ESPECIAL | O literário é sentir 31/08/2023 - 09:49

Apesar de sempre estarem presentes no jornalismo literário, as mulheres foram apagadas da história do movimento, que possui em sua essência a subjetividade e a liberdade de escrita
 

Juliana Sehn

 

Quando Mineirinho, um assaltante considerado como um “Robin Hood” carioca, foi cruelmente assassinado com 13 tiros pela polícia do Rio de Janeiro em 1962, os jornais da época publicaram manchetes como: “Mineirinho capturado na Praça Onze e executado na Cachoeirinha” (Última Hora, 1962) ou “Desarmado e em pleno centro da cidade, executado ‘Mineirinho’” (Luta Democrática, 1962). Assim como também é comum hoje, por mais brutal que fosse a situação relatada, os jornais a abordaram de maneira distante e objetiva.

Por outro lado, sobre o mesmo fato, Clarice Lispector escreveu para a revista Senhor: “Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro” (Senhor, 1962).

O que marca a diferença entre a abordagem de Clarice e dos jornais periódicos da época é o gênero textual: enquanto as publicações diárias se mantém à narrativa dos fatos de forma direta e impessoal, como é incentivado no jornalismo tradicional, a escritora trata o ocorrido pelo viés do jornalismo literário, escrevendo com maior liberdade de explorar a linguagem de forma sensível e subjetiva, dialogando com a literatura.

Para a jornalista e pesquisadora Cíntia Silva da Conceição, lembrando de uma fala de Nana Queiroz, se o jornalismo tradicional é ouvir, o literário é sentir. Cíntia explica que esse movimento responde todas as perguntas que o jornalismo tradicional responderia, mas de forma mais próxima e sem o filtro dormente e automático da rotina.

 

Masculin Féminin

Após desaparecer por um período de tempo, o jornalismo literário voltou a receber a atenção dos profissionais da área e do público nos últimos anos. O movimento por vezes é relacionado a uma discussão atual sobre a subjetividade no jornalismo. Esse debate consiste em questionar a tão renomada e tradicional objetividade utilizada como base no fazer jornalístico e, ao mesmo tempo, em pensar na subjetividade como uma ferramenta válida e legítima para esta atividade.

De acordo com Cíntia da Conceição, o livro de Marcia Veiga da Silva Masculino, o Gênero do Jornalismo: Modos de Produção das Notícias (Insular, 2014) discute esse tema, argumentando que as redações, sempre muito masculinas, trazem o costume de se esconder por trás da objetividade. “É como se o repórter nunca tivesse pensado nada na vida dele. Ele está ali só para relatar os fatos, mas nunca viveu nada, é uma folha em branco”, comenta a pesquisadora. Essa moda da objetividade, que marcou o jornalismo por tanto tempo, também está relacionada com o fato de, historicamente, existirem muito mais homens nas redações do que mulheres. “Relacionam muito essa objetividade com o masculino”, aponta Cíntia. “Se a objetividade é masculina, a subjetividade é feminina. O jornalismo literário trabalha com subjetividade.”

Se a subjetividade é feminina e o jornalismo literário é subjetivo, por que a maioria dos nomes citados como clássicos desse gênero são de homens? A tradutora e jornalista Mariana Sanchez lembra da época da faculdade, há mais ou menos 20 anos, quando as referências de jornalismo literário eram os “papas” do new journalism, como era chamado o movimento que fomentou os trabalhos de jornalismo literário nos anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos: Tom Wolfe, Gay Talese e Norman Mailer. Além desses, ainda eram frequentes nomes como John Hersey, Truman Capote, Fernando Morais e Ruy Castro. Apenas mais tarde a tradutora entrou em contato com obras de mulheres como Janet Malcolm, Leila Guerriero e Marilene Felinto. A jornalista e editora Yasmin Santos também recorda se deparar com os mesmo nomes masculinos nas aulas da faculdade, com uma quantidade ínfima de nomes femininos.

A realidade das redações majoritariamente masculinas por décadas é um dos fatores que contribuíram para o apagamento das mulheres na história do jornalismo literário, aponta Cíntia da Conceição. A pesquisadora explica que os próprios assuntos tratados pelo new journalism, como guerra e política, eram considerados como masculinos. Até Gay Talese chegou a dizer que aqueles não seriam ambientes “adequados para uma dama”.

A pesquisadora ainda adiciona que, mesmo quando as mulheres conseguiam conquistar esses espaços, elas geralmente eram deixadas de lado ou sofriam algum tipo de assédio moral. No entanto, apesar das limitações e desse apagamento, Cíntia confirma que as mulheres estavam lá. “Se você procurar muito bem você encontra essas mulheres.”

