ESPECIAL | De Alexandria a Pérgamo 20/12/2023 - 12:10

As transformações históricas da biblioteca nos trilhos da formação de leitores(as)

por Francisco Camolezi

 

"O UNIVERSO (que outros chamam a biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas. De qualquer hexágono, veem-se os andares inferiores e superiores: interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte prateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os lados menos dois; sua altura, que é a dos andares, excede apenas a de um bibliotecário normal". A passagem de Jorge Luis Borges, escritor, poeta e ex-diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, tornou-se uma frequente referência para a definição das bibliotecas contemporâneas. Materiais ou virtuais, finitas ou infinitas, Borges entende que bibliotecas são sempre românticas e, como tudo que é parte da vida, desde Alexandria — ou Babel, como no conto de Borges — até as prateleiras de um apartamento apertado no centro de Curitiba, bibliotecas passam por transformações históricas dia após dia.

Nos últimos anos, as bibliotecas públicas assistiram mudanças fundamentais no seu modelo de existência. No contexto da "era digital", surgiram novas dinâmicas voltadas para a formação de leitores que forçaram essas instituições a adaptar seus acervos e estrutura a demandas que, vinte anos atrás, eram pouco visíveis.

Como se não bastassem os desafios provocados por essa nova realidade, a pandemia ainda reflete impactos significativos no acesso universal aos livros promovido pelas bibliotecas. De acordo com a quinta edi­ção da pesquisa "Retratos da Leitura no Brasil", publi­cada em 2019, em relação à sua penúltima edição, de 2015, o número de leitores no Brasil diminuiu. Em agosto de 2023, o mercado editorial brasileiro registrou uma leve baixa no número de vendas, 2,96%. Por outro lado, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro deste ano, algumas editoras registraram um aumento de mais de 100% na venda de livros. A Bienal do Livro de São Paulo, realizada no ano passado, contou com um aumento de 10% no número de visitantes. Há indícios de que esses resultados positivos sejam motivados pelos esforços de movimentos de incentivo à leitura nas redes so­ciais, como o Book Tok, comunidade do TikTok voltada à leitura.

O grande impedimento para maiores avanços no campo da leitura é o valor do livro, que, de acordo com o Painel do Varejo do Livro, realizado pelo Nielsen Book e pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livro (SNEL) e publicada em agosto, aumentou em 7,75% — chegando a 9,52% no caso dos best-sellers. Sobre essa questão, Leilah Bufrem, especialista em Ciências da Infor­mação e professora nos Programas de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Pernambuco e de Educação da Universidade Federal do Paraná, explica que esses dados não indicam uma defasagem nos serviços bibliotecários, mas uma mudança nos hábitos de leitura.

Leilah acredita que o aumento nos preços não é o suficiente para justificar a diminuição na venda, e muito menos presumir uma diminuição no número de leitores. A variável, diz a professora e pesquisadora, é outra. Os instrumentos da leitura se renovam. Surgem novas tecnologias e, com isso, uma diversidade maior no número de formatos. Para Leilah, é possível que a pandemia tenha direcionado o leitor para os suportes digitais e informais, por exemplo. O território é nebuloso e, por enquanto, não há lugar para certezas. Na retranca, confira a íntegra da entrevista de Leilah Bufrem ao Cândido.

Tendo em vista esse cenário eclético, incerto, como as bibliotecas podem cumprir com seu papel de incentivo à leitura? Neste sentido, a Biblioteca Pública do Paraná, aos 166 anos, reinventa-se. Na batalha contra a diminuição de leitura, realizar empréstimos gratuitos não é o suficiente. O incentivo, agora, precisa ultrapassar o livro. A BPP acompanhou as transições de cada época e atualmente é considerada um dos principais centros culturais do Paraná, além de uma das maiores bibliotecas públicas do Brasil. Por meio do trabalho de profissionais especializados(as) em seus setores, propõe projetos, atualiza informações, diversifica e amplia o público, lança novas “leituras”. Realizou ao longo de 2023 uma série de ações, firmando-se como um centro cultural, um espaço de criação, de livre acesso, fortalecendo o vínculo da população com o livro, com seu poder transformador na Educação e na Cultura, pilares fundamentais de um país.

