ESPECIAL NICOLAU | As guerreiras do contestado 27/03/2024 - 12:24

Virgens crianças tornadas imbatíveis amazonas. As mulheres na Guerra do Contestado. Ficção? Realidade? Paraná. Brasil.

 

Adélia Maria Lopes

 

Uma guerra, envolvendo militares e forças políticas regionais contra camponeses envoltos em profecias e por virgens videntes, aconteceu ao Sul do Brasil, logo após Canudos, pouco antes e durante a I Guerra Mundial. Contestado, assim chamada.

Vinte mil pessoas entraram nesse conflito usando espadas esculpidas em madeira cambui (muito dura), e a elas, com o tempo, se juntaram as temíveis Winchester, contra­bandeadas pelos caboclos em sacos de farinha.

Para detê-las, seis mil homens do Exército, em nome da República e em defesa da ferrovia Brazil Railway, da colonizadora Lumber e de sua serraria (cinco milhões de árvores arrancadas entre 1911 e 1940). Como armas: Mauser, granadas, canhões com balas de sete quilos, metralhadoras e a aviação militar, pela primeira vez em operação no país em um conflito armado. O território conflagrado abrangeu 28 mil quilômetros em Santa Catarina e 20 mil no Paraná, perdurando de 1912 a 1916, com o massacre final dos revoltosos (ou "pelados", ou jagunços e fanáticos, mas, na verdade, caboclos brasileiros).

E é justamente a questão da soberania territorial que faz o Contestado remontar a 1494 — antes mesmo da descoberta da Terra de Santa Cruz —, com o Tratado de Tordesilhas. Uma história portanto longa, repleta de detalhes, de misticismo, sangue e lendas. Contudo, jamais alardeada pelo Paraná.

O primeiro resgate da memória do Contestado aconteceu com o romance Casa Verde (1955), do paranaense Noel Nascimento. Antes, apenas os dois volumes do general Setembrino de Carvalho (1916). Há sete meses, o jornalista Milton Ivan Heller (Resistência Democrática, Paz e Terra, 1988) retomou o tema para um livro, mergulhando em incontável bibliografia e depoimentos. Por quê? O Paraná — responde — está em débito com o Contestado, silencioso e envergonhado com a perda de considerável porção do seu território, que se cristalizou com o “acordo” de 20 de outubro de 1916. Os catarinenses, ao contrário, julgando-se vitoriosos em uma questão de limites que se arrastou por 75 anos, sempre procuraram manter viva, na memória de todos, a chama do Contestado, sem dúvida um dos episódios mais controvertidos e sangrentos de nossa história.

Durante uma semana, acompanhei os pesquisadores na coleta de depoimentos em Santa Catarina. Mas eu estava em busca apenas de um capítulo: as mulheres da Guerra do Contestado. Um cipoal de informes desencontrados formou-se no caminho. A história ainda está muito viva, fere e arde. E, às vezes, envergonha aqueles caboclos de pés nus no chão, ainda hoje levando a vida de derrotados, pois a vitória foi do Estado. E guarda muitos mistérios: principalmente em relação às camponesas convertidas em “santas” guerreiras.

Maria Rosa e Teodora são os únicos nomes femininos citados entre milhares de anônimas caboclas da Guerra do Contestado. A história nunca foi mesmo generosa com o sexo feminino. O general Setembrino de Carvalho em seu relatório ao Ministro da Guerra, em 1916, não registra as mulheres em armas. E faria?

Difícil imaginar a pena assinalando que soldados temiam Maria Rosa, uma adolescente de 15 anos. Ou Teodora. de 13. O Museu do Contestado. em Caçador, uma das cidades-palco do conflito, recompõe Maria Rosa em trajes que lembram Maria Bonita do senão nordestino, aparentada de rifles e cartucheiras.

Tantos mistérios envolvem Maria Rosa, a “virgem” que tinha visões do monge José Maria e comandava o Exército Encantado de São Sebastião. Não se sabe como entrou ao certo na guerra. Não se sabe nem como morreu. Casou-se com um moço alemão, diz Zélia de Andrade Lemos no livro Curitibanos na História do Contestado, contrariando todas as fontes que a dão como morta na última batalha.

