ESPECIAL CAPA | Vaga-Lume: o farol da leitura por várias gerações 07/04/2025 - 17:22
Em um tempo no qual é preciso repensar e retomar o livro como hábito, é edificante relembrar um caso de sucesso editorial, que arrebatou milhões de leitores
por Flavio Jacobsen
Em meados dos anos 1950, enquanto o Brasil se industrializava, houve uma verdadeira horda migratória do campo para as grandes cidades. A grossa maioria desse efetivo nunca chegou sequer perto de uma escola. Muito menos de um livro.
Enquanto isso, empreendedores buscavam novos nichos de mercado dentro de um contexto social complexo, que, entretanto, fazia emergir uma nova classe média a olhos vistos. Em uma cidade de São Paulo que abandonava aos poucos o "pavio de lampião" pela "lâmpida" (sic) — ambos cantados por Adoniran Barbosa — os irmãos professores Anderson Fernandes Dias e Vasco Fernandes Dias Filho, junto ao amigo Antonio Narvaes Filho chegaram a uma conclusão óbvia: há dinheiro, mas falta educação, e não há tempo para formar tanta gente, a maioria já com idade um tanto avançada. Era preciso ser rápido.
Assim nasceu o curso "Madureza Santa Inês" — os "madurezas" eram o que hoje é o supletivo. Corria o ano de 1956. Tais escolas consistiam, no espaço de seis meses mais ou menos, em formar uma pessoa no equivalente ao curso primário da época. Em mais seis meses, o ginasial. E assim adiante, com mensalidades acessíveis, já que o poder aquisitivo não era tanto.
O Santa Inês logo se viu em uma encruzilhada empresarial: onde imprimir mais, melhores e mais baratos materiais, como apostilas e livros didáticos? O grupo funda então, em 1962, a Sociedade Editora Santa Inês, que em 1965 se tornou a Editora Ática. Assim era lançada a pedra fundamental em um dos maiores e mais bem sucedidos empreendimentos editoriais do país em todos os tempos.
O leque estava enfim aberto para outros meios educacionais que não o supletivo fundado havia pouco menos de uma década. Formada predominantemente por professores, a equipe editorial, em 1969, liderada por Jiro Takahashi — o personagem fundamental desta história — optou por uma tacada que pode ser considerada ousada para a época: publicar literatura. E o público-alvo era o infantojuvenil.
A Ática lançou então a coleção Bom Livro, que reunia clássicos da literatura portuguesa e brasileira, com distribuição nas escolas públicas e privadas. As edições vinham com uma ficha de leitura destacável, na qual os alunos preenchiam questões acerca da obra que acabavam de ler.
Takahashi decidiu publicar algumas obras consagradas, posteriormente dando espaço para que outros autores menos famosos pudessem publicar seus trabalhos sob o selo, que se tornaria sucesso com o passar dos anos.
Assim, foram escolhidos dois livros: Éramos Seis, de Maria José Dupré; e Coração de Onça, de Ofélia e Narbal Fontes (um casal que escrevia a quatro mãos), ainda pela série Bom Livro. A ideia era ver se esses títulos novos seriam aceitos como os clássicos usuais. Houve sucesso imediato. Outros títulos começaram a ser sugeridos por professores. Outros autores foram escalados.
Daí uma nova guinada. Em janeiro de 1973, Takahashi cria a Série Vaga-Lume. O símbolo da coleção era um mascote, desenhado pelo quadrinista Carlos Eduardo Pereira, um vaga-lume com visual hippie, que fazia uma espécie de apresentação informal da obra e depois também conduzia a ficha de leitura ao final do livro, ilustrado com linguagem de gibi. Ao personagem foi dado o nome "Luminoso". E uma verdadeira febre de leitura tomou conta do país inteiro.
O primeiro livro que podemos chamar de best-seller surgido na Vaga-Lume foi O Escaravelho do Diabo, de Lucia Machado de Almeida. Incríveis três milhões de exemplares foram vendidos no ano de 1974.