 

As mulheres do new journalism

Cíntia da Conceição passou a investigar sobre mulheres no jornalismo literário quando se deparou com o livro A Turma Que Não Escrevia Direito (Record, 2010), de Marc Weingarten. O exemplar que a pesquisadora encontrou tinha na capa uma foto da escritora e jornalista norte-americana Joan Didion, considerada hoje como uma das grandes representantes do jornalismo literário. A autora é citada como referência pessoal de Cíntia, Mariana Sanchez e também da jornalista e escritora Marleth Silva. Para Marleth, a autora estadunidense é uma inspiração libertadora, por ser uma figura mais tímida e silenciosa, quebrando a ideia do jornalista desinibido, mas mesmo assim realizando um trabalho excelente. “Eu nunca fui extrovertida, nem muito falante. Então as pessoas sempre achavam que eu não parecia jornalista. Gosto de saber que outras pessoas como eu, que não são expansivas, desinibidas, conseguem fazer um trabalho tão bom. Essa figura dela sempre me fascinou por isso”, reflete a escritora.

 

Joan Didion
Joan Didion. Foto: Autostraddle

 

Ao terminar a leitura do livro de Marc Weingarten, Cíntia se incomodou com o fato de que o capítulo sobre Joan Didion tinha apenas nove páginas, muito menos do que os demais nomes abordados na obra, todos masculinos. No próprio livro, o autor fala sobre um dos motivos que fizeram com que jornalista norte-americana recebesse menos atenção que os demais profissionais do new journalism: enquanto a efervescência do movimento acontecia em Nova York, em revistas como a The New Yorker e a Esquire, Didion morava na Califórnia e acabava publicando apenas nos veículos de lá. Weingarten chega a afirmar que a autora poderia ter sido maior que Tom Wolfe e Gay Talese, porém não publicava nas revistas certas.

Mas a história de outras jornalistas mostra que esse não é o único motivo para que Didion ficasse de lado e que outras profissionais da área também permanecessem ofuscadas. Gloria Steinem é um exemplo de jornalista que esteve próxima da bolha do new journalism e teve que lidar com situações desagradáveis na profissão. Ela saiu de sua cidade para morar em Nova York, com uma ótima formação acadêmica e buscando escrever sobre política. No entanto, ao entrar em uma redação foi diretamente movida para as editorias de moda e beleza. “Ela sempre tinha essa barreira de as pessoas falarem: Ah não, não adianta, isso não é assunto para mulher”, conta Cíntia. Gloria revelou, em uma entrevista para o El País, que chegou a ouvir do próprio Gay Talese, comentando ao escritor Saul Bellow: “Você sabe que todo ano uma garota bonita chega a Nova York mostrando que é escritora? Bom, a Gloria é a garota bonita deste ano.”

Em determinado momento, Gloria decide investigar sobre as condições de trabalho das “coelhinhas” que trabalhavam como garçonetes nos bares da Playboy. Para isso, a jornalista se disfarça de coelhinha e começa a trabalhar em um dos estabelecimentos enquanto levanta informações. Com base nisso é publicada a reportagem A Bunny’s Tale (Show, 1963), na qual são denunciadas as situações de trabalho degradantes das mulheres empregadas ali. Com isso, a Playboy é intimada para que as condições de trabalho das coelhinhas fossem revistas. “Uma matéria que ela escreveu mudou as condições de trabalho de várias mulheres que estavam lá dentro”, conclui Cíntia.

Apesar disso, a repercussão da publicação para Gloria não foi totalmente positiva. A profissional foi imediatamente sexualizada pelo disfarce que adotou para a reportagem e passou a ser taxada como a jornalista que “escreve sobre sexo”. Com receio de ficar permanentemente marcada por essa imagem deturpada, Gloria chega a recusar as propostas que recebeu de editoras para publicar a matéria em livro, caminho que era comumente seguido pelos profissionais do new journalism.

Cíntia da Conceição compara esse caso com a figura de Talese, que escreveu algumas reportagens que tinham como tema situações relacionadas à sexualidade, como A Mulher do Próximo (Companhia das Letras, 2002), trabalho para o qual ele chegou a atuar como gerente de uma casa de massagens nos Estados Unidos para observar e compreender as tendências e os costumes sexuais dos norte-americanos das décadas de 1960 e 1970. Cíntia chama a atenção para o fato de que, mesmo se colocando muito próximo dos objetos retratados — tanto nessa obra quanto em outras, como O Voyeur (Companhia das Letras, 2016) —, Talese nunca foi sexualizado ou marcado de forma negativa pelos temas polêmicos de suas reportagens.