A virgem visionária morreu em Timbó, não deixou filhos. Atravessava o rio Caçador Grande quando tombou sob saraivada de balas, em abril de 1915, afirma Nilson Thomé. autor de várias publicações sobre o Contestado. Ainda não escrevi em livro essa versão, mas ela é verdadeira. Ouvi pessoas que testemunharam sua morte, assegura, em sua ampla sala de diretor da Fundação Educacional do Alto Vale do Rio do Peixe, em Caçador.

Segundo seus informes. Maria Rosa é grande heroína. Por inspiração própria, ela comandou o Exército Encantado com cinco mil homens. Era guerreira mesmo pegava em armas. E a descreve como morena cor-de-cuia, 1,65m de altura no máximo, magra, muito bonita, cabelos compridos e negros (esqueceu-se de perguntar a cor dos olhos à sua fonte), e vestia-se com saias longas. Era uma jovem de seus 15 anos, loira, cabelos crespos, alegre. comunicativa, (...) Rosa era analfabeta, mas tinha o dom da comunicação. Vestia-se, assim como todas as virgens, sempre de branco, com fitas azuis e verdes, bem como pensas de pássaros coloridas, asseveram Marlene Bertoldi e Ester Ostrowski em História da Evangelização na América Latina (Edições Paulinas, 1988), repetindo a descrição de Maurício Vinhas de Queiroz em Messianismo e Conflito Social — A Guerra Sertaneja do Contestado (Civilização Brasileira, 1966).

 

Homem companheiro ela mandava amar; o opositor, mandava refrescar, degolar, hábito muito comum ali

Vinhas acrescenta: Em geral, o povo dos redutos (povoados tipo acampamento dos rebelados) considerava Maria Rosa uma "santa" e julgava que ela "tudo sabia". Cumpria o povo, religiosamente, as ordens que dela ema­navam. Era encarada como a representante da vontade do monge, de quem conhecia os secretos desejos. Desig­nava os chefes ostensivos, destituía-os dos comandos, sen­tenciava. E tinha também certo humor em suas sentenças. Conta o mesmo autor uma dessas passagens: ao analisar o caso de um forasteiro que entrara no reduto em busca da noiva ali refugiada, Maria Rosa resolveu acolhê-lo, porém ressalvando: Se ele ficar companheiro, mando amar ele; se ficar contrário, mando refrescar. “Refrescar”' era a gíria de então para degolar, um hábito muito comum ali. Consta que a própria Maria Rosa fazia degolas. Não há relatos precisos se ela realmente batia-se em armas. Há suposições. Numa de suas ordens, citadas pelo tenente Pinto Soares em Guerra em Sertões Brasileiros, ela dá três alternativas em caso de desobediência: primeiro, “um conselho”, depois “no marmelo” e terceiro, “matarei”. Ou no relatório do general Setembrino: As mulheres que se bateram com os homens foram mortas em combate.

Ou ainda na reportagem do jornal A Tribuna, de Curitiba, 25/12/1913: Um vaqueano Taquaraçu e que esteve com os fanáticos conta que viu mulheres armadas de facão e de pistola, citado por Jean Claude Bernardet em Guerra Camponesa no Contestado (Global, 1979).

 

Maria Rosa era loura, bem clara, cabelos soltos, analfabeta, e mandava matar uma barbaridade

Maria Rosa era loura, bem clara, cabelos soltos ao vento, analfabeta não conhecia nenhuma letra, e mandava matar que era uma barbaridade. Assim se recorda Elias da Silva Ribeiro, 91 anos. Mora numa casa de madeira em Monte Alegre, arredores da cidade de Curitibanos. Tinha 14 anos quando deu-se o fanatismo daquelas gentes desassistidas, seguidoras da fé dos monges. Não participou da guerra, nem dos redutos. O irmão, José Maria da Silva Ribeiro, foi tropeiro dos jagunços. Ele, contudo, afirma que foi vizinho da família de Maria Rosa. Passa os dias remoendo suas lembranças caóticas, entre elas a de que a “virgem” obteve refúgio na fazenda de Silvério Bastos, também ali nas redondezas, casou-se com um alemão, teve oito filhos e morreu rica".

