ESPECIAL | Distorção e intensidade 28/04/2023 - 13:22

Afiliado a outros gêneros da ficção negra especulativa, o afrossurrealismo está cada vez mais visível na literatura e na cultura atuais

 

Luiz Felipe Cunha

 

Não há nada mais surreal do que a experiência negra neste mundo. Esta compreensão existe desde o primeiro dia em que os europeus pisaram no continente africano e decidiram exportar os nativos em barcas como se fossem mercadorias. Coincidência ou não, ali surgiu a palavra negro. E tempos depois, como aponta o filósofo francês Frantz Fanon, em seu Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), o negro criou para si a negritude como modo de reivindicar uma identidade própria, um fincar de bandeira no campo da existência.

No entanto, quem imaginaria que seria tão penoso apenas existir? Até os dias de hoje, a interação do negro com o mundo — feito por brancos e para brancos — parece provocar um atrito tão grande no tecido da realidade que faz surgir no solo microfissuras por onde vazam resíduos do reino do absurdo. Cria uma atmosfera irreal tomada pela estranheza. E há anos essa estranheza serve de matéria prima para artistas e escritores negros que se expressam através do afrossurrealismo, conceito que parece ter atingindo o seu auge nos últimos anos, sendo adotado em livros e produtos midiáticos de sucesso.

 

Não é exatamente um movimento, nem um gênero, tampouco uma escola. De certo modo, tentar definir é também traçar barreiras. E, antes de tudo, o afrossurrealismo soa como um aceno à liberdade desde a sua concepção primária. Afinal, era isso que norteava os intelectuais negros da década de 1930, oriundos de países africanos e caribenhos colonizados pela França, que se estabeleceram em Paris para estudar as ciências humanas. Era a capital das vanguardas artísticas. Poetas e escritores como Aimé Césaire, Léopold Sédar Senghor, Suzanne Césaire, entre outros, se mobilizavam em publicações e assembleias para promover a ideia de uma identidade própria que valorizasse suas raízes africanas. Não à toa, naqueles anos loucos do entre guerras, esses alunos foram atraídos pelos ideais do surrealismo europeu; conceitos como o pensamento livre, a possibilidade de criar mundos paralelos e cenas irreais, o desprendimento de regras…Era um caminho possível para a liberdade.

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Aimé Césaire e Léopold Sédar Senghor. Foto: Reprodução

 

Mas o surrealismo europeu parecia difuso daquele adotado por Césaire e companhia. Era como se compartilhassem de um mesmo conjunto de ideais, mas com vivências díspares. “O surrealismo europeu é empírico. O surrealismo africano é mítico e metafórico”, resumiu certa vez Léopold. Exemplo disso, são os próprios poemas de Césaire:
 

 

minha negritude não é uma pedra, sua surdez lançada contra o

clamor do dia

minha negritude não é uma mancha de água morta sobre o olho

morto da terra

minha negritude não é uma torre nem uma catedral

 

ela mergulha na carne rubra do solo

ela mergulha na carne ardente do céu

ela perfura o abatimento opaco com sua paciência

 

(Trad. Lilian Pestre de Almeida)

 

“Mancha de água morta”, “carne rubra do solo”, “carne ardente do céu” são imagens que poderiam facilmente estar em uma pintura de Salvador Dalí ou Kerry James Marshall. “O surrealismo me forneceu o que eu estava procurando confusamente. Aceitei-o com alegria porque nele encontrei mais uma confirmação do que uma revelação”, disse Césaire, em 1967. “Foi uma arma que explodiu a língua francesa. Isso abalou absolutamente tudo”.

Interessante notar que essa ideia de se posicionar frente ao mundo com uma arte própria que reflete uma identidade própria acontece em momentos chave do afrossurrealismo. Primeiro, quando era preciso conquistar espaço no meio intelectual e reivindicar uma certa humanidade. Depois, nos anos 1970, em meio à efervescência pela luta dos direitos civis e fortificação do movimento Black Power. E agora, nos últimos anos, enquanto presenciamos o auge do afrossurrealismo em criatividade e refinamento, figurando no mainstream e embasando filmes como Corra!, a série cult Atlanta e clipes de músicos como Kendrick Lamar e Beyoncé, também acompanhamos cenas cada vez mais bizarras nos noticiários. Nos Estados Unidos, George Floyd foi sufocado até a morte à luz do dia, em uma calçada de uma rua movimentada, mesmo com celulares filmando a ação. No Brasil, há poucas semanas, uma mulher chicoteou um homem com uma coleira de cachorro no meio da calçada, durante uma discussão. São nesses momentos que a ficção tende a extrapolar a realidade, quase numa tentativa de acompanhar o ritmo inebriante do mundo.

