ESPECIAL | Livros de livros 31/05/2023 - 10:31

Autores e pesquisadores de obras literárias trabalham com a escrita sob diferentes perspectivas e abordagens

 

Hiago Rizzi

 

No início dos anos 1980, no sótão de um casarão na rua Sete de Setembro, em Curitiba, Cristovão Tezza lia pela primeira vez um texto do filósofo russo Mikhail Bakhtin. Ou melhor dizendo, tateava uma leitura — com a ajuda de uma amiga, traduziu do francês um capítulo de O Discurso no Romance (1975), que faria de Bakhtin uma referência essencial para sua atividade como escritor. 

Esse breve relato consta nas primeiras páginas de O Espírito da Prosa: Uma Autobiografia Literária (2012), o livro sobre livros feito por Tezza. De manuais mais técnicos de criação, passando por entrevistas e conferências até relatos íntimos e biográficos de autores, as obras que se voltam a outras obras ou ao ato da escrita estão no imaginário de leitores e escritores de diferentes gerações, permeando várias categorias e subgêneros. 

“Esses livros flertam com as formas biográficas e autobiográficas. A minha hipótese é a de que leitores saciam a curiosidade pela vida do escritor que admiram e pelo seu fazer literário”, afirma Marcella Lopes Guimarães. Com formação em História e Letras, a pesquisadora da Universidade Federal do Paraná trabalha, entre outros temas, com literatura medieval, onde registros biográficos já estavam presentes.

Para Marcella, livros como o de Tezza ou Um Teto Todo Seu (1929), de Virginia Woolf, prolongam o prazer da leitura e também são importantes por oferecerem a experiência do fracasso e do equívoco — da existência em sua complexidade e motivações. “Quando me volto a esses homens e mulheres, estou interessada no que os motivava. E o que os motivava nos integra como experiência histórica”, evidencia.

Do outro lado do balcão, escritores e aspirantes podem buscar as crônicas de autores consagrados porque — como disse o Nobel de Literatura Orhan Pamuk — alguns livros falam o que já sabemos, mas não sabemos que sabemos. A identificação durante o processo criativo é a aposta da escritora e professora de criação literária Leila de Souza Teixeira — entre os cerca de dez livros usados em cada uma de suas oficinas, figuram títulos como Cartas a um Jovem Escritor (1997), de Mario Vargas Llosa, e Palavra por Palavra (1994), de Anne Lamott.

tezza pupo
Cristovão Tezza. Foto: Guilherme Pupo

 

“Quando alguém me procura com bloqueio criativo, recomendo uma leitura teórica. Todos usam a técnica na escrita”, indica a gaúcha, autora de dois romances. O interesse pelos livros sobre livros tem paralelo com as oficinas que existem no Brasil desde meados da década de 1980. Nos anos 2010, os encontros tiveram um boom, intensificado pela pandemia do coronavírus — como mostrou a reportagem especial do Cândido n° 111, em outubro de 2020. 

 

Meias-palavras inteiras

O carioca Leonardo Villa-Forte também se beneficiou das oficinas de criação literária. Seu primeiro romance, O Princípio de Ver Histórias em Todo Lugar (2015), retrata justamente um grupo de escritores e as histórias desenvolvidas por eles em uma oficina de escrita. Ele também publicou um livro de contos, mas ganhou notoriedade pelas narrativas curtas compartilhadas no blog Mix-Lit — O DJ da Literatura que, como o nome sugere, são feitas a partir de colagens de outros textos preexistentes.  

Não há uma intenção predisposta nesses escritos, a única autoimposição é não incluir nada novo ao material coletado. “Queria chegar a textos que não declarassem exatamente a maneira pela qual eles foram feitos. Aos poucos fui notando que um tema recorrente era a relação entre pais e filhos — não sei o porquê, mas talvez tenha a ver com estar produzindo textos que são filhos de outros textos”, analisa Leonardo.

Em 2019, como fruto da pesquisa de Mestrado, ele publicou o livro Escrever Sem Escrever: Literatura e Apropriação no Século XXI, que recebeu Menção Honrosa do prêmio cubano Casa de Las Américas 2020, na categoria Literatura Brasileira de Não Ficção. A obra investiga como a literatura contemporânea tem refletido as noções de montagem, mixagem, deslocamento e expansão, presentes com mais desenvoltura em outras linguagens, como a música e as artes visuais.