Na fazenda dos Bastos, o filho Sebastião, de 75 anos, diz que Maria Rosa foi adotada, passou a se chamar Rosa Alves Ribeiro, casou-se e foi morar em Pouso Redondo, perto de Rio do Sul. Mostra a foto de uma mulher sorridente rodeada de filhos, ao lado do marido de descendência alemã. Em Pouso Redondo, as filhas de Rosa desfazem o equívoco. Nascida em 1910, Rosa era uma criança durante o Contestado. Está sepultada ao lado do marido, Cristiano Westphal, no cemitério de Pouso Redondo. Mesmo assim, devido ao lançamento do livro Curitibanos no Guerra do Contestado, essa família tem sido erroneamente citada em reportagens. Mas Rosa — constatação compro­vada agora nesta pesquisa — não é a mesma Maria Rosa: nem idade, nem fotos, nem relatos confirmam a versão. Na escola chegaram a me chamar de neta da jagunça, recorda Juliana. Sua mãe, dona Alzira, uma funcionária pública aposentada, desconhecia até mesmo detalhes do Contestado. Ao saber, entretanto, das origens e das razões da luta, ela fez um comentário inesperado: Mas esta situação de exploração do povo ainda não acabou. Outra guerra dessas pode acontecer de novo.

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A Rosa que casou com o moço alemão: Morena. Não é Maria Rosa. Foto: reprodução

 

Maria Rosa de Souza nasceu, viveu, combateu e morreu em áreas que até 1916 eram terra de ninguém — por questões de limites entre Paraná e Santa Catarina. Sem lei, sem médico, sem padre. Os “coronéis” brigavam entre si para definir seus poderes. Nessa definição, os posseiros ficavam com a pior parte: eram expulsos de suas roças. A região contestada abrigava desde caboclos a foragidos da Justiça, como também imigrantes europeus chamados por D. Pedro II, em fins do Império, para dar prosperidade à região. Os caboclos passaram a ser espremidos dos dois lados.

Para ali chegaram também perto de dez mil homens (até presidiários) recrutados de vários estados para a cons­trução da ferrovia União da Vitória — Marcelino Ramos, que cortou o Contestado de ponta a ponta. A Brazil Rail­way recebeu a concessão de 15 quilômetros de cada lado dos trilhos, contratou oitenta cowboys armados, e o processo de expulsão de posseiros, pequenos e até médios proprietários, vingou. Terminada a ferrovia, os turmeiros ferroviários foram simplesmente despedidos, e nem a promessa de retomo às suas cidades foi cumprida (o responsável direto por essa situação foi Percival Farquhar, o mesmo da United Fruit da Guatemala, do filme Queimada). Imigrantes, caboclos, ex-empregados, proprietários deserdados, todos acabam se envolvendo na guerra.

 

Inspirado em Carlos Magno e os doze Pares de França, José Maria criou seus Pares de Caboclos

Um campo inóspito para se viver, mas fértil para acolher curandeiros, milagreiros, profetas e visionários. Surgem três monges: dois João Maria seguidos de um José Maria. Em 1911, desponta a figura de José Maria, um monarquista, o último dos monges. Inspirado nas aventuras de Carlos Magno e os Doze Pares de França, também cria seus doze pares: 24 caboclos fortes armados de espadas de pau, guiados pela fé em Deus e em São Sebastião. E organiza procissões onde a figura das "virgens" ganha relevância: À frente, abrindo o desfile, vinha o monge, arompanhado pelas "virgens", depois as mulheres casadas sem filhos e, encerrando o cortejo, os homens e meninos, levando aqueles as suas armas, descreve Vinhas.

