ESPECIAL| Fuga ultraviolenta 25/02/2022 - 14:48

Críticos de cinema e o tradutor de Laranja Mecânica comentam a atualidade do livro de Anthony Burgess e do filme de Stanley Kubric

João Lucas Dusi

 

Faz pouco mais de 50 anos que o romance Laranja Mecânica (1962), de Anthony Burgess, chegou aos cinemas. A adaptação, dirigida por Stanley Kubrick, foi uma devotchka (garota) recebida com certa desconfiança, mas caminha para se tornar uma babushka (velha) muito da benquista — emprestando termos do dialeto nadsat, criado pelo escritor inglês a partir do russo e reproduzido, com maior parcimônia, no filme do cineasta norte-americano.

A história, protagonizada por Malcolm McDowell no longa-metragem lançado em dezembro de 1971, acompanha a trajetória ultraviolenta de Alex e seus três druguis (Pete, Georgie e Tosko). Essa gangue de delinquentes juvenis, situada em um “futuro brutalmente pop” (segundo Martin Scorsese), gosta de sair à noite praticar atos que consideram horrorshow, como tomar leite batizado com droga no Lactobar Korova, roubar, estuprar, brigar quase até a morte com rivais (usando facas, correntes) e invadir casas.

Não é difícil de imaginar que essa história não acaba bem para o protagonista. Preso aos 15 anos, depois de uma traição arquitetada por seus druguis, Alex se torna um número na cadeia (6655321) e se submete voluntariamente à Técnica Ludovico, ministrada pelo dr. Brodsky, que pretende “reformar” a mente do criminoso por meio da exibição de vídeos violentos enquanto a cobaia sente mal-estar devido às substâncias que lhe foram injetadas.

Trata-se de uma forma de condicionar artificialmente o comportamento da pessoa, trocando em miúdos, o que não é bem-visto pelo capelão da prisão, responsável por espalhar a Palavra do Senhor entre os detentos: “A questão é se uma técnica dessas pode realmente tornar um homem bom”, ele diz a Alex. “A bondade vem de dentro, 6655321. Bondade é algo que se escolhe. Quando um homem não pode escolher, ele deixa de ser homem.”

Não é um filme, muito menos um livro (ainda mais pesado, com detalhes bizarros), para quem tem estômago fraco. “O ponto alto de Laranja Mecânica é o conceito de ultraviolência e como as pessoas são deixadas nesse estado pela apatia de todo o resto que as cerca. É uma fuga”, diz o crítico de cinema Roberto Sadovski, que conversou com o Cândido sobre o longa. “Visualmente, gosto de tudo. Da simetria do Kubrick em algumas tomadas. Do design. Do elenco. Do modo que ele filma. Tudo.”

A manauara Susy Freitas, que faz parte da equipe do site Cine Set desde 2013, vai na mesma linha de Sadovski: as questões que o filme suscita depois que sobem os créditos formam o ponto alto do trabalho de Kubrick — por mais que haja, também, primazia na montagem e impacto causado pelo uso da música clássica.

Laranja Mecânica aponta para a necessidade de sermos livres para fazermos nossas próprias escolhas”, reflete Susy. “Essa é uma questão moral, cara a Burgess, vista de forma bem pessimista por Kubrick. E que permanece atual porque se aplica a inúmeros públicos e contextos, seja o das gangues adolescentes que inspiraram o livro, seja no Brasil lambe-botas em que vivemos hoje.”

 

Linguagem única

Anthony Burgess não deixou seu lado linguista de lado ao escrever Laranja Mecânica, lançado em 1962. Muito pelo contrário, o inglês elaborou uma vasta pesquisa e fez colagens inusitadas para acertar a dicção ímpar de Alex e seus druguis. A edição nacional traz até um glossário, que pode ou não ser consultado durante a leitura. Tudo depende do gosto do freguês: se ele deseja mais ou menos estranhamento.

A preocupação do autor com a linguagem era tanta que ele temia que Kubrick, em sua versão da obra para o cinema, focasse muito no sexo e na violência, deixando as sutilezas da narrativa de lado — a exemplo do que o cineasta fez com Lolita, segundo Burgess, adaptação em que Stanley “não encontrou equivalência cinematográfica para a extravagância literária de Nabokov”.

Não foi o caso. Burgess considerou o Laranja de Kubrick uma obra-prima, mas ficou chateado por ter de falar sobre o filme, na TV ou nos jornais, como se não fosse seu próprio trabalho. Na definição do escritor inglês, no entanto, o que parece contrariar sua própria chateação, Stanley não fez uma “mera interpretação” da narrativa, mas “refez radicalmente” seu romance — de acordo com texto de Anthony publicado na Listener, em 1972.