Para Zaika Santos, pesquisadora e curadora à frente do Black Speculative Arts Movement no Brasil, afirmar que conceitos como afrossurrealismo e o afrofuturismo estão em voga, na verdade, é deixar evidente um certo tipo de apagamento histórico fruto do colonialismo e escravidão forçada. “Esses conceitos fazem parte de processo denso que se reconecta com a história do passado pré-colonial e também se reafirma no sincretismo e re-existência africana e afrodescendente no período colonial”, explica Zaika.

O Black Speculative Arts Movement surgiu em 2015 após uma exposição em Nova York que trazia obras que dialogavam com vários conceitos de linguagem especulativas, como o afrofuturismo e o afropessimismo, entre outros. Zaika explica que movimentos especulativos negros são metodologias afrocentradas “em que a prática estética criativa é uma forma de integrar visões de mundo afrodiaspóricos e africanos com ciência e tecnologia, de forma a interpretar a realidade”.

 

Um ser invisível

 

Embora o movimento dos intelectuais negros de Paris tenha perdido força durante a Segunda Guerra Mundial, suas ideias se espalharam pelo mundo (principalmente nos Estados Unidos) e influenciaram gerações de escritores, pintores, dramaturgos, fotógrafos etc. Um exemplo bem-sucedido de obra afrossurrealista na literatura é o Homem Invisível (1952), do norte-americano Ralph Ellison, que em 2020 ganhou nova edição pela editora José Olympio. A narrativa acompanha um jovem negro que nasceu e cresceu no ambiente hostil do sul dos Estados Unidos e se muda para Nova York a fim de estudar, se estabelecer e melhorar sua condição. Mas a realidade se mostra distorcida, e ele se torna um ser invisível dentro de uma grande metrópole.

Logo no início sabemos que o protagonista está em uma espécie de porão, que pode ser entendido como uma metáfora para a mente do personagem. Ali ele relembra a sua trajetória estudantil, da época em que estava ansioso para se tornar um educador e orador de sucesso. Relembra o dia em que fez um discurso potente na formatura do colégio, o que lhe deu a chance de concorrer a uma bolsa de estudos em uma universidade de seu interesse. Mas antes, para ter a sua sonhada bolsa, teve de apresentar o seu discurso novamente para figurões brancos em um hotel de luxo. Chegando ao local, a realidade se distorce ainda mais, e o narrador se vê forçado a participar de uma luta de boxe com os olhos vendados.

Ellison utiliza-se do afrossurrealismo em um aceno à afirmação da negritude proposta por Aimé. Logo na introdução, o autor fala sobre o desejo de querer retratar o psicológico do homem negro, em oposição ao modismo de escritores brancos da época de atribuir um plano social a personagens não-brancos. Ou seja, aquele era um livro escrito por um negro para negros. Durante a narrativa, observamos o personagem se deparando com situações degradantes, mas encarando tudo com certa inocência e passividade, até a mudança de chave, já do meio para o fim do livro, quando o personagem resolve ser menos submisso e mais reativo.

Sua trajetória se mostra como uma saga de autoconhecimento, em que tenta enfrentar toda aura de estranheza ao seu redor e vivenciar sua negritude. Em entrevista ao New York Times, em 1952, Ellison disse: “Várias resenhas apontaram partes do livro que consideravam surrealistas. Eu concordo com isso. Porém, não escolhi o surrealismo, a distorção, a intensidade como técnica experimental, mas porque a realidade é surreal”. Vale salientar que embora carregue as marcas visíveis, a palavra afrossurrealismo, assim como uma primeira definição, só surgiria dali a pouco mais de uma década.

 

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Amiri Baraka. Foto: Reprodução

O termo foi cunhado pelo poeta norte-americano Amiri Baraka, em 1974, ao se referir ao trabalho literário de Henry Dumas, um autor iniciante considerado gênio de sua época. Para Baraka, a força do jovem escritor estava “na habilidade de criar um mundo completamente diferente, mas organicamente conectado ao nosso”, conforme escreveu na introdução do livro Ark ff Bones and Other Stories.

“As histórias são fábulas; a presença mitológica permeia a obra. São contos morais, mágicos, com emoções e imagens oníricas ressonantes [...] Mas também são histórias da vida real, de agora ou sempre, construídas na estranheza e poesia, na qual a contemporaneidade de temas essenciais é clara”, afirma. Era a primeira vez que aparecia o nome afrossurrealismo e, de certa forma, o poeta também parecia descrever uma parte considerável da produção de artistas e escritores negros das efervescentes décadas de 1960 e 70.