Maria Rosa, Teodora, Conceição, Antoninha e Maria do Carmo são alguns nomes que a história guardou dessas adolescentes que significaram o ideal de uma sociedade de iguais, além das divisões de classes, raças, homem x mulher, nas palavras de Marlene Bertoldi e Ester Ostrowski, que ainda descrevem: No Contestado, a mulher, ainda nesta submissão secular, é encontrada trabalhando duro na roça, nos afazeres da casa, na preocupação da educação dos filhos, na organização da Cidade Santa, superando muitas vezes o homem, na paciência e resistência que lhes são características.

O interessante é que a mulher cabocla, a resignada e obediente, assume o papel de porta-voz dos poderes celestiais, sob os auspícios do monge, que as toma como coadjutoras. Com a morte de José Maria, na batalha do Irani (1912), elas — e aí são citadas Maria Rosa e Teodora — passam a chefiar os chamados redutos e até a liderar combates, conforme relato de Enrique Ruiz Maldonado, citação da revista Ciência Tomista, de abril/setembro 1974.

 

As Mata Haris do planalto catarinense embrenhavam-se no mato e voltavam informadas

Nessa organização social havia as parteiras, as benzedeiras, as lavradoras e, durante os conflitos, as "Mata Haris" do planalto catarinense. Elas embrenhavam-se nos arraiais, entre soldados e fazendeiros, e quando retornavam aos redutos informavam posições militares e de ataques: reconhecido serviço de espionagem.

Essas mulheres, homens e crianças foram personagens de um dos mais trágicos conflitos armados do pais, comparável apenas a Canudos. Um dos grandes levantes em que as tensões sociais foram revestidas pelo fanatismo religioso — o motor de arranque para a luta travada no Paraná e Santa Catarina. Uma grande guerra — não só pela dimensão territorial abrangida, como também pelo envolvimento do Exército (um terço de seu efetivo da época, do qual não há registro preciso) e pelo número de mortos (de oito a oitenta mil).

Numa paisagem de pinheirais e erva-mate, o nome de Maria Rosa passa a ser citado por historiadores, já como líder do reduto de Caraguatá, terras próximas a Curitibanos. Era filha do lavrador Elias de Souza, o Eliasinho da Serra. Não há registro de como ela começa a exercer a liderança, mas há referências de que os comandantes dos fanáticos, quando entram no lugarejo em 1913, um ano após a morte do monge José Maria na batalha do Irani (então no Paraná), a encontram no comando, já com a existência dos Doze Pares de frança.

Com 11 anos de idade em 1912, Teodora, órfã de lavradores, começa a dar forma ao reduto da Cidade Santa de Taquaruçu, para onde leva o povo com a liderança de seu avô, Euzébio Ferreira dos Santos. Morava ela no arraial de Perdizes Grandes, quando diz ao avô ter tido visões do monge, que ambos conheceram em vida. Teodora era uma pequena mameluca de impressionantes olhos azul-esverdeados, grandes e fulgurantes, descreve Vinhas, que a conheceu pessoalmente em 1954, em Lebon Regis, quando da entrevista para seu livro.

 

Teodora
Teodora em foto de família: a "virgem" dos olhos azuis. Foto. Reprodução

 

As forças do governo destruíram Taquaruçu, após dois ataques. Teodora, mais o avô e liderados seguiram ao encontro de Maria Rosa em Caraguatá, de cuja batalha saíram vencedores. Porém, Maria Rosa decidiu sair dali para Pedras Brancas, a vinte quilômetros de distância. Vinhas descreve a seguinte cena: Formou-se um cortejo de umas duas mil famílias e seiscentos bois, arrebanhados nos últimos tempos, tocados à frente. Maria Rosa, no meio de cem cavaleiros armados, de winchester, encabeçava a incomum procissão.

Lebon Regis, cidade de 13 a 14 mil habitantes, segunda maior produtora de maçã de Santa Catarina, se arrasta no tempo, na maior pobreza. Pequena, porém cercada de favelas. Tem 31 anos de emancipação política, mas é regida como feudo particular de políticos. O “pastor” Davi Miranda tem ali milhares de adeptos. As casas não-faveladas são pequenas, de madeira, as ruas são poeirentas. Grande parte de seus moradores viveu na época do Contestado. As mulheres trazem longas e grisalhas tranças nos cabelos. Os homens, embora altos e louros, envergam-se sobre pés rachados da lida na lavoura. Mãos rugosas. Moram, por ironia, na cidade batizada em homenagem ao homem — então secretário-geral do governo de Santa Catarina — que ordenou às forças que bombardeassem Taquarussú, pela segunda vez, causando uma chacina de velhos, crianças e mulheres.

