ESPECIAL | Construir com tanto esforço o que se havia derrubado 23/10/2024 - 14:57
Por Francisco Camolezi
O extrativismo cafeeiro e o desgaste ambiental nas páginas da literatura brasileira
A lenda conta o seguinte: foi há mais ou menos 1000 anos, na Etiópia, quando Kaldi, um pastor de cabras, percebeu seu rebanho mais agitado que o normal. Os animais corriam alucinados em volta de uma árvore enquanto beliscavam pequenas frutas vermelhas que brotavam dos galhos. Kaldi ficou curioso, experimentou o grão e surpreendeu-se com seus poderes energéticos. Um monge que passava pela região achou tudo aquilo muito estranho e, desconfiado, decidiu confiscar a fruta. Era coisa do diabo. No monastério, durante o ritual de exorcismo, torraram café pela primeira vez. Os monges tomaram a bebida e, sem sono, viraram a noite rezando. Agora, era coisa do divino.
Segundo estudos, o café seguiu para a Arábia Saudita comercializado por peregrinos em caravanas religiosas e comerciais, onde ganhou o status de planta milagrosa e chegou a ser escondido de estrangeiros. O grão se tornou extremamente popular na cultura do Oriente Médio, sendo o nome, café, um derivado da palavra qahwa, “vinho” em árabe. No século XIV, foi introduzido na Europa, onde ficou conhecido como “Vinho da Arábia”. No ano de 1570, o café chega a Veneza com o consumo proibido pela Igreja Católica por conta da sua coloração escura. Só foi liberado dois séculos depois, quando o Papa Clemente VII experimentou a bebida. No final do século XVII, graças ao Jardim Botânico de Amsterdã, na Holanda, o café foi cultivado pela primeira vez fora da Arábia Saudita. Então, os países europeus passaram a incentivar o plantio nas suas colônias do sul global, com clima e solo apropriados.
Por aqui, na América do Sul, deu as caras pela primeira vez na ilha de Martinica, na época Colônia e hoje Departamento Ultramarino Francês. Na primeira metade do século XVIII, o café chegou à Região Norte do Brasil, no entanto, não encontrou terreno fértil. Foi na Região Sudeste que o café se viu em berço natural, chegando ao estado do Rio de Janeiro no ano de 1781. Na virada do século, seguindo o modelo dos grandes latifúndios sustentados por trabalho escravo, o café ganhou São Paulo, na região do Vale do Paraíba, e Minas Gerais, na Zona da Mata.
O café viu o Brasil em suas mais diversas facetas. Fosse Colônia, Império ou República; o Brasil do trabalho escravo e o Brasil supostamente liberal; Brasil rural ou em processo de urbanização, o café sempre esteve lá. Na época, o cultivo fez ascender uma nova burguesia, com traços distintos em relação à elite do açúcar. A elite cafeeira tinha intenções ilustradas, era mais ligada às práticas culturais e artísticas europeias e, hoje, é tida como uma das grandes responsáveis pela modernização do Brasil no século XIX. Em 1911, foi a aristocracia cafeeira a grande mecenas por trás da construção do Theatro Municipal de São Paulo. Apesar do fim do ciclo, que remonta a 1930, o Brasil é hoje o maior produtor de café do mundo, responsável por cerca de 38% da safra global. Ainda, o café é a segunda bebida mais consumida no país, atrás da água.
Nas safras e nas páginas
Fosse pelo uso de pesticidas ou o desmatamento de florestas para o aumento da safra, a expansão do ciclo do café — do Rio para o Vale do Paraíba, posteriormente para o oeste de São Paulo e, mais tarde, para a Região Norte do Paraná — trouxe, em consequência, o desgaste socioambiental, processo retratado por Monteiro Lobato em Cidades mortas (1919). Ambientado no Vale do Paraíba, o livro faz o exercício de imaginar cidades inteiras devastadas pelo fim da fertilidade da terra, vítimas do extrativismo cafeeiro. Lobato narra a história de cidades que “antes prósperas, se esvaziaram; só restaram ruínas e habitantes empobrecidos, sem perspectivas”, conta Milena Ribeiro Martins, professora de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e organizadora do livro Monteiro Lobato na escola (2022). Com exceção dos casarões de coronéis antigos, símbolos de uma burguesia ultrapassada, não restam, ali, resquícios de civilização.
