ESPECIAL CAPA | Desligue o celular e leia essa reportagem 28/02/2025 - 13:59

Em 1990, a MTV (Music Television) instalou-se no Brasil e tornou-se uma das emissoras mais assistidas pelos jovens. Além dos diversos programas de música, com apresentadores(as) arrojados e temas discutidos de forma irreverente, as campanhas de publicidade eram sempre pautadas em questões atuais, como a preservação do meio ambiente, direitos das crianças e do adolescente, combate ao racismo e temas relacionados à saúde, principalmente a AIDS, que havia surgido há poucos anos e se alastrava pelo país, matando muitas pessoas e sendo classificada como uma epidemia.

Mas foi em 2004 que uma campanha chamou muito a atenção: "Desligue a televisão e vá ler um livro”, que tinha como objetivo incentivar o hábito de leitura entre os jovens. A mensagem exibida em uma TV obteve tanto êxito que, em cinco meses, atingiu 7,5 milhões de telespectadores só na grande São Paulo, de acordo com os dados do Ibope Telereport na época. O então diretor geral da MTV Brasil deu uma declaração para a imprensa dizendo que nas duas primeiras semanas da campanha, mais de 200 mil telespectadores desligaram a TV. "Se foram realmente ler um livro eu não sei", completou. O spot, que durava 30 segundos, passou a ter 15 minutos, tamanha repercussão que causou, dividindo quem amava e quem odiava a ideia, mas principalmente, aquecendo o debate e afiando o senso críti­co sobre uma questão fundamental: a leitura de livros.

Vinte anos após este episódio, a 6ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada em novembro de 2024 pelo Instituto Pró-Livro (IPL), aponta um dado assustador: 53% dos brasileiros não leem livros, nem parte de um livro – impresso ou digital – de qualquer gênero, incluindo didáticos, bíblia e religiosos, uma redução de 6,7 milhões de leitores no país nos últimos quatro anos. Desde que esta pesquisa começou a ser realizada pelo IPL, há 18 anos, é a primeira vez que a proporção de não-leitores é maior do que a de leitores na população brasileira. 

Seguindo os dados do levantamento, houve também uma diminuição em quase todas as faixas etárias, em especial, dos 5 aos 10 anos, na fase da formação de leitores. A coordenadora da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil do IPL, Zoara Failla, comenta."Sabemos que os principais agentes da formação de leitores são: as escolas e as famílias. Mas, quando identificamos redução no percentual daqueles que já são leitores, necessitamos buscar explicações, também, em ou­tros fatores". 

Embora 85% dos leitores leiam em casa, as escolas têm se tornado espaços cada vez menos voltados para a leitura, com a participação das salas de aula caindo para 19%, de acordo com os dados. "Em relação à redução de leitores estudantes, verificamos nas escolas, o principal espaço de formação de leitores, a diminuição no tempo dedicado à leitura nas salas de aula, e, nas bibliotecas, a interrupção em programas de distribuição de livros, tão importantes para possibilitar a escolha e o acesso aos livros indicados pelos professores", explica Zoara. 

Letícia W. Magalhães, professora e escritora, formou-se em Letras-Português pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 2007, e desde então começou a dar aulas de Língua Portuguesa e Literatura para adolescentes em diversas escolas em Curitiba, além de ter escrito uma coleção de livros didáticos de Literatura/Ensino Médio. Participa de diversos projetos culturais e literários, estreando em 2019 como autora em livros de ficção. Em sua vivência como educadora, ela faz uma análise mais ampla sobre alguns dos motivos sobre esse cenário. "Vale a pena pensar na questão estrutural. Se pensar em desempenho escolar, evasão e alfabetização, por exemplo, a leitura entra nisso, né? Não é uma consequência, digamos, é um projeto. É uma questão bastante importante para pensar num aspecto e um espectro também mais amplo". 

Entre as novidades dessa pesquisa, foi mensurado pela primeira vez o número de livros infantis nas residências e os hábitos de leitura dos pais sob a ótica das crianças entre 5 e 13 anos, pois, segundo a coordenadora do IPL, o objetivo é conhecer novos fenômenos que podem impactar nos hábitos e interesses dos leitores. A Região Sul é a única onde a maioria da população ainda mantém o hábito da leitura. Os estados com maiores índices de leitores são: Santa Catarina, com 64%, seguido por Paraná e Ceará, ambos com 54%. 