 

Yasmin Santos
Yasmin Santos. Foto: Divulgação

 

Yasmin Santos também comenta sobre a dificuldade que as mulheres tinham tanto para criar quanto para cobrir assuntos que envolvessem a sexualidade: “Durante muito tempo, enquanto os homens podiam falar abertamente sobre sexualidade em seus livros, as mulheres não podiam, por serem taxadas de promíscuas e serem vistas como não profissionais”.

Outro nome feminino importante do new journalism é Gail Sheehy, que decidiu explorar o mundo da prostituição em Nova York, imergindo-se nas dinâmicas dos cafetões, das prostitutas e dos profissionais jurídicos envolvidos. Sheehy estabeleceu uma conexão com uma prostituta apelidada de Red Pants, que se tornou o foco de sua narrativa. A história tomou um rumo inesperado quando Red Pants desapareceu, temendo retaliações devido à exposição pública de sua vida. Gail Sheehy, determinada a concluir a matéria, seguiu conversando com outras prostitutas e optou por trabalhar com uma composição de personagens, combinando no texto relatos reais de mulheres diferentes na personagem de Red Pants. A composição de personagens era uma técnica bastante utilizada no new journalism, com o exemplo de Michael Herr, que cobriu a Guerra do Vietnã e reuniu histórias de diversas fontes na figura de um único capitão do exército.

Sheehy escreveu no primeiro parágrafo da matéria que havia ali uma composição de personagens. No entanto, essa parte do texto foi apagada pelo editor, já que se tratava de uma prática comum na época e não era de costume adicionar esse aviso. Pouco tempo depois, Gail passou a receber críticas quando descobriram que ela “mentiu” sobre Red Pants. Aqueles que já criticavam o new journalism viram aquilo como uma oportunidade de se posicionarem mais uma vez contra o movimento, que acabou perdendo força pelos próximos anos, tanto nos Estados Unidos quanto no resto do mundo.

Marleth Silva reafirma que, na época em que era repórter, nos anos 1980 e 1990, o jornalismo literário estava esquecido e que apenas nos últimos 20 anos, já como editora, começou a ver uma retomada do movimento no Brasil.

Cíntia da Conceição ressalta o fato de que Gail Sheehy não fez nada diferente do que muitos outros jornalistas do new journalism faziam na época. “É como se a Gail tivesse acabado com o new journalism, sendo que há muito tempo vários escritores já faziam isso. Quando ela faz  é: ‘meu Deus, matou o movimento, estragou tudo’”, diz a pesquisadora.

 

O olhar do pesquisador

Outra questão colocada por Cíntia como um agravante do apagamento das mulheres no jornalismo literário é o que ela chama de olhar do pesquisador. De acordo com a jornalista, a maior parte das pesquisas sobre o new journalism são feitas por homens. Tom Wolfe, no livro The New Journalism (Harper and Row, 1973), escolheu elencar como representantes do movimento norte-americano 19 jornalistas homens e apenas duas mulheres. Nas coletâneas de jornalismo literário lançadas pelas editoras, dificilmente aparece uma mulher. “Toda vez que você vai pesquisar, são sempre os mesmos autores, que trabalhavam nas mesmas revistas, falando sobre os mesmos temas, que estavam nas antologias”, aponta a pesquisadora.

Yasmin Santos opina que a falta de mulheres para resenhar, entrevistar e ler autoras femininas também dificultou a inclusão delas no mercado e nas pesquisas. “Foram muitas gerações de homens lendo livros escritos por homens, geralmente brancos e de classe média alta”, argumenta a editora. Ela também ressalta que as atividades intelectuais em geral eram sempre reservadas aos homens.

No Brasil, o cenário é ainda mais turvo. Enquanto que nos Estados Unidos os pesquisadores já identificaram esse apagamento, aqui, Cíntia diz que não consegue encontrar muitos estudos sobre mulheres no jornalismo literário. No entanto, para a jornalista, pesquisar e não encontrar nada já é um fato e já demonstra um viés. Ela cita o estudo de Monica Martinez, que pesquisa jornalismo literário na Universidade de Sorocaba. No artigo Gender, Women, and Literary Journalism Studies: A Brazilian Perspective, Martinez fala um pouco sobre o viés das pesquisas sobre jornalismo literário no Brasil e afirma que, com certeza, existiam mulheres trabalhando com jornalismo literário em décadas posteriores. Entretanto, há ainda hoje uma lacuna nessa área de estudo e é necessário realizar uma investigação para que isso seja evidenciado.