Para a professora, o diagnóstico de Monteiro Lobato em relação ao extrativismo cafeeiro na região do Vale do Paraíba está ligado à acumulação do lucro em detrimento de um projeto de cuidado do solo que pudesse garantir a continuidade do cultivo. De acordo com Milena, “o resultado da exploração da terra sem a devida adubação produzira um cenário feito de aridez, de pobreza e de memória de pujança”. Nas palavras do escritor, "toda a seiva foi bebida e, sob forma de grão [de café], ensacada e mandada para fora. Mas do ouro que veio em troca nem uma onça permaneceu ali, empregada em restaurar o torrão. Transfiltrou-se para o Oeste, na avidez de novos assaltos à virgindade da terra nova".
Frequentemente usado pela crítica para agenciar a obra de Lobato, o “parasitismo”, por mais que primeiramente relacionada ao “amarelão” e ao adoecimento verminoso da população caipira — representada pelo icônico personagem Jeca Tatu —, parece plenamente adequado também para a descrição do autor da expansão do extrativismo cafeeiro em São Paulo.
Milena também lembra que Cidades mortas não é o único texto do escritor “em que se percebe a separação entre o capital e a produção”. A pesquisadora defende que o tipo humano preferido dos textos ficcionais de Lobato é o do pequeno produtor, o funcionário público ou o trabalhador braçal que não enriquece e não usufrui da riqueza produzida. A exemplo, Milena cita os contos “O drama da geada”, “Júri na roça”, “Um homem de consciência”, “O rapto”, textos com personagens vítimas de um país cada vez mais estratificado, “os pobres-diabos que depois vicejariam na prosa dos anos 1930 em diante”, diz.
Outra vertente da crítica ao decadentismo provocado pelo ciclo do café levantada por Milena Martins é que, em Monteiro Lobato, quando o solo é retratado em sua fertilidade, os efeitos nocivos da cultura agrícola são muito parecidos com aquilo que 110 anos depois o sociólogo Jessé Souza identificou como “a formação da ralé brasileira”, uma classe que, desassistida pelo Estado, investe em discursos reacionários e antissistema para dar vazão ao descontentamento. É o caso do conto “Café! Café!”, um dos primeiros do escritor, publicado pela primeira vez em 1900 e anterior ao Convênio de Taubaté de 1906, acordo interestadual que regulava o rendimento cafeeiro. No conto, explica Milena, “o cafeicultor vai perdendo suas terras, vendendo pedaços de sua fazenda para pagar dívidas, porque o preço do café não parava de cair”. Mesmo diante da crise, o personagem insiste na plantação de café e, sem retorno financeiro, acaba se tornando um monarquista ferrenho, “descrente do governo republicano”, que, parafraseando Lobato, “não protege a lavoura, que não cria bancos regionais, que não obriga o estrangeiro a pagar o precioso grão a peso de ouro!”, conta a professora.
O diagnóstico de Monteiro Lobato em relação à expansão da cafeicultura no estado de São Paulo é bastante parecido com o de Júlio Cesar Voltolini, doutor em Biologia Vegetal pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e professor de Biologia da Degradação na Universidade de Taubaté (Unitau). De acordo com Júlio, o ciclo de café foi muito importante para a economia do Vale do Paraíba, no entanto, durante décadas, os produtores investiram pesado na cafeicultura, e não na recuperação do solo. Por se tratar de um vale, ou seja, com suas laterais cobertas por montanhas, o desmatamento da floresta nessas geografias em declive acaba acentuando o esgotamento dos nutrientes do solo pela lixiviação, quando a água da chuva carrega morro abaixo o nitrogênio, fósforo, potássio e outros elementos fundamentais para o desenvolvimento das plantas, dando início ao processo de desertificação da vegetação. Isso, somado à construção da ferrovia Santos-Jundiaí, que transportava a produção agrícola do oeste até o Porto de Santos, foi o que motivou o declínio do ciclo do café no Vale do Paraíba. Outras cidades passam a concentrar a produção do café no estado de São Paulo, como Ribeirão Preto, Bauru, Campinas e Franca. Para o professor, “o Vale do Paraíba ficou para trás, e a retirada das florestas para o plantio do café nos custou um impacto ambiental enorme, fosse por conta da extinção de várias espécies de plantas e animais, como pela degradação enorme do solo em boa parte do vale”. Ainda, com a retirada da vegetação, o Vale perdeu suas bacias hidrográficas, fazendo com que pequenos riachos simplesmente desaparecessem. “Assim, o Vale do Paraíba inicia um ciclo de pobreza, com impacto econômico e não apenas ambiental”, explica o professor.