Para o público brasileiro entender melhor essa “mistureba” linguística boa, da qual o leitor teve uma amostra no início deste texto, nada melhor do que dar a palavra a Fabio Fernandes, responsável pela tradução mais recente da obra no Brasil — editada pela Aleph há alguns anos, com diferentes capas e versões comemorativas.

“Anthony Burgess brinca com a língua inglesa, trazendo a rhyming slang cockney, o jargão shakespeariano e o nadsat, um dialeto inventado por ele a partir do russo”, explica Fernandes. Para ele, em um caso como o de Laranja Mecânica, “o prazer de traduzir é ainda maior, porque é como se o grão da linguagem germinasse numa árvore com um número impressionante de ramos”.

Não à toa, é o livro que ele levou mais tempo para trazer para o português, proporcionalmente ao tamanho (nove meses para cerca de 140 páginas). “Ainda hoje não creio que tenha desvendado todas as nuances que o texto oferece”, continua o tradutor, para quem “os pontos altos do romance são os linguísticos”.

Essa empreitada de Fernandes rendeu uma boa história — ligada, de forma inusitada, ao rock and roll. “O que mais mexe comigo é o momento em que o protagonista, Alex, trancado no quarto ouvindo Beethoven, se refere ao som do compositor como heaven metal — uma expressão inventada por Burgess e que, na primeira versão para o português brasileiro, Nelson Dantas traduziu mais do que adequadamente como ‘metal celestial’”, conta.

“Mas, no mesmo ano da tradução (1974), o jornalista Lester Bangs, da Rolling Stone, cunhou o termo heavy metal para definir o som do Led Zeppelin. Na minha vez de traduzir o livro, optei por deixar no original. Acho um dos trechos mais belos e sonoros da obra.”

 

Legado literário

Para além das questões linguísticas, pensando Laranja Mecânica como um todo, Fernandes explica que o romance distópico de Burgess “faz parte de um conjunto muito particular de obras de ficção científica que marcaram o século 20”.

A narrativa forma uma espécie de “quarteto fantástico” ao lado de 1984, de Orwell, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury — trabalhos que, devido à ascensão de governos que flertam com o totalitarismo ao redor do mundo, voltaram a ser bastante comentadas.

O tradutor atribui o sucesso desse quarteto, que “logrou transcender o gueto a que pertence o gênero da ficção científica e alcançar um público maior”, ao fato de que os autores não escreviam somente nesse gênero.

Burgess, por exemplo, “era um mestre da sátira corrosiva”. “E Laranja talvez seja”, prossegue Fernandes, “sua maior e mais destruidora sátira às convenções sociais (e da ficção científica)”.

 

Defeitos

De volta ao filme de Kubrick, somente elogiado até aqui, há uma pergunta que não quer calar: o diretor pecou em algum momento? “Não consigo olhar para Laranja Mecânica e pensar em nada que pudesse ser melhorado”, comenta Sadovski. “Há poucos filmes, na história do cinema, que digo ‘esse eu não mexeria em nada’. O Laranja é um filme em que eu não tocaria em uma vírgula sequer.”

Susy Freitas, por sua vez, entrega um comentário direto: “É difícil imaginar o que poderia ser melhorado em um filme de Kubrick em seu ápice”. Apesar disso, ela faz um interessante exercício imaginativo, bastante válido para um momento do cinema em que protagonistas femininas “duronas” parecem estar sendo mais valorizadas. “Alimento uma curiosidade há anos: como seria um filme ultraviolento dele com uma protagonista mulher?”, questiona.

“Não me refiro a uma adaptação descolada em que Alex viraria Alexa ou algo assim, mas a uma obra com tamanha carga de violência”, prossegue Susy. “Pergunto isso porque sempre me intrigou sua Alice (Nicole Kidman) em De Olhos Bem Fechados: uma mulher muito dinâmica, atípica em sua filmografia.”

“Acho que se Kubrick tivesse tido a chance (ou o interesse) de trabalhar a violência do ponto de vista de uma mulher, seja ela como vítima ou algoz, seria algo muito interessante.”

Para encerrar essas apreciações e exercícios imaginativos, o tradutor Fabio Fernandes, gentil ao responder à clássica — e meio tacanha — pergunta sobre preferir o livro ou o filme, foi contundente: “O livro, sempre. Gosto muito do filme, mas o audiovisual costuma datar mais rápido. Kubrick era um gênio. Mas, quando quero imergir nesse universo, pego o livro de Burgess e releio”.

 

João Lucas Dusi é redator do jornal de literatura Rascunho e do portal Bienal 360º. Publicou o livro de contos O Grito da Borboleta (2019). Vive em Curitiba (PR).