a classe média brasileira também.

Se eu pensar na história da minha família, meu pai era o quê? Um dos 12 irmãos de uma família de imigrantes italianos, lá de Urussanga. E ele foi praticamente o único que saiu de casa na época. Foi para o Exército com 17, 18 anos para completar a alfabetização e acabou se tornando advogado. Antes tinha sido carteiro em Lages. Depois, todos os filhos dele vieram para Curitiba e se formaram na universidade. Houve uma ascensão de uma classe média que saiu do campo para a cidade e que de certa forma foi o retrato do Brasil entre os anos 1950 e 1980. Acabei, como escritor e pelas circunstâncias, absorvendo tudo isso aí.

 

Lastro curitibano

Em 1960, fiz o terceiro ano primário em Lages (SC). No ano seguinte, em janeiro, a gente se mudou para Curitiba. Morava na Mateus Leme e estudava naquele grupo escolar ali da Tiradentes. Toda a minha literatura está aqui nesta cidade. Ela é mais curitibana do que paranaense, porque o Paraná é uma colcha de retalhos culturais bastante diferentes. O lastro curitibano é muito específico, não dá para misturar facilmente com a produção literária da região Norte do Paraná, da região Oeste.

Nos anos 1960, ali na Boca Maldita, você podia ir a pelo menos 10 cinemas. Tinha o Ópera, o Arlequim. Isso tudo desapareceu quando surgiu a cultura do shopping. Minha formação intelectual se fez ouvindo as conversas dos mais velhos, cheguei até a ouvir a conversa do Dalton Trevisan. No meu livro A Suavidade do Vento, coloco meu personagem circulando ali na Boca Maldita e ouvindo uma frase do Dalton. Foi uma coisa marcante, eram os mestres da província.

 

Qualidade de caráter

Minha geração teve mil defeitos, muitas miopias nas percepções das coisas. Mas tinha uma qualidade de caráter, de natureza e espírito do tempo. Ela não era cínica, as pessoas acreditavam profundamente naqueles projetos. E isso, às vezes, pode ser até suicida, pode destruir as pessoas. Mas era uma coisa de se jogar meio de cabeça.

O sonho de todo adolescente era sair de casa. Hoje, não, os adolescentes querem ficar até os 50 anos em casa, ninguém quer sair. Terminei o segundo grau e não quis ir para a universidade, porque achava que a universidade ia me destruir como escritor. Acabei me juntando a uma comunidade de teatro liderada pelo Wilson Rio Apa, vivia com eles lá em Antonina. Ele era um guru, e todo mundo naquela época tinha um guru. Mas o meu primeiro guru foi o Jamil Snege, na Boca Maldita, acho até que ele escreveu sobre isso.

 

Tezza
Cristovão Tezza foi homenageado na 6º edição da Flibi. Foto: Murilo Ribas

 

No fio da navalha

O Rio Apa era bem antissistema e, ao mesmo tempo, um patriarca medieval. Era um cara de um reacionarismo, de um conservadorismo atávico. Tinha teorias de buscar uma essência natural das coisas. Então ele era um arquiconservador de um lado e de outro lado um cara antissistema, um inadaptado. Isso é muito o espírito dos anos 1960. Você ouvia um discurso repressivo, no sentido de que a civilização era um erro, de que as cidades vão destruir as pessoas, de que nós precisamos voltar à essência. Essas ideias tiveram um renascimento muito forte nos anos 1960.

Por outro lado, tive influência de projetos de iluministas que eram as minhas leituras de infância. Monteiro Lobato, Júlio Verne, Sherlock Holmes… Sempre cito Sherlock Holmes como exemplo de iluminista. Um sujeito que só pela inteligência e por alguns sinais descobre, interpreta o mundo e resolve problemas. Essa minha formação de infância entrou em choque com aquela influência emocional da nova geração, vivi nesse fio da navalha. É uma coisa complicada, mas bateu muito forte no que escrevi depois.

 

Modismos

Nos anos 1980, não entrei na moda da chamada de literatura pós-moderna, em que você escreve uma coisa e depois avisa para o leitor: “Olha, tudo que eu escrevi é bobagem, isso não existe, é falso”. Como se o leitor fosse idiota e você tivesse de explicar para ele que a literatura é uma convenção. Você tira todo o encantamento da fábula, todo o encantamento da representação dupla, das hipóteses de existência, para dizer que aquilo é apenas um jogo de palavras, que não significa nada.

O escritor não pode correr atrás de moda. Você tem um projeto e ele é pessoal. Você tem que tocar as suas próprias referências até onde der, para ir se transformando. E eu sinto que fui me transformando ao longo da minha escrita. O mundo inteiro muda e você não pode continuar fixo, com aquelas obsessões originais. Você tem que se transformar junto de alguma forma e ir acompanhando para dar conta do recado.