Outras florestas
O cenário não é uma particularidade do Vale do Paraíba. Na floresta da Tijuca, com o desmatamento da cobertura vegetal nas nascentes dos rios Carioca e Paineiras, o extrativismo cafeeiro foi responsável por uma crise de água potável na cidade do Rio de Janeiro. O diferencial, aqui, é a resposta do governo imperial. Na época, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro — que já existia desde 1808 como um centro de pesquisa sobre a flora brasileira — desempenhou papel importante na mitigação dos danos causados pela cafeicultura e extração de lenha para produção de carvão na região serrana. Em 1861, Dom Pedro II assina o documento “Instruções Provisórias”, que determinava ao major Manuel Gomes Archer e ao Barão d’Escragnolle a administração do programa de reflorestamento da floresta da Tijuca. É a primeira vez que o Brasil assiste a um projeto do tipo.
Para Cláudia Beatriz Heynemann, doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora do livro Floresta da Tijuca: natureza e civilização (1994), apesar do pioneirismo do reflorestamento da Tijuca, o projeto não é “estranho ao seu tempo”. Por parte do Império, vinculado à Academia de Ciências de Lisboa e às tendências naturalistas de José Bonifácio, referência na preservação dos bosques de Portugal, havia no processo de construção da nação uma inspiração nos valores iluministas, historicamente ligados à preservação da natureza por razões pragmáticas, racionais e científicas, e essa proposta ecológica era reforçada pela literatura.
Do ponto de vista do texto, é um traço distintivo do projeto estético brasileiro a visão romântica da natureza, que exaltava a grandeza da nação pela sua fauna e flora. "Nesse sentido, embora o reflorestamento da Tijuca fosse inédito, essas medidas não eram estranhas aos letrados, políticos e toda a classe senhorial da época", conta Cláudia. Então, as primeiras explicações para as questões de abastecimento de água que assolaram a cidade do Rio de Janeiro no século XIX estavam fundamentadas no processo de desmatamento da floresta da Tijuca pelo cultivo do café e extração de lenha. Há, também, uma crítica ao modelo de produção colonial vigente nas plantações de café, baseado na mão de obra de pessoas escravizadas de origem africana, “algo que se encontra nos discursos das autoridades e nos relatórios que eram feitos sobre a situação da floresta da Tijuca”, diz.
Para Cláudia, na literatura carioca, a floresta da Tijuca não apenas ambienta contos e romances de escritores como José de Alencar, Machado de Assis e Clarice Lispector. Sua preservação é o resultado de um movimento de ideias na escrita romântica brasileira. O texto literário coloca em destaque a floresta não só como cenário, mas também como espaço complementar da cidade. Fosse na literatura ou na fotografia, “a floresta da Tijuca foi um exemplo para a cidade em termos de arborização, construção de jardins, e até de uma sociabilidade urbana, seguindo o modelo de civilização de cidades como a Paris do século XIX”, explica. É o caso do romance Sonhos d’Ouro (1872), de José de Alencar, onde o escritor cria uma voz paralela ao narrador da trama para falar sobre a floresta: “Viva a imagem da loucura humana! Refazer à custa de anos, trabalho e dispêndio de grande cabedal, o que destruiu em alguns dias pela cobiça de um lucro insignificante!”.
De volta ao Vale
Algumas décadas depois, com a construção de pequenas fábricas, o retrato econômico do Vale do Paraíba muda de uma economia baseada no café para uma economia de indústria. No entanto, o desgaste ambiental ficou para a história e, hoje, diversas regiões do Vale estão descobertas de florestas, com pastos onde sequer há a possibilidade de criação de gado.
Agora, Júlio César Voltolini trabalha em projetos de pesquisa sobre os remanescentes da floresta atlântica e a preservação da fauna e espécies vegetais ameaçadas. O professor está envolvido em projetos de visitas às florestas remanescentes com adolescentes e crianças de escolas estaduais e municipais. A expectativa é que, no futuro, esses jovens cientistas concluam seus cursos de graduação, tornem-se profissionais e retornem às suas cidades de origem para ajudar a comunidade a preservar o meio ambiente.
Francisco Camolezi nasceu em Jaciara, interior do Mato Grosso. É estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Paraná (UFPR), repórter no Cândido e atualmente é trainee na segunda turma de Jornalismo de Saúde e Ciência no Estadão.