Ali mora também João Ventura, 91 anos, tocador de tambor nas procissões de Maria Rosa e filho de Chico Ventura (Francisco Paes de Farias, um dos comandantes dos redutos). Aos 12 anos de idade ele estava na guerra. Hoje, vive da aposentadoria do Funrural, ao lado da segunda esposa — total de filhos criados: 22. O Contestado começou na minha casa; recorda-se então do reduto da Cidade Santa de Taquaruçu, para onde o monge José Maria retornaria com seu Exército Encantado para comandar seu povo. Ele diz não se lembrar de uma caminhada tão longa como a citada por Vinhas. Mas recorda-se de Maria Rosa sob o comando de uma marcha de Caraguatá a São Sebastião, uns cinco ou seis quilômetros. E eu, lá atrás, tocando tambor. O povo de dantes era mais sincero, tinha crença. Não é igual ao de agora. O respeito de dantes era outro e o povo aceitava ser comandado por meni­nota. Agora não existe mais respeito. É um povo largdo. O prefeito não segue direito, a policia não segue direito, o delegado não corrige nada.

 

As “virgens” davam as ordens. Homem que mexesse com elas morria na hora. Tinha disciplina

João Ventura viveu toda a guerra, até os 16 anos. O pai atuava como administrador dos redutos. Meu pai era uma espécie de chefe, tinha uns 40 homens que acompanhavam ele. Meu pai era muito negociador, o maior que já conheci. Quando começou a cidade de Blumenau ele puxava tropa de gado para fornecer aos alemães. A gente morava em Cutiribanos quando avisaram que o monge ia aparecer em Taquaruçu e nós fomos. Meu pai deu ao reduto 400 bois. Diz ele que Teodora, o avô e o tio Manoel Euzébio dominavam o povo. Teodora, ele se recorda bem, foi morar em Lebon Regis. Mas de Maria Rosa, nada sabe sobre seu destino após a guerra. As “virgens” davam as ordens. No começo era bonito: muita procissão, a cavalaria branca, o maior respeito com as mulheres; homem que mexesse com elas era morto na hora. Havia muita disciplina, as crianças rezavam à noite, com bandeirinhas e velas nas mãos.

João Ventura foi conhecer Maria Rosa em Caraguatá. Era muito bonitinha. Ela e a Teodora dormiam na sala da casa. E minha sentença era tocar tambor em ritmo de marcha quando os homens iam pra batalha. Eu não podia entrar nas batalhas, só em último caso. Pra isso eu levava um revólver e uma espada. Não matei ninguém, mesmo depois que virei Par de França, porque fiquei com dor de dente, então eu não fui. Meu irmão, o único que tive, o Guilherme, matou muito soldado.

Os comandos dos redutos vão morrendo em escaramuças. Maria Rosa já não exerce grande influência. Surge como chefe Adeodato Manoel Ramos. Se o Adeodato não fosse burro, o Negócio do fanatismo ia crescer muito, diz Ventura, argumentando: O Adeodato não soube levar as coisas, começou a matar os próprios companheiros. Foi ele, e não as forças, que acabou com o fanatismo. Nas vizinhanças de João Ventura mora a prima de Teodora, com quem conviveu já fora do reduto, depois da guerra. Dona Mariquinha Pancada, o apelido daquela mulher de vestes até os pés, tranças grisalhas a cair nos ombros. Ela não revela as confidências que Teodora podia ter-lhe feito na juventude. Fica a defender a prima: Maria Rosa é o demônio. Teodora é santa. O Adeodato era um bandi­do. Tanto fala mal que sua neta adolescente, Neide Santos, chega à janela da mísera casa e reclama: — Ó, vó, não fale assim dos mortos. E do jeito que as coisas estão logo vem aí um novo Adeodato.

