ESPECIAL | Cinco décadas de batidas 31/10/2023 - 13:38

Historicamente marginalizado, o hip hop completa 50 anos em ascensão, com uma identidade própria no Brasil e uma relação estreita com a literatura

 

Maria Coelho e Luiz Felipe Cunha

 

O ano era 1973. As periferias do Bronx, em Nova York, abrigavam o que seria uma revolução. Em uma festa, o DJ jamaicano Kool Herc tocou trechos instrumentais e batidas fortes de funk e soul, criando os chamados breaks, que foram acompanhados por letras feitas por um mestre de cerimônia, o MC. Nascia ali o hip hop, movimento cultural que além do rap, abraçou o breakdance — dança comandada por b-boys e b-girls que praticam o break por meio da expressão corporal —, e o grafite, performance visual em espaços urbanos, formas de manifestação populares entre a juventude periférica que vivia naquela década, principalmente negros.

“O rap surge a partir das festas e dos DJ´s nos anos 1970. Imigrantes jamaicanos promoviam festas nos seus blocos e ali tinham dois toca discos e essa maneira de tocar. Tinha uma pessoa responsável por agitar a festa, um animador mesmo, que era o MC. Perceberam que existia um momento de êxtase na pista e que as pessoas chamavam de breakbeat, era o momento que a galera mais dançava, a festa fervia, com os b-boys e as b-girls, que esperavam esse momento pra abrir a roda e mandar seu passo”, explica o rapper curitibano Bface, sobre o modo como se davam essas manifestações nas festas que marcaram o início do movimento.

Os primeiros nomes de destaque no cenário do hip hop foram Grandmaster Flash, Afrika Bambaataa and the Soulsonic Force, Sugarhill Gang, Kurtis Blow e Run DMC. O movimento cultural se espalhou pelo mundo, influenciando a música, a dança, a arte e a sociedade, como uma forma de expressão artística, cultural e política dos jovens periféricos. Atualmente, o hip hop é o segundo gênero mais popular no Spotify, com mais de 400 milhões de usuários em todo o mundo, segundo dados da plataforma divulgados neste ano. “O hip hop é uma atitude, uma filosofia. Public Enemy fala que o hip hop é a televisão dos negros, é aqui que a gente vê o que está acontecendo, é um fórum nacional da quebrada”, define o artista e produtor cultural Salve Samuca.

 

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Rapper Bface. Foto: Vitor Augusto

 

Para Bface, o movimento é uma expressão artística que se deu como uma manifestação orgânica de periferias do mundo inteiro. “É o momento em que as pessoas da periferia se juntam para se expressar artisticamente, aí acontece o hip hop, a maneira com que essas comunidades desenvolveram a música, a forma de escrita, de desenhar, dançar, de vestir”, descreve. “O hip hop tem esses elementos, o DJ, o MC, os b-boys e as b-girls, e o grafite. Isso serviu de espaço para essas pessoas marginalizadas se expressarem artisticamente, dentro de um contexto que existia um respeito muito grande pela criatividade e inventividade”, ressalta.

Na opinião de Salve Samuca, o gênero atua como uma espécie de protetor das gerações, sobretudo quando se trata da questão racial, replicando ideias e traços de muito antes do surgimento do movimento. “Eu vejo o hip hop como esse movimento geracional. A cada geração algumas culturas assumem o protagonismo de proteger a comunidade negra, o samba fez isso pela geração do meu avô, o hip hop fez isso pela minha geração. É um movimento que está fazendo 50 anos, mas as coisas que ele traz são muito antigas”, disse. “Quem entende culturalmente o que o hip hop significa entende que é a continuidade do tango, da música latina, cubana, jamaicana, do samba, do funk. James Brown já era hip hop antes do hip hop”, compara.

Segundo o produtor, há uma continuidade entre os diferentes movimentos ao longo dos anos, e há registros de influências do hip hop muito antes dos anos 1970. “Em 1940 já tinha gente fazendo rap, haviam vídeos com as pessoas improvisando e fazendo flow; gerações diferentes que não se comunicavam tinham a mesma herança”, afirma Samuca.

 

O hip hop no Brasil

Embora o movimento esteja completando 50 anos de existência, no Brasil ele chegou um pouco mais tarde, no início dos anos 1980. Os b-boys costumavam se reunir na estação de metrô de São Bento, em São Paulo, ao som das músicas importadas dos Estados Unidos, para apresentar seus passos de break. Nelson Triunfo foi um dos grandes nomes despontados neste período.