 

Analógico x Digital

Em janeiro deste ano, o Ministério da Educação (MEC) sancionou a Lei Federal 15.100, que limita o uso de dispositivos eletrônicos portáteis nas escolas públicas e privadas, tanto nas salas de aula quanto no recreio e intervalos, mas permite o uso pedagógico, ou seja, quando autorizado pelos professores, já em vigor a partir do ano letivo que iniciou em fevereiro. De acordo com o MEC, a nova medida tem como meta proteger as crianças e adolescentes dos impactos negativos das telas na saúde mental, física e psíquica, e já foi adotada em outros países, como França, Espanha e Dinamarca.

A arquiteta Bruna Correia tem duas filhas, de 7 e 15 anos, Luiza e Rebeca, e conta um pouco sobre sua experiência com elas sobre a prática da leitura. "Sempre incentivei minhas filhas a ler, desde pequenas. Tentei passar para elas que a leitura é algo que expande a imaginação, que é prazeroso, mas é muito difícil competir com as tecnologias. A mais nova já nasceu com chip de celular", brinca. Ela diz que a adolescente de 15 anos está tendo dificuldades para se adaptar à nova rotina escolar sem celular, mas que ao mesmo tempo percebeu que está mais produtiva e atenta nos últimos di­as. "Claro que há uma irritação por não poder usar, e ela está tentando utilizar isso para se dedicar a outras coisas, por exemplo, praticar esportes, ir ao cinema, ter mais tempo para conversar,  e… ler!", fala em tom de surpresa.

A professora Letícia conta uma história que exempli­fica a situação, ocorrida antes da lei sobre a restrição dos aparelhos celulares nas escolas, em que combinou com seus alunos de fazer um dia sem celular. "O curioso é que eles passaram a fazer hipóteses de como seria ficar sem o celular, desde ouvir música, sabe? A rea­ção dos alunos nos expõe bastante a refletir, pois mui­tos deles já nasceram nesse mundo, diferentemente de outras gerações que não tinham aparelhos tecnológicos. Um mundo off-line e on-line, né? Ter pelo menos esse parâmetro.", analisa, e frisa que, além disso, há também o impacto do uso excessivo do celular na plas­­ticidade cerebral, na qualidade do sono, na atenção e em um ambiente escolar mais saudável. "Sobre relações interpessoais também acho que é uma medida muito válida". 

Isabella Trevisan Vidotto tem 13 anos e começou a ler com 5, atualmente está no 8° ano. Ela diz que a restrição do celular não a afetou pois não costuma levar celular para a escola, e que sempre teve estímulo para leitura, tanto dos pais como da escola. "Converso com meus colegas sobre os livros que lemos. Já teve uma vez de estarmos lendo o mesmo livro e fazermos uma competição para ver quem lia mais rápido", diz a estudante. 

Há outros fatores importantes fora da escola, como um grande aumento do percentual daqueles que usam o seu tempo livre na internet e redes sociais. A partir dos 14 anos, o percentual é superior a 90%. Já a leitura de livros, no tempo livre, teve redução de 24% para 20%, e 43% das crianças de 5 a 10 anos acessam games em seu tempo livre, como explica a coordenadora da pesquisa. "Essa grande exposição às telas e mensagens ligeiras, segundo especialistas, explica a elevação do percentual daqueles que dizem não ter pa­ciência para a leitura; além de outros problemas como o aumento da ansiedade, podem estar dificultando a atenção e a concentração necessárias para leituras profundas. Essa dificuldade prejudica a construção do conhecimento e a aprendizagem. Também impacta na análise sobre os conteúdos e a veracidade das informações, comprometendo uma leitura crítica e alimentando o sucesso das fake news", analisa Zoara.

 

O triunfo do papel

Outra investigação importante é sobre a leitura no suporte papel e no digital. Nesta edição de 2024, foram incluídas questões para conhecer como os leitores avaliam a atenção e a compreensão nos dois suportes, e a maioria, em todas as faixas etárias, preferem a leitura no papel, como mostra a pesquisa. 

