ESPECIAL NICOLAU | O beijo de Edvard Munch 30/11/2023 - 15:40

O Beijo expressionista

por Redação Jornal Cândido

 

Publicado originalmente na última edição do Jornal Nicolau, no ano de 1996, número 6, "O beijo de Edvard Munch", de Fernando Bini, é um estudo sobre as manifestações da paixão, sexualidade e gênero na pintura de Munch. Na época, o texto comemorava os 100 anos do quadro "O Beijo (1897).

Fernando Bini, pesquisador, crítico de arte e professor universitário, se aventura pelas influências estéticas que fizeram de Edvard Munch “um dos principais antecipadores do Expressionismo”. O pintor nasceu em 12 de dezembro de 1863 no vilarejo de Ådalsbruk, na Noruega. Formou-se pintor na Escola de Artes e Ofícios de Oslo, mas foi em Paris, sob a influência de Van Gogh e Gauguin, que seu traço passa a caminhar em direção às formas expressionistas pelas quais o artista norueguês é hoje reconhecido. Munch passou por frequentes episódios de luto na infância e conviveu com Stéphane Mallarmé, Henrik Johan Ibsen, Édouard Manet, Henri de Toulouse-Lautrec e Pierre Bonnard. Morre em 1944, aos 80 anos, em Oslo, capital da Noruega.

 

Obs: A versão em litogravura da obra utilizada na matéria original não foi encontrada para ser reutilizada. Por não haver detalhes técnicos que impediam a publicação da obra original colorida, foi utilizada es‐ ta versão para ilustrar a matéria. Ainda podem ser vistos outros estu‐ dos do artista da mesma obra ao fim do texto. Para poder conhecer mais da obra do pintor, acesse o site do seu Museu: munchmuseet.no∕en∕

 

O Beijo de Edvard Munch

Matéria publicada originalmente no Nicolau, suplemento bimestral editado pela Secretaria da Cultura (SEEC), em 1996, ano XI, número 60

 

Por Fernando Bini

 

No final do século XIX ou no início do século XX, a arte universal tinha um encontro marcado com Paris. Não foi diferente para o norueguês Edvard Munch marcado desde sua infância por acontecimentos trágicos na família, como a morte de sua mãe e de sua irmã, sendo ele mesmo de saúde muito frágil.

Munch nasceu em 1863 e, quando resolveu tornar-se pintor com a idade de 17 anos, aquela marca negativa fundamentará a sua concepção de existência e será a razão que o levará a participar do meio artístico e literário e do círculo boêmio de Christiania, grupos esses inspirados, por sua vez, pelo naturalismo francês.

Mas são suas viagens a Paris e Berlim que abrirão seus horizontes e que o levarão a tornar-se o mais dotado dos pintores noruegueses de seu tempo. Entre 1889 e 1892 reside em Paris, num apartamento em Saint Cloud, com uma bolsa de estudos de seu governo, tendo a possibilidade de visitar exposições e retirando dali os exemplos para a sua iniciação no impressionismo; em Saint Cloud, Munch abandona o naturalismo e procura ir até o fundo da experiência impressionista. Em 1892 é convidado para expor na Secessão de Berlim e seus 55 quadros geram tanta polêmica que a exposição é fechada em uma semana. As discussões de Berlim, que giram em torno do direito de Munch de expor suas obras e não no caráter estético das mesmas, o incitam a desenvolver seu próprio estilo. É deste mesmo ano a primeira versão de O Beijo.

Em Berlim, conhece o dramaturgo e novelista August Strindberg e o poeta polonês Stanislas Przybyszewski que faziam parte de outro círculo boêmio, o "Schwarze Ferkel" (o "Porquinho Preto"). Nas sucessivas viagens a Paris, conhece Mallarmé e lbsen, é influenciado por Manet, Toulouse Lautrec, Bonnard e Vuillard, e também por Caillebote, Seurat e Puvis de Chavannes. Em 1897 participa pela primeira vez do Salão dos Independentes em Paris.

Sua arte tem múltiplas fontes, mas ele consegue realizar uma síntese absolutamente original de idéias, estilos e técnicas, encaminhando-se para o simbolismo em que sua própria psiquê é o mais forte de seus temas.

Em 1896, Strindberg fala em seus livros de vermes, micróbios, vampiros e mulheres; Przybyszewiski, na mesma época, entendia que a sexualidade era a primeira substância da vida e nos seus escritos quase mistificava o satanismo, descrevendo a atração sexual como “um inominável e horrível poder, que lança duas almas, uma contra a outra, buscando uni-las pela angústia e pelo sofrimento”¹.