O espaço virou ponto de referência para diversos grupos começarem a dançar o breaking e cantar rap ao som de toca discos e boombox. Posteriormente, a estação de São Bento passou a receber festivais com campeonatos de breaking, apresentações de rap com MC’s e DJ’s, além da performance de grafiteiros.

 

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Produtor Salve Samuca. Foto: Flor Leticia

 

Salve Samuca conta que apesar do hip hop já acontecer em São Paulo naquela época, o movimento brasileiro foi popularizado por um show internacional ocorrido na capital paulista em 1988. “O que ouvi os mais velhos falarem, o Mano Brown e o KL Jay (Racionais MC’s) que estavam lá no começo, é que houve um dia que o hip hop entrou no Brasil. Ele meio que estava aqui, mas era coisa de “bolha”. Teve um show de um MC famoso, o Kool Moe Dee, o DJ fez uma virada com o Tim Maia e a galera veio abaixo, reza a lenda que foi nesse dia que o KL Jay resolveu virar DJ. Racionais estavam lá moleques, Dexter estava lá moleque, toda uma geração que ensinou para o rap brasileiro a ser do rap estava lá naquele dia e foi impactada. Quando “gringo” usou Tim Maia, eles entenderam que podia ser coisa nossa”, relata.

A partir do momento em que o hip hop entra no país, o rap passou a ter mais visibilidade e nomes, como Thaíde, Dj Hum, Racionais MC’s, entre outros, que ganharam força a nível nacional abordando em suas letras temas importantes como os problemas sociais presentes nas periferias brasileiras.

O primeiro álbum totalmente de rap brasileiro foi a coletânea Hip-Hop Cultura de Rua, lançado em 1988 pela gravadora Eldorado e produzido por Nasi e André Jung, integrantes da banda de rock Ira!. O disco trouxe nomes como Thaíde e DJ Hum, MC Jack e Código 13. Bface explica que apesar da gravação do álbum ter sido concretizada, não era essa a realidade dos artistas da época. “O Nasi viu que as coisas estavam acontecendo, os punks, a galera do rock era próxima deles, dali surgiram alguns nomes, e foram começando a incluir o rap dentro da indústria, mas nenhuma gravadora do Brasil assinou com artista de rap. Salvo o Gabriel o Pensador, todos os maiores sucessos se lançaram de maneira independente até o começo dos anos 2000”, conta.

“A indústria cultural não abraçou o hip hop quando surgiu. O rap não existia, não tinha nenhum grafiteiro, nem break, 30 anos de marginalização dentro da indústria cultural faz a gente estar num abismo em relação aos Estados Unidos e o resto do mundo, existia pouco espaço pro hip hop no Brasil”, complementa Bface.

Salve Samuca destaca que, nessa época, houve uma forte influência do funk no gênero. “O funk é o movimento mais hip hop produzido fora do hip hop, que foi influenciado pela estética, pelos valores da cultura”. Já nos anos 1990, a influência foi de gêneros como o pop, o samba e o rock, trazendo a público nomes como Sabotage e Marcelo D2, entre outros que potencializam discussões políticas dentro do gênero. Nos anos 2000, o rap atingiu outro patamar, e ganhou espaço nas plataformas digitais e em grandes festivais, com nomes como Baco Exu do Blues, Djonga, Froid, Projota, Flora Matos, entre outros.

“De 2010 para cá, o rap ganhou outra força e se projetou por meio das batalhas de rima. Daí surgiu Emicida, Criolo, e grandes artistas atuais. A maioria vinda da batalha de rima. O Youtube se tornou a mídia que divulgou a nova geração de rap nacional”, diz Bface.

 

Brasil x EUA

Embora tenha ganhado maior destaque com o passar dos anos, Bface considera que, no Brasil, o hip hop ainda é um movimento marginalizado quando comparado à sua ascensão nos Estados Unidos. “O rap nacional é totalmente desligado da música industrial, totalmente marginalizado, bem diferente do que aconteceu nos Estados Unidos. Aqui havia matérias de jornal contra o rap, para marginalizar o movimento, uma coisa difícil de reverter”, lamenta.