Outros suportes de leitura tecnológicos também podem estar no repertório da leitura, como diz Letícia: "A maior parte das pessoas que lê, ainda que não seja um número muito alto, é por meio do celular e de e-books. A gente tem que tomar cuidado para não demonizar o celular. Eu sou favorável à lei (sobre a restrição do celular), mas eu também acho que é um apare­lho que deve ser bem utilizado. Pode ser um aliado in­clusive para esse fomento à leitura e difusão do livro. Se a gente pensar em eliminar os celulares, proibir totalmente, além de ser ineficaz, é impensável hoje.", pon­tua.

Confirmando essa ideia, Rebeca, a filha adolescente da arquiteta Bruna, lê em celular e e-books. Segundo a mãe, ela se adaptou bem às plataformas e desco­briu um novo modo de leitura. "Ela gosta de baixar li­vros em PDF e ler nas telas, é a nova forma de ler des­sa geração que já nasceu no mundo digital", define.

 

Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil

 

Leitores de literatura e leitores da Bíblia

A pesquisa classifica em três categorias os "leitores de literatura" (os que leem contos, crônicas, roman­ces ou poesias) contabilizando os últimos três meses: os que leem pelo menos um livro de literatura por vontade própria, inteiro ou em partes; em outros meios ou formatos que não sejam livros (redes sociais, aplicativos de mensagens, blogs, sites, revistas, jornais); e independente do meio (em livros e/ou canais que não sejam livros).

Na categoria Conto, 73% leem em outros meios que não sejam livros; Poesia, a maioria prefere ler livros impressos, com 59%; o gênero Crônica fica quase empatado, com 55% para livros e 54% apenas em outros meios; e Romance abrange maior percentual de quem prefere os livros, 50%, seguido pela leitura em outros meios, com 42%.

Entre os gêneros literários mais lidos, no Instagram e Facebook, na faixa etária entre 14 e 29 anos, Contos têm uma média de 30% de leitores, e ficam em segundo lugar na lista geral, atrás apenas da Bíblia, que está na primeira posição como um dos livros mais lidos, mais marcantes e mais citados entre os entrevistados. Houve também um acréscimo relacionado a influências dos líderes religiosos, como padres, bispos, etc., que é acompanhado desde 2015 pelo IPL. Zoara ressalta que na população acima de 70 anos, a representação na amostra é muito pequena para destacar como elevação. "Mas, a partir dos 50 anos, identificamos um aumento no percentual de leitores de livros religiosos e Bíblias; além da maior influência de líderes religiosos, o que poderia explicar, em parte, esse acréscimo", pontua.

 

Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil
Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil
Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil

 

Diretrizes, acesso e formação

Para Zora, é urgente buscarmos soluções para garantir a formação de leitores proficientes e críticos e despertar o gosto pela leitura. "Deve ser um desafio de toda a sociedade, mas deve ser orientado por políticas públicas efetivas voltadas à formação de professores leitores e mediadores de leitura e para garantir o acesso aos livros", e enfatiza que as mídias podem ter um papel fundamental na conscientização e valorização da importância do livro e da leitura  para a vida pessoal, profissional e para o desenvolvimento social e a democracia do país. 
Em escala nacional, referente às políticas públicas institucionais, algumas medidas estão sendo implementadas. Em setembro de 2024, o Governo Federal assinou o decreto que regulamenta a Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE). Com isso, poderá criar um novo Plano Nacional de Livro e Leitura (PNLL) e define uma série de ações de valorização do livro e da leitura, mas, atualmente, não está em vigência no país.

Em fevereiro deste ano teve início no estado de São Paulo a primeira etapa dos "Encontros de Escuta", composto por uma série de encontros regionais de discussão para a construção do Plano Estadual do Livro e Leitura (PELL). Já em escala nacional, a primeira reunião de escuta popular ocorrerá na próxima Bienal Internacional do Livro, em São Paulo, marcada para se­tembro deste ano, que contará com a participação da sociedade civil para a elaboração de metas e ações do PNLL. De acordo com informações do site Agência Brasil, o novo plano tem previsão de vigorar entre 2025 e 2034. 

Letícia ressalta a importância de pensar na cadeia produtiva de toda a estrutura. "Nesse sentido, na teoria, o Plano Nacional do Livro e Leitura é um projeto e tanto, considerando que trata-se de diretrizes básicas para assegurar a democratização do acesso ao livro, o fomento e a valorização da leitura e o fortalecimento da cadeia produtiva do livro como fator relevante para o incremento da produção intelectual e o desenvolvimento da economia nacional. Por outro lado, e agora falo como escritora também, essa escuta de representantes de todas as cadeias relacionadas à leitura deveria ser mais bem divulgada, para que efetivamente o PNLL possa ser concretizado e, assim, ser um meio real de reverter esse quadro que o Retratos da Leitura no Brasil revelou", afirma.