 

Vale lembrar que nesse período os Estados Unidos enfrentava uma guerra fria contra a União Soviética e perdia soldados na Guerra do Vietnã. Por outro lado, o Jackson 5 tocava nas rádios, a luta pelos direitos civis ganhava cada vez mais adesão e as ideias revolucionárias de Martin Luther King e Malcolm X se proliferavam pelo mundo. Aos 40 e poucos anos, Baraka já estava mais próximo do ativismo pelos direitos civis dos negros e acreditava que arte e política deviam andar de mãos dadas, postura que lhe conferiu o apelido de Malcom X da literatura. O jovem prodígio Henry Dumas, por outro lado, não pôde vivenciar seu legado como um autor afrossurrealista. O destino quis que seu mundo surreal invadisse o real: Dumas foi morto a tiros, aos 33 anos, em uma abordagem policial. A suspeita é que o jovem prodígio tenha sido confundido e morto por engano.

Mas ambos foram fundamentais para oferecer um norte para futuros artistas, e ajudaram a ressignificar o afrossurrealismo, que com o passar dos anos foi se modificando e abrindo brechas para outros conceitos. Em 2009, o editor de artes D. Scot Miller formalizou um manifesto e, em 2015, o afro-surrealismo passou a ser enquadrado como parte do movimento das artes negras especulativas.

 

Lógica brasileira
 

O pesquisador brasileiro Yuri Costa diz que há pelo menos cinco anos o afrossurrealismo furou a bolha e está em voga. E ele atribui isso a dois motivos: midiatização do termo e estudos recentes na área. “Embora o termo tenha surgido na década de 70, ele só foi recuperado em 2009, através de um manifesto. Livros teóricos sobre o assunto começaram a ser lançados há pelo menos 15 anos. É tudo muito recente.

Além de pesquisador, Costa também é cineasta, e descobriu o afrossurrealismo consumindo produções que proliferam no cinema e na TV de 2018 para cá. Interessou-se tanto pelo assunto que o levou para o campo acadêmico. Em linhas gerais, ele se preocupa em como usar o gênero dentro de uma lógica brasileira. Um resultado possível pode ser observado em seu primeiro filme, Egum (2020), que acompanha o retorno de um jornalista à sua casa após um tempo afastado por conta da morte brutal de seu irmão mais novo.

 

Assim como a casa e o bairro, a família ainda está em pedaços. Para piorar, sua mãe está estranhamente debilitada e seu pai, constantemente embriagado. De repente, em uma noite, um casal branco aparece à porta e diz ter negócios a tratar com o pai bêbado do jornalista, o que leva o protagonista a achar que há algo sobrenatural acontecendo por ali. Em outras partes do filme, é possível observar referências ao candomblé, tanto na própria narrativa quanto nas músicas, que fomentam o clima de transe constante. “O afrosurrealismo veio de encontro a um desejo meu que era falar sobre raça, violência e colonialidade de uma forma experimental. Me deu aval para que eu me desprendesse e deixasse as coisas ficassem um pouco mais… doidas." 

“O Brasil é o próprio afrossurrealismo!”, enfatiza o escritor Bruno Ribeiro. “Tanto na nossa cultura, no axé, nas religiões de matriz africana, nos abusos grotescos que vivenciamos no dia a dia, acredito que este movimento é uma chave importante para entender como chegamos até aqui.” Bruno é autor de Porco de Raça (2021), livro que se embebeda nas características afrossurrealistas a começar pela trama: durante um plano de fuga, um professor é sequestrado e de repente se vê em um ringue de luta clandestina, vestindo uma máscara de porco, sendo obrigado a lutar por sua vida com outros homens enjaulados. Tudo isso acompanhado por uma plateia sádica, que lança dinheiro ao ringue para incentivar a barbárie. Uma espécie de programa do Luciano Huck combinado com Jogos Mortais.

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Yuri Costa. Foto: Divulgação

 

O absurdo atinge níveis altíssimos na obra. Tanto que uma das inspirações de Ribeiro é a literatura latina contemporânea. Escritoras como Ariana Harwicz e Samanta Schweblin, que estão no seu leque de leituras, reelaboram o tradicional realismo mágico, utilizando do absurdo para denunciar mazelas da ditadura militar.

A crítica social parece ficar em segundo plano, ainda mais se tratando de um contexto em que realidade e sonho se confundem. Mas Bruno Ribeiro é consciente de sua escrita e da utilização do afrossurrealismo, seguindo a artimanha de escritores negros do passado, que pareciam criar uma espécie de caixa-preta dentro de suas tramas. “São segredos enterrados nas narrativas que os brancos não entenderiam, mas os negros, sim”, explica o autor.

Segundo ele, o livro nasceu do entendimento de que a realidade do negro é um absurdo tão grande que muitas situações vistas como reais são, na verdade, surreais. “Como um afrossurrealista, sei que o meu trabalho está ligado ao excesso, à subversão, ao híbrido, a estar sempre um passo adiante da loucura que é viver”, diz .“O interessante de se trabalhar nessa chave é que você não precisa estar rendido às leis do realismo. Tudo vale, vale tudo”, conclui.