As catástrofes de Munch estão ligadas à morte da mãe (aos 5 anos), da irmã (aos 13) e à morte de seu pai em 1889, que ele assim descreve no seu diário em Saint Cloud: "(....) Quando acendi repentinamente o candeeiro, vi minha enorme sombra cobrir a metade da parede chegando até o teto. E no espelho sobre o aquecedor vi minha própria fantasmagórica face. Eu levo minha vida em companhia da morte — minha mãe, minha irmã, meu avô e meu pai — ele acima todos. Todas as minhas memórias, nos mínimos detalhes, vêm à minha mente (...)"². Os demais boêmios que frequentavam eram predominantemente machistas, obsessivo sexuais e muitas vezes misóginos, ligados ao conflito em torno da mulher por volta de 1890; misturem-se a isso algumas frustrações amorosas e chegaremos ao momento em que Munch executava a segunda versão do seu O Beijo, em 1897, em óleo sobre tela e que está no Museuu Munch de Oslo e antecede o outro, não menos famoso, O Beijo (de 1907) de Gustav Klimt.

Em Munch, os personagens são espectros que têm medo e assustam, o amor é cheio de tormento e acidez, a mulher provoca o desejo e o ciúme, ela enfeitiça, esgota e "suga o teu íntimo (como disse Baudelaire) e te joga no vazio no qual não resta outra coisa que o lamento e a vaidade das lembranças". No quadro Vampiro, de 1893, incluído no Friso da Vida³, a mulher é retratada como um vampiro que suga o sangue do companheiro: "a fêmea devora, suga a energia do homem, assume a forma dele, vive no corpo dele e, contudo, em todo tempo, representa o papel de fêmea"4, no comentário que Frederick Karl faz da interpretação da mulher na obra de Otto Weininger; mas Strindberg também descreve uma mulher vampírica em Siri von Essen: "Criaturas destruidoras que se alimentam das almas dos homens como as hienas se alimentam da carniça" da mesma forma que o ciúme fora considerado o "verme da maçã" da nova liberdade sexual, a ascensão da "nova mulher" é vista como causa de "degeneração".

Na pintura de Munch, a mulher reflete uma atitude ambivalente, uma mistura de devoção e medo, e ele faz dela, simultaneamente, madona e vampiro.

Przybyszewski assim descreve O Beijo de 1897: “Nós vemos duas figuras humanas, cada uma das duas faces se fundindo na outra. Mas elas não formam uma única figura: tudo o que vemos é o ponto no qual elas se fundem, um ponto que parece uma grande orelha, tornada surda pelo êxtase provocado pelo sangue. Assemelha-se a uma massa de carne moída”.

O quadro pode ser visto como a imitação da postura de uma união sublime, mas o tratamento plástico revela qualquer coisa de doentio, de vago ou vazio, próprio da precariedade do ser e da inquietação metafisica da época, e que sugere "uma agressividade quase canibalesca"5, em que o sujeito alienado está sempre aprisionado num universo insuportável, no qual a desorientação é absoluta.

Por questões, técnicas, a imagem reproduzida como ilustração deste texto, é a versão em litogravura de 1894, apesar de existir também no Museu Munch de Oslo uma versão em xilogravura de 1897; a permanência de Munch em Paris entre 1896 e 1898 foi muito importante para sua obra gráfica: além de encomendas de gravuras para ilustrações, ele faz contatos com o impressor Auguste Clot, o mesmo que auxiliou Toulouse Lautrec e Bonnard, descobrindo assim que a gravura possibilitava uma maior variação para construção de suas séries ou versões. Nelas encontramos os elementos estéticos mais caros a Munch, como a vontade de simplificação e os fortes efeitos de massa e de contrastes.

Este primeiro período expressionista de Munch é o que melhor contribuiu para a história da arte; termina em 1908 quando ele foi acometido de uma grave crise nervosa. É o período em que ele concebe as partes que deveriam formar o Friso da Vida e onde está inscrita toda a sua visão de mundo, cheio de 'imagens-chaves" como o contraste entre inocência, sensualidade angustiada e morte, geralmente encarnadas em figuras de mulheres: O Vampiro, A Morte e a Donzela e O Grito de 1893, O Ciúme de 1895 e a Dança da Vida de 1899-1900, todos com suas versões em xilogravura ou litogravura, representando o jogo entre o amor e a morte, a paixão e o ciúme, a ansiedade e a solidão, a esperança do amor e a desilusão, que são algumas das qualidades que o colocam, junto com Vincent Van Gogh, como um dos principais antecipadores do Expressionismo e talvez, também, da "máquina celibatária" de Marcel Duchamp.

 

Fernando Bini • Pós-graduado em Artes Plásticas pela Universidade de Paris. Diretor do Museu da Imagem e do Som (1996).

 

 

1 PRSYBYSZEWSKI Stonislas, citodo por SCHJELDAHL, Peter, "Munch: The Missing Master", in Art in America, may-june 1979. pp.81 - 95.

2 Prefócio à Edvard Munch Exhibition,. Oslo: Blonquist, 1929.

3 O Friso da Vida, ambiciosa série de pinturas que, no conjunto, como acrescenta o próprio Munch, apresenta um retrato da vida, o qual ele nunca considerava completo.

4 KARL, Frederick. O moderno e o modernismo - A soberania do artista 1885-1925. Rio de Janeiro: Imago, 1988. p.138.

5 CARDINAL, Roger. O expressionismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. 1984. p.38.