O rapper explica que, apesar disso, o gênero se assemelha ao que é produzido nos Estados Unidos não por uma questão meramente reprodutiva, mas por se tratar de um movimento que tem origem nas periferias e, por conta disso, aborda as mesmas pautas. “Os movimentos surgem do mesmo lugar, dos mesmos problemas sociais, da periferia. Em essência, o rap é igual no mundo inteiro, o grafite também, o break também. Eu soube que na Palestina e nos Emirados Árabes o rap é o estilo de música mais consumido por essas pessoas que estão em situação de periferia e de guerra, é importante lá, assim como no continente africano, no Japão. Onde tem periferia e existe sociedade desassistida vai brotar o hip hop. Aí tem diferenças estéticas, de linguagem, mas existe a referência norte-americana a ser seguida”, conta.

Mesmo assim, Bface comenta que alguns artistas brasileiros fogem à regra e se destacam pela originalidade em um movimento tão marcado por influências americanas. “Às vezes surgem alguns artistas alienígenas que não têm nada no mundo parecido, como por exemplo Sabotage. Racionais não tem nada parecido em magnitude e impacto cultural na história do Brasil inteiro. Em essência é muito parecido com “gringos”, mas na hora de contar o que acontece, eles contam o que acontece aqui”, afirma.

Salve Samuca ressalta que o hip hop americano é apenas uma referência, e que os artistas brasileiros sempre souberam imprimir uma identidade própria no gênero. “O primeiro disco dos Racionais só tem sample estrangeiro. Você começa a ver elementos da cultura afro-brasileira dentro de uma linguagem que é “gringa”, Baco Exu do Blues tem que receber esse crédito enquanto ele ainda está aqui. Ele faz isso muito bem, deixa o hip hop com cara de Brasil”, ressalta.

Samuca também aponta outro fator de importância no movimento brasileiro: o avanço do protagonismo feminino na cena. “As “minas” pegaram o microfone de volta: tem a Flora Matos, a Tasha e Tracie, Nina do Porte, Cristal, Irmãs de Pau. Esteticamente, como composição, são letras mais interessantes, podem até estar no padrão estrangeiro, mas estão indo em outra direção. Quem falou nesses últimos 50 anos foram homens negros cisgêneros que precisavam ter voz, mas este período serviu para abrir espaco para outras vozes e que também tem que utilizar o hip hop para mudar sua condição”, enfatiza.

 

O legado do hip hop no Brasil

Com o passar dos anos, uma das mudanças foi o acesso a informações sobre o movimento, muito diferente de como foi no início quando o hip hop chegou ao Brasil. “Eu demorei para entender muita coisa básica da cultura porque tinha que viver, não tinha como baixar um PDF, não estava conectado, agora a gente está, e tem muita referência”, afirma o produtor.

Bface diz que o hip hop deixa um legado para a atual geração de conhecimento, de direcionamento e influência, além de contribuir para a criação de um senso comunitário. “O maior legado é esse elemento do conhecimento, ele está atrelado ao hip hop, e eu vejo como direção de vida para muitas pessoas. Tem políticos, estilistas, cineastas. O hip hop dá direcionamento de lembrar de ser inventivo, se destacar, proteger sua comunidade, lembrar do lugar que você veio, ter noção de que existem sistemas opressores. Vão tentar de alguma maneira enfraquecer a raiz do hip hop, mas ela sempre vai estar lá”, afirma.

“O movimento hip hop está muito mais acordado para questões sociais do que outros estilos, e sem contar que outros gêneros estão precisando do rap para sobreviver, pois está mais forte do que nunca diluído na cultura pop aqui no Brasil”, acrescenta.

Na opinião de Salve Samuca, o hip hop possibilitou que jovens periféricos ganhassem autoestima, além de contribuir para a formação das pessoas, existindo como um agente de transformação cultural e social, o que evitou que boa parte da população periférica entrasse para o crime, por exemplo. “O legado do hip hop é inspirar jovens negros e periféricos a serem mais, a molecada está indo para o colégio de trança, uma autoestima que minha geração teve que fingir que tinha. Você se torna articulado, se torna artista, um intelectual, um líder comunitário, acho que nenhuma escola no mundo pode dizer que formou tantos líderes quanto o hip hop”, destaca. “O que me privou de ser criminoso era que o hip hop era mais interessante”, pontua.