A cerca de mil quilômetros de Curitiba, bem distante da área um dia contestada, na cidade gaúcha de Cruz Alta, mora Davina Domingues dos Santos, 66 anos. É a filha mais velha dos oito filhos dos dois casamentos de Teodora. Alguns moram em Curitiba, um em São Paulo e Davina, que passou a vida toda com a mãe em Lebon Regis, há oito anos mora em Cruz Alta. No entanto, ela revela que só soube da participação da mãe na Guerra do Contestado aos 16 anos: Quando eu me casei; minha mãe contou tudo. Ela achava que a gente era muito criança pra saber. E minha mãe tinha muita vergonha daquilo tudo.

 

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As gerações de Teodora: a filha Davina e a bisneta Teodora com a mãe. Foto: reprodução

 

Teodora viveu a guerra dos 11 aos 14 anos. Foi morar com o tio Antonio Ferreira dos Santos, pai de Mariquinha Pancada. Foi forçada a se casar com um viúvo que já tinha dez filhos. Ciumento da beleza de Teodora, que realmente tinha os olhos incrivelmente azuis, o marido a trancava em casa. O casal morava em Faxinal, onde meu pai vendeu as nossas terras de Caraguatá a troco de toucinho, antes da mudança para Lebon Regis. Teodora ficou viúva quando Davina tinha 10 anos. Casou-se novamente. Minha mãe dizia que não teve gostos na vida. Sofreu muito. Passou fome nos redutos, trabalhou na roça. No final da vida, em Lebon Regis, morava numa casinha de apenas duas peças. Ela ganhava roupa usada de gente rica, e vendia mais barato. Todo mundo gostava dela na cidade, recorda-se, contando que Teodora era rezadeira, curava muita gente e unia casais com suas orações. Mas nem no reduto ela tinha visões. Os chefes comandantes que davam as ordens e diziam que as ordens vinham das visões do monge que as "virgens" tinham, revela, confirmando o depoimento de Teodora feito em 1954 ao pesquisador Vinhas de Queiroz. Minha mãe tinha raiva do Adeodato, até queria que as autoridades matassem ele. Ela era cativa do Adeodato. Passavam fome, comiam até came crua. Nos redutos, não dormiam nem comiam sossegados. Iam de lugar para lugar, sempre chegando gente. Os que não queriam ir para a guerra eram mortos.

 

Elas administravam como rainhas. Para dar o sinal de combate, gritavam: Viva o monge José Mª

Dona Davina conta que Maria Rosa e Teodora moravam na mesma casa, mas sua mãe não sabia do destino de Maria Rosa depois da guerra. Elas administravam como rainhas, cada uma tinha um cavalo bem cilhado, carregavam bandeiras para dar o sinal do combate e gritavam: ‘Viva o monge José Maria!’ Teodora jamais foi ferida em combate. Conta a filha que ela tinha cicatriz na perna, mas foi acidente: machucou-se com um punhal ao descer do cavalo.

Teodora morreu nos braços de Davina há 11 anos, em Curitiba, onde estava em tratamento médico. Contava 78 anos de idade. E foi sepultada em Lebon Regis. Ela passou mal à noite e de manhã fomos ao hospital. Mas ela arrastava o chinelo, não conseguia andar direito até o ponto de ônibus. Chamei um táxi. Sentei ao lado dela. Eram 10 horas da manhã. No caminho para o hospital, ela só olhou bem para mim, apertou minha mão... e eu falei ao motorista: O senhor pára o táxi que a mãe já passou.

 

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Sepultura de Rosa, equívoco sobre Maria Rosa desfeito: a data de nascimento não confere com a História. Foto: reprodução

 

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Trabalham na pesquisa do Contestado Milton Ivan Neller (texto), Eliane Santo, Iram Carbonieri e Valéria Prockman (pesquisa), Carlos de Aguiar Macacheira, Haratom Maravalhas e Luiz F. Singhen (documentação fotográfica)

 

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Adélia Maria Lopes é jornalista, editora do “Almanaque” do jornal O Estado do Paraná.