 

Alice Ywatsugu, chefe da Seção de Filosofia e Religião da BPP
Alice Ywatsugu, chefe da Seção de Filosofia e Religião da BPP. Foto: Kraw Penas

 

Circulação de Cultura

Alice Ywatsugu, chefe da Seção de Filosofia e Religião na Biblioteca Pública do Paraná, trabalha na Biblioteca desde 1985. Na BPP, Alice assistiu a profissão transicionar do analógico para o digital. A bibliotecária conta que foi a partir de 1994 que a informática passou a integrar o trabalho na Biblioteca. Na época, todos os livros foram recadastrados e ganharam códigos de barras. Antes, a carteirinha de empréstimo era física e o processo de pesquisa em acervo para encontrar uma citação específica, por exemplo, era manual. Levavam dias. Hoje, basta um ctrl + f.

De acordo com Alice, com o advento da internet e as possibilidades de acesso à informação provocadas pela mesma, o número de atendimentos realizados pela Seção de Filosofia e Religião da BPP diminuiu. Antes dos anos 2000, período que coincide com a expansão da internet e demais meios digitais, os usuários chegavam a formar filas para empréstimo e pesquisa, no entanto, "mudou-se o estilo de estudo" e, com isso, me­nos pessoas passaram a frequentar os corredores da BPP. Alice acredita que a internet é um ótimo suporte de pesquisa, mas, o livro físico, por conta da confiabilidade, ainda é um privilégio. "O livro físico vai desaparecer? Tão cedo, eu acho que não. Eu observo que hou­ve muitas mudanças, mas os leitores ainda gostam do canto da Biblioteca", relata.

Mesmo assim, o cenário é desafiador. Alice percebe que, para além de acervos e empréstimos, as bibliotecas, e especialmente as bibliotecas públicas, preci­sam se firmar como espaços de circulação de cultura por meio de eventos como feiras, cursos, exposições, sessões de mediação de leitura, contação de histórias e a veiculação de materiais editoriais e gráficos periódicos — como este jornal que vos fala.

A perspectiva é compartilhada por colegas de trabalho. Para Lidiamara Alves da Rosa Gross, chefe da Divisão de Coleções Especiais, o público da Biblioteca mudou. Antes mais reclusos, hoje, a Biblioteca se tornou um lugar convidativo para crianças e adolescentes, um ambiente menos formal e silencioso. Por dia, circulam pela BPP cerca de duas mil pessoas. Esta mudança é vista por Lidiamara com bons olhos, possibilitada pela ampliação do acervo e a criação de salas aconchegantes para os leitores. "Eu acho que a biblioteca tem que se tornar uma referência para a cultura, né? Então, se o leitor não gosta de barulho, ou não quer que fale alto, sempre vai ter uma outra sala".

 

Lidiamara Alves da Rosa Gross, chefe da Divisão de Coleções Especiais
Lidiamara Alves da Rosa Gross, chefe da Divisão de Coleções Especiais. Foto: Anderson Tozato

 

Quando Lidiamara assumiu a Divisão de Coleções Especiais, em 2011, havia uma enorme placa de silêncio na Seção Infantil. "Parecia um hospital. Mandei arrancar", conta. “A criança tem que falar, ela tem que se sentir confortável!". Na época, a ação causou burburinho. Uma mãe desafiou Lidiamara: "Você vai tirar a placa? Não vai aguentar a barulheira!". Mais tarde, até o lanche foi liberado na sala da Seção Infantil. Sob críticas de que as crianças estragariam os livros com a sujeira, Lidiamara prontamente responde: "Olha, esse espaço é para a criança. Se ela quer brincar, ela brinca. Se ela quer lanchar, ela lancha". Para ela, o desafio da Infantil é justamente conscientizar a criança para que ela aprenda a cuidar do livro.