Ela chama a atenção especialmente para os livros didáticos, cada vez mais dominados por sistemas de ensino que têm mais interesse econômico do que realmente na educação, além do alto valor dos livros. "Diretrizes institucionais e governamentais que garantam mais diversidade nas escolhas de compras públicas, por exemplo de editoras pequenas, seria um importante passo. Já o preço do papel, por exemplo, que é muitas vezes importado, subiu bastante. É claro que isso vai encarecer no produto final, que é o livro. As políticas, às vezes, não são só aquelas visíveis na ponta, mas da economia mesmo, em pensar em juros e isenções fiscais, por exemplo. Acho que isso facilitaria o acesso", completa Letícia. 

 

Vai dar samba

O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade disse que "A leitura é uma fonte inesgotável de prazer, mas por incrível que pareça, a quase totalidade não sente esta sede." A frase é profética, considerando o atual cenário, e suscita reflexões acerca da importância do tema. 

Contrariando as estatísticas, Isabella diz que a leitura é muito importante para ter conhecimento e aprender sobre as coisas - que alcança também a maioria das respostas sobre o que a leitura significa, com 46% - "mas também para ter algo a fazer nos momentos de tédio", ressalta. 
Letícia considera essa questão pessoal e subjetiva. Exemplifica com um livro da antropóloga Michelle Pètit, A arte de ler: ou como resistir à adversidade (2009), da Editora 34, que traz um testemunho de um morador de um dos bairros mais pobres de Bogotá, que diz: "Aquele livro me deu a força necessária para enfrentar a virada decisiva de minha vida, aceitar que eu não era mais o mesmo, suportar sê-lo com meus amigos que não compartilhavam o que eu pensava e que tive que enfrentar para defender minha nova maneira de ver a vida...". 

O livro de Pètit possui vários testemunhos sobre a importância da literatura, composto por histórias em quadrinhos, relatos orais, além de poesia, conto e romance, que mostram como a literatura impacta na estrutura emocional e efetivamente na vida das pessoas, principalmente em contextos críticos. A autora coordena um programa internacional sobre o assunto "a leitura em espaços de crise", compreendendo tanto si­tuações de guerra ou migrações forçadas como contex­tos de rápida deterioração econômica e grande violên­cia social. 

Uma história da leitura (1996), de Alberto Manguel, escritor e ex-diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, tem um capítulo que fala de leituras proibidas e aborda vários momentos da história e em diversos lugares Ocidente e Oriente, e as diversas circunstâncias em que a leitura foi proibida, conforme conta Letícia. "Acho que é uma boa resposta para a gente pensar qual a principal importância da leitura na vida das pessoas. Quer dizer, porque que em tantos momentos da história a leitura foi proibida? Se ela fosse desimportante, ninguém ligaria. Pensar nesse avesso já mostra a importância da leitura", questiona a escritora e professora.

Pensando pelo avesso ao analisar tantas reflexões para concluir a reportagem, seria um ótimo momento para realizar uma campanha para estimular a leitura, como a da MTV. Daí lembrei da letra de um samba de Nelson Sargento "Agoniza mas não morre", que faz todo sentido se trocarmos o "samba" por "livro". Talvez a próxima campanha já tenha um mote.

"Samba
Agoniza mas não morre
Alguém sempre te socorre,
Antes do suspiro derradeiro.
Samba,
Negro, forte, destemido,
Foi duramente perseguido,
Na esquina, no botequim, no terreiro.
Samba,
Inocente, pé-no-chão,
A fidalguia do salão,
Te abraçou, te envolveu,
Mudaram toda a sua estrutura,
Te impuseram outra cultura,
E você não percebeu"

Acesse aqui a pesquisa completa Retratos da Leitura no Brasil 2024.


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Marianna Camargo é jornalista, escritora e editora do jornal Cândido. Possui especialização em Gestão Cultural Comunitária, pela Universidade da República do Uruguai (Udelar) e Gestão de Informações Públicas e Base de Dados (Agesic/Governo Federal do Uruguai).