Leonardo Villa-Forte
Leonardo Villa-Forte. Foto: Joana Ruth

 

Embora no Brasil já houvesse uma “tradição de ruptura” e experimentação — como na antropofagia modernista, por exemplo —, num primeiro momento, Leonardo se amparou em referenciais norte-americanos, precursores da internet e de estudos sobre o hipertexto. A escolha pelo título pondera o conceito de escrita não-criativa, muito presente como diferenciação da escrita criativa nos Estados Unidos.

“Não precisamos ser tão radicais no Brasil porque não temos uma cultura cuja ideia de pureza seja marcante. As obras brasileiras costumam trabalhar com a coletividade”, diz, mencionando Veronica Stigger e Angélica Freitas como exemplos de autores que usam textos da internet ou da rua em suas obras. Agora Leonardo vem retrabalhando as narrativas breves do MixLit, com a intenção de reuni-las em uma publicação.

 

Diários revoltos

Maria Gabriela Llansol escreveu todos os dias por mais de 30 anos — de 25 de novembro de 1974 até a sua morte, em 3 de março de 2008, aos 76 anos. “Alguém que se propôs a essa repetição e criou sua escrita nesse gesto”, é a definição de Maria Carolina Fenati, editora da Chão da Feira. A partir de 1962, Llansol publicou 26 livros. Sua produção sistêmica gerou mais de 30 mil páginas manuscritas que vêm sendo editadas na série Livro de Horas — já são mais oito títulos na estante.

Carolina teve contato com a obra da escritora durante a graduação em História, na Universidade Federal de Minas Gerais. Interessada em outras formas de vestígios, estudou uma das trilogias de Llansol — Geografia de Rebeldes (1977-1984) — no Mestrado, e teve a oportunidade de conhecer a autora no fim da vida. Depois foi chamada por João Barreto e Maria Etelvina Santos, herdeiros do espólio da autora, para auxiliar na organização do acervo em Sintra, a 30 km de Lisboa.   

A primeira parte do trabalho foi arquivístico: enumerar, escanear, transcrever e gerar arquivos. Num segundo momento, a pesquisadora escolheu um recorte do inventário para investigar. “É curioso que a gente não se sente invadindo os diários dela. Não são diários pessoais, mas de uma escrevente. Ela estava sempre experimentando a escrita e não representando uma vida na escrita. Ela vivia a escrita”, aponta.  

O registro contínuo de Llansol também acompanha as mudanças biográficas — exilada com o companheiro durante a ditadura em Portugal, viveu na Bélgica e teve contato com autores da Europa Central. Os diários da portuguesa reforçam que os livros sobre livros, mesmo quando intimistas, podem ser inventivos. “Como um sentido atribuído depois dos acontecimentos, esses textos ganham um aspecto ficcional”, garante Marcella, lembrando o Itinerário de Pasárgada (1954), de Manuel Bandeira. 

 

Em voz alta

Em 2011, em um bar de Lisboa, Carolina participou de um evento de lançamento do escritor Gonçalo M. Tavares. Depois da apresentação da equipe responsável pelo projeto, todos acompanharam uma leitura integral do livro. Num momento em que ela dedicava os dias a atividades solitárias pesquisando o espólio de Llansol, o encontro despertou o desejo de viver mais momentos coletivos em torno das palavras. 

Nos dias seguintes, escreveu um texto sobre o livro lido em grupo e publicou como o primeiro Caderno de Leitura da Chão da Feira Edições. O segundo volume é um texto de Ricardo Piglia sobre o futuro da literatura, enquanto o terceiro é assinado pela orientadora de Carolina, Silvina Rodrigo Lopes. Amigos e leitores compraram a ideia e a coleção tomou corpo — desde então já foram editados 163 números, sobre os mais diversos assuntos, disponíveis para download gratuito no site da editora sediada em Belo Horizonte.

“Há tanta tagarelice, falação, e é preciso pensar sobre o que dizer, como dizer e por que dizer. A edição é inseparável dessa pergunta — como pensar a escrita, a partir da escrita, e de que forma essa partilha também é política, ao passo que todo mundo que trabalha com a escrita trabalha com a vontade de tornar público algo que nasce na esfera privada”, pontua Carolina. 

Para Leonardo, a elaboração sobre a escrita sempre está em diálogo com a produção, num pensar-criando. “Dentro da academia existe a ideia de distanciamento do objeto, mas acredito que estar perto da criação te dá um ponto de vista diferente”, reflete. Ter se permitido a apropriação de materiais alheios o levou a textos que não usam essa abordagem, mas foram impulsionados por ela. 

“As pessoas escrevem para serem lidas, esse sujeito que não quer ficar perto do leitor é falso — nós queremos dialogar. O prazer não acaba quando a obra acaba”, finaliza Marcella.