E uma série de novos autores — outros nem tão novos — foi apresentada ao leitor. Homero Homem, José Rezende Filho, Luiz Puntel. Um deles, em especial, já era um tanto consagrado: Marcos Rey, que estreia na Série Vaga-Lume com O Mistério do Cinco Estrelas, em 1981. Rey seria o autor mais profícuo da editora desde então. Foram quinze títulos publicados, todos com imenso sucesso, seguindo uma linha um tanto peculiar, que foi informalmente chamada de "policial noir infantojuvenil".
O escritor e jornalista Sandro Moser pontua: "O Mistério do Cinco Estrelas e a coleção Vaga-Lume em si, abriram um portal em minha mente. É como se a obra fosse uma espécie de ‘droga’ que é porta de entrada para coisas mais ‘fortes’. Foi há quarenta anos, quando, crianças, ainda andávamos com os sacis e as fadas, e Marcos Rey foi meu primeiro contato com uma obra literária de qualidade. Depois veio Marçal Aquino, e outros da série. E o mais importante: sempre autores brasileiros. A Vaga-Lume formou não só uma geração de leitores, mas também de autores".
Não foi sem uma estratégia muito bem pensada que a Série Vaga-Lume se consolidou. Jiro Takahashi declarou ao site Coletivo do Leitor, em 2018: "A precificação foi um item importante apontado por professores, que indicavam que nenhum título poderia custar mais do que uma revista semanal das bancas. Passamos a usar esse padrão de preço para que os professores e os pais se sentissem confortáveis diante desse desembolso semestral, já que a meta inicial era que no mínimo um título fosse indicado por semestre. Por isso, por quase dez anos, preparávamos lançamentos semestrais dos títulos da série. De certa forma, essa sazonalidade era muito interessante para se harmonizar com a sazonalidade dos livros didáticos. Um hábito, de certa forma, muito utilizado no mundo rural no país".
É possível dizer que o "pulo do gato" criado e estabelecido pelo editor Jiro Takahashi e sua equipe foi a tríade "escola-professor-aluno", algo que tornava mais fluído e natural o consumo de literatura. O jornalista Sandoval Matheus é um exemplo de leitor que foi capturado na sala de aula. "Na escola, sempre fui um aluno irregular, indisciplinado. O ambiente me exasperava. A possibilidade de conhecimento não me seduzia. Tudo soava meio sem sentido. Até que eu descobri a Vaga-Lume. A primeira coisa que me caiu nas mãos foi O Escaravelho do Diabo. Devo ter escolhido por conta do título. Foi uma excelente decisão. Ali, eu entendi que esse negócio podia ser divertido. E estamos nessa até hoje", declara.
A professora de Literatura Maria Fumaneri costuma dizer que o diferencial está na curadoria. "Quando você é criança, não tem condições de saber que autor é bom ou ruim. Então esse trabalho já vinha pronto, com uma série muito bem ilustrada, atrativa, que encontramos facilmente na prateleira, o que também atrai o aluno para a leitura. Adolescente gosta de uma boa coleção", define.
A Editora Ática passou por diversas mudanças corporativas, e hoje a detentora dos direitos é o grupo Somos Educação. A Série Vaga-Lume foi reformulada em 1999 com a Vaga-Lume Júnior, voltada ao público infantil, e durou até 2008 quando foi encerrada e passou por um hiato. Em 2021 a Somos retomou novamente a Série. Ela dura até hoje. Conta mais de 100 títulos.
Os números impressionam. Algo como oito milhões de exemplares, por baixo, foram vendidos, desde aquele verão de 1973. Quando Jiro Takahashi teve uma ideia luminosa que mudou o mercado editorial para sempre, vendendo milhões e transformando a vida de outros tantos.
Um verdadeiro farol.
Flavio Jacobsen é escritor. Nasceu em Santos, em 1967, e vive em Curitiba desde os nove anos de idade. Autor de Uns Contos no Bolso (Kotter, 2015), trabalha como redator e roteirista.