O único nome que Cíntia da Conceição pode destacar do jornalismo literário do Brasil em tempos paralelos ao new journalism é Clarice Lispector, que ficou mais conhecida como escritora. Fora ela, as demais mulheres que escreviam dentro do movimento na época parecem ainda estar escondidas.

O que já é evidenciado por relatos e pesquisas é que no Brasil as redações também eram majoritariamente masculinas e que as poucas mulheres que faziam parte delas não eram bem vistas, nem bem tratadas. Um exemplo marcante do abuso moral que as mulheres podiam sofrer naquela época é o caso de Sylvia Serafim, uma jornalista feminista, que, apesar de seus pedidos ao jornal, teve seu divórcio exposto no Crítica, com injúrias pesadas e insinuações falsas de que ela havia cometido adultério. Após a publicação da matéria, Sylvia se dirigiu à redação do jornal e atirou em Roberto Rodrigues, irmão do escritor Nelson Rodrigues. Roberto havia feito uma ilustração ofensiva que sugeria o suposto adultério de Sylvia (desmentido depois pelo próprio ex-marido), a qual ilustrava a matéria em questão. Com Roberto Rodrigues morto, Sylvia Serafim foi presa em flagrante, mas depois absolvida pelo júri sob o argumento de que havia cometido o crime em defesa de sua honra. Mesmo assim, a jornalista permaneceu marcada por muitos anos, inclusive em peças e publicações, como a “meretriz sanguinária” que assassinou o irmão de Nelson Rodrigues.

 

O cenário hoje

Marleth Silva conta que nas décadas de 1980 e 1990, ainda havia desvantagens no ambiente de trabalho para as mulheres jornalistas, mas que nos últimos anos a situação tem se equilibrado mais. Se antigamente as redações contavam com poucas mulheres, a partir de 2012 elas viraram maioria nesses ambientes, de acordo com o artigo de Monica Martinez. Eliane Brum, Adriana Negreiros e Fabiana Moraes são alguns dos nomes de brasileiras contemporâneas que deixaram sua marca no meio do jornalismo literário. Nos Estados Unidos, Janet Malcolm e Joan Didion, ambas falecidas em 2021, também ficaram muito conhecidas. Apesar da conquista desse espaço pelas mulheres, nos cargos do “topo” das redações ainda permanecem, em grande maioria, os homens.

A jornalista e tradutora Mariana Sanchez percebe o número de mulheres autoras na literatura de não ficção aumentando nos últimos tempos. “Basta uma espiada no catálogo das editoras, tanto as independentes quanto os grandes grupos editoriais, para notar que há infinitamente mais autoras sendo publicadas hoje do que em décadas passadas”, aponta a tradutora. Sanchez suspeita que os motivos para esse crescimento seja uma confluência de fatores, incluindo o represamento histórico dessa produção, uma maior promoção da bibliodiversidade impulsionada pela quarta onda do feminismo e a qualidade inegável das obras que têm surgido.

Segundo a tradutora, o maior obstáculo atual de autoras da América Latina em geral é a falta de veículos investindo nesse tipo de publicação. “O que eu vejo é que todas as autoras estão no mesmo barco, lutando pelo espaço cada vez mais escasso onde publicar suas histórias”, afirma Sanchez.

Yasmin Santos também encontrou algumas dificuldades em sua trajetória com o jornalismo literário. A jornalista sempre abordou a literatura de uma perspectiva ativista, como mulher negra, utilizando a área como uma ferramenta de luta. Para ela, a maior dificuldade no meio do jornalismo literário foi fazer as pessoas compreenderem que, apesar de se interessar e se dedicar ao ativismo, ela se interessa por literatura no geral e não apenas por aquela que se relaciona com pautas raciais. “A escrita de mulheres, de pessoas negras, de pessoas trans não é uma escrita só ativista. Pode ser, mas é também uma escrita que tem fundamento, tem um estilo, tem referências estéticas, que estão para além do superficial dessa lógica que chamam de identitário”, explica a jornalista.

Cíntia da Conceição vê como um desafio atual na área, preencher a lacuna que permanece nas pesquisas sobre o assunto: “Agora fica nas nossas costas, como pesquisadoras, procurar essas mulheres que fizeram parte do jornalismo literário brasileiro. Porque elas estavam aí, mas precisamos procurar mais pra encontrar.”