Para os próximos anos, Samuca diz que espera mais autonomia e representatividade. “Não é só a cara que está no pôster, é quem assina o cheque. Eu gostaria de ver nos próximos 50 anos a conquista de espaços executivos, para melhorar o processo de produção dessa arte. Tenho esperança que a gente possa se tornar os tomadores de decisão, isso é fundamental para que seja autêntico, se não vai ser que nem o Carnaval. O Rio de Janeiro trabalha o ano todo para ter Carnaval, mas quem lucra?”, indaga.

 

Muita treta para Vinicius de Moraes

Embora a definição de rap seja a junção de ritmo e poesia, o gênero ainda não parece ter encontrado seu lugar como literatura dentro da crítica especializada brasileira. Enquanto vimos o mundo contemplar Bob Dylan com um Nobel por suas canções, em 2016. Por aqui é raro vermos nomes como Mano Brown, Emicida ou Criolo citados nas listas de poetas contemporâneos da nossa geração. Para o professor de literatura Marcus Vinícius Soares da Costa, isso acontece porque a academia e a sociedade têm preconceito com o que vêm da periferia, e porque há um certo estigma de violência nas letras rap, sem dizer que a maioria dos rappers são negros.

Desde que assumiu uma sala pela primeira vez, Marcus contribui para desestigmatizar o que se costuma pensar sobre rap, utilizando as letras de artistas como Racionais, Criolo, Baco Exu do Blues e Projota em suas aulas.

“Dentro do rap temos uma gama interessantes de elementos literários e uma abordagem variada de assuntos e conteúdos que podem ser trabalhados nas aulas de literatura”, diz o professor. “Desde uma análise linguística, reflexões de temas importantes a serem discutidos na sociedade, até o trabalho com as figuras de linguagem, como a metáfora que os MC`s utilizam para transmitir uma mensagem mais poética”, completa. O professor ainda ressalta que é possível trabalhar vários conceitos narrativos, já que muitas das letras contam histórias. E lembra que o rap mantém a ligação com o gênero lírico surgido na Grécia Antiga e com movimentos literários da Idade Média, como o Trovadorismo, como as cantigas de amor, amizade e escárnio, em que os poemas tinham o acompanhamento de instrumentos musicais.

Dentro do rap, esses conceitos literários são colocados à prova nas batalhas de rimas. Tradicionais no meio, as batalhas acontecem com dois MCs que competem entre si com rimas improvisadas, sobre uma base musical tocada por um DJ. O MC que conseguir apresentar as melhores rimas e conseguir engajar a plateia é o grande vencedor (a).

Mustapha Said, apresentador, professor e um dos organizadores da Batalha de Pinhais, que acontece desde 2013, na região metropolitana de Curitiba, explica que as batalhas são divididas entre Batalhas de Sangue e Batalhas de Conhecimento. “Ambas as formas têm seu lugar na cultura do hip hop e oferecem diferentes experiências”, diz Mustapha. “A Batalha de Sangue destaca a expressão emocional e a competição baseada na provocação, enquanto a Batalha de Conhecimento destaca a inteligência, a criatividade e o domínio cultural.”

Embora ambos os estilos sejam apreciados no meio do hip hop, a Batalha de Conhecimento explora o intelecto, a criatividade e o domínio do vocabulário e da cultura. É mais bem-sucedido, nesse sentido, o rapper que oferecer rimas inteligentes e bem elaboradas, mais focadas em mostrar certa erudição do rapper, ao fazer referências históricas, literárias, científicas, políticas, entre vários outros temas. Mustapha destaca, que além das metáforas, outros elementos literários são trazidos para as rimas dentro do rap, como a repetição sonora para criar ritmo, velocidade e tom de voz, e a hipérbole, como um exagero intencional, para adicionar profundidade, ação e atenção.

“Além disso, o hábito da leitura desempenha um papel crucial no desenvolvimento dessas habilidades”, diz Mustapha. “MCs que leem regularmente têm acesso a um repertório maior de palavras, imagens e ideias, o que enriquece suas rimas e lhes permite explorar uma variedade maior de elementos literários em seu trabalho. Portanto, a leitura e a prática contínua são essenciais para a evolução e aprimoramento das habilidades literárias dos MC’s no mundo do hip hop.”