 

Ponto de vista feminino

Beatriz e o Poeta foi escrito praticamente em tempo real, na pandemia. A Beatriz é uma espécie de personagem coringa minha. Ela nasceu de um teste para escrever contos, um gênero que não domino muito. Tanto que os contos que escrevo têm sempre os mesmos personagens. E também nasceu da minha inveja de autores policiais que têm sempre aquele personagem fixo. O leitor já sabe quem é, já é alguém da família dele. Então o autor só precisa de uma trama, pois o personagem completo e complexo já está lá.

A Beatriz também me cria problemas interessantes, literariamente, porque é o ponto de vista de uma mulher. É uma coisa que me obriga a ver o mundo de outra forma. Você tem que quebrar vários preconceitos, várias dificuldades para mergulhar nisso aí, é sempre um risco. Ela é, fundamentalmente, uma personagem reflexiva para mim. Porque ao romance cabe isso, o romance é um espaço de se refletir sobre o tempo contemporâneo.

 

A melhor escolha

O grande problema do escritor, e passei a vida lutando por isso, é: “O que eu tenho de fazer para sobreviver e continuar a escrever?”. Escrever era o projeto, o resto era só o andaime que me deixava em pé para escrever. Todo mundo que escreve tem que pensar nisso.

Lembro que, quando acabei o curso de Letras, tinha três opções profissionais de vida, típicas de escritor: ser jornalista, publicitário ou professor, que foi o que escolhi. Achei que seria a coisa que me deixaria com mais tempo e condições de escrever. Não me enganei, foi a melhor escolha.

 

O cronista

Uma das coisas que me influenciaram tardiamente, depois dos 50, foi escrever para jornal. Primeiro aqui na Gazeta do Povo, onde comecei a escrever crônicas todas as terças-feiras. Um gênero absolutamente novo pra mim, nunca tinha feito isso. Um texto que deverua ter 3 mil toques, toda semana e sobre qualquer coisa. Aí você começa a prestar atenção na vida cotidiana. De certa forma, o cronista é aquele que escreve sobre o que está acontecendo.

Então comecei a ler muita notícia, a vida contemporânea começou a entrar pelos poros. Você tem que prestar atenção no dia a dia, é um texto que morre no mesmo dia em que você escreve. É um gênero difícil, ele pode ser qualquer coisa, mas precisa sempre ter um pé na realidade cotidiana imediata. Você faz qualquer coisa numa crônica, pode ser literatura, psicologia. Mas tem um ponto que é recorrente, uma âncora no momento presente, na história presente. Isso certamente foi deixando marcas.

 

Inspiração e prática

A inspiração precisa de trabalho, e é claro que depois de um certo tempo a mão que escreve já sabe mais do que o próprio cérebro. Quando se tem 50 anos de literatura, como eu, você parece que já sabe o atalho, já sabe o que quer, não perde tempo com besteira. Porque você vai construindo a própria linguagem, vai como que burilando a si mesmo como representação no mundo. Sair desse caos mental, dessa vida real para a página escrita, é um processo de delimitação que nos delimita também. Você escolhe o mundo em que quer viver, escolhe as referências que te interessam, escolhe a maneira de interpretar as coisas.

Toda pessoa que começa a escrever, que sai do mundo da oralidade para a escrita, percebe o tombo que é isso, percebe como é difícil. Aquilo que você tem na cabeça parece tão nítido. Mas, no momento em que escreve, parece que fica tudo estropiado, que não é bem isso, que precisa trocar a palavra. Só a prática da escrita vai te dando um caminho.

 

Redes sociais

O espaço de divulgação literária hoje se deslocou para as redes sociais. Você precisa estar no Facebook. Eu tenho um Facebook oficial, que é tocado pelo meu sobrinho, o André. Eu aprendi a colocar as coisas lá, mas aquilo é puramente informativo. Não tenho como responder nada. Porque se a pessoa manda uma coisa e você começa a responder, você não faz outra coisa na vida.

E a gente tem que se preservar um pouco, porque é muito desgastante. Há pessoas mais fortes, mas eu sou muito frágil, sou muito influenciável. Fico afetado com coisas assim e isso me deixa mal. Então deixa eu cuidar da minha vida, escrever meus livro.

 

Espelho duplo

A literatura não vai desaparecer. Não desapareceu até agora, apesar de algumas vezes ter hibernado por muito tempo. A literatura é uma linguagem, uma criação de hipóteses de existência. Mas que põe em jogo, põe em prática, põe em teste todas as linguagens sociais de que dispõe. Ela se apropria do jornalismo, da psicologia, da História, da fé, da religião, da ciência, de tudo. Todos os cursos sociais estabelecidos são usados pela literatura, e ela não se confunde com nenhuma dessas linguagens unilateralmente.

Você cria um mundo paralelo para melhor pensar sobre o mundo real, como uma espécie de espelho duplo. Toda nossa palavra é dupla. Mesmo na maior solidão, você pensa numa palavra e tem alguém ouvindo, tem um processo, tem alguém que quer dizer aquilo que você disse. A literatura é esse grande diálogo com o mundo real. É o mundo alternativo em que a gente põe a prova a hipótese de existência para dar conta do recado, que é viver.