 

Espaços de criação

Leilah Bufrem também acredita na capacidade da Biblioteca de cumprir com o incentivo à leitura por meio da diversificação de seus espaços e acervo. A professora defende que, para atrair novos leitores, as bibliotecas precisam se tornar também espaços de criação em literatura, música, artes cênicas e plásticas; de discussão, por meio de grupos de leitura coletiva, rodas de conversa ou palestras; e de integração, com novas tecnologias e práticas que tornem a leitura atrativa, como a realidade virtual, ludificação e a promoção da acessibilidade por meio do audiolivro e do braille, por exemplo.

Bruno José Leonardi, Chefe da Divisão de Documentação Paranaense, trabalha na Biblioteca Pública do Paraná desde 2011 e acredita que, hoje, a Biblioteca atinge um maior e mais variado público. Bruno atribui esse salto à programação cultural da BPP e à ampliação do acervo. "Eram poucos eventos, mais lançamentos de livros. Atualmente, você vê música na Biblioteca, teatro, filmes, exposições temáticas, campeonatos de xadrez para crianças, para cegos, Uma noite na Biblioteca. Abriu-se espaço para toda a população".

 

Bruno José Leonardi, Chefe da Divisão de Documentação Paranaense
Bruno José Leonardi, Chefe da Divisão de Documentação Paranaense. Foto: Anderson Tozato

 

De acordo com Bruno, no decorrer dos anos 2010, de cara nova, reformada, aconchegante e com acesso ao wi-fi gratuito, as pessoas voltaram a frequentar a Biblioteca. O período foi responsável por renovar os serviços disponibilizados pela BPP. Para Bruno, a prova disso são os sábados, dias da semana mais frequentados na Biblioteca. Com rodas de samba, sessões de RPG e lançamentos de livros.

A lista dos responsáveis pela reinvenção da Biblioteca é longa. Somada à programação cultural, Bruno cita o Pergamum, software de acervo digital online utilizado pela BPP, que permite consultar a disponibilidade de títulos de forma remota, além de ter um espaço para que o leitor sugira títulos a serem adquiridos pela instituição. "Essa interação direta com o público, como a sugestão de títulos, fez com que pudéssemos diversificar o acervo".

A ampliação culminou na primeira coleção especial da Biblioteca Pública do Paraná em Curitiba, a Estante Afro Maria Águeda, composta por mais de 500 títulos de livros de autoria negra doados pelo Centro Cultural Humaitá, via Kandiero, em parceria com a BPP. Bruno acredita que, por conta dos baixos índices de leitura no Brasil, a Biblioteca tende a soar como um ambiente elitizado e pouco convidativo. Nesse sentido, pensando nela como um espaço popular e democrátrico, o papel de um acervo atento às problemáticas, por exemplo, de classe, raça, gênero e sexualidade, é simbólico. "Eu acho que a Estante Afro abre portas, dizendo: 'olha, vocês têm lugar aqui'. Aí entra o povo preto, o povo periférico, que passa a perceber sua representação na BPP. A estante é só o início. Com as pessoas se sentindo à vontade, sabendo que a Biblioteca não é um lugar para apenas uma classe, elas vão passar a participar dos nossos eventos de incentivo à leitura. Para se tornarem leitores, é um pulo", diz Bruno.

De Alexandria a Pérgamo — ou, ao Pergamum —, pouca coisa mudou na concepção da Biblioteca. Ainda é algo entre um conjunto de hexágonos ventilados e um catatau de livros de tantas páginas, muitas linhas e incontáveis letras. O fim, na prática, é o mesmo: a leitura. Os meios, no entanto, conversam com o tempo, que, por sua vez, responde gritando. Essa dialética imutável entre cultura, tecnologias e sujeito é a responsável por transformar as estruturas da Biblioteca, seja ela a instituição ou o espaço romântico-virtual-infinito que descreve Borges. Por fim, a certeza que transcende a história é uma só: desde o cerco egípcio às tropas de Júlio César, até suas ameaças contemporâneas, a Biblioteca é e sempre será lugar de guerrilha, disposição tática, baderna, amarelinha, pipoca e livro.