ESPECIAL | Assim se constrói um leitor 28/02/2025 - 13:21
Por Bianca Weiss
O Cândido entrevistou Bel Santos Mayer, educadora social que coordena o Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (IBEAC) e é co-gestora da Rede de Bibliotecas Comunitárias LiteraSampa. Entre os projetos de incentivo à literatura que participa dentro dessas organizações, destaca-se a ação em Parelheiros — distrito localizado na zona sul da cidade de São Paulo —, que foi um dos tópicos da conversa, e a organização de bibliotecas comunitárias. Além disso, Bel explicou ao jornal um pouco da sua perspectiva sobre como criar um Brasil que lê.
Em um cenário revelado pela pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro (IPL) e publicada no final de 2024, ficou indicada uma superação no número de leitores pelo de não-leitores. Ao explicar como funcionam os projetos de leitura que coordena e como efetivamente podem transformar essa realidade no país, Bel arremata: “Eu continuo acreditando que seremos um dia um país de leitores e de leitoras. E não é porque vai ter uma grande transformação, isso já está pronto, é só fazer.”
A ascensão dos livros digitais muitas vezes é tratada como um grande ampliador do acesso ao livro, mas mesmo nessa grande era digital a quantidade de leitores caiu de maneira significativa. Como você encara essas plataformas virtuais?
Eu diria que nós ampliamos o número de pessoas que têm acesso à palavra escrita. Nós tivemos um imaginário de que as tecnologias, o acesso às redes sociais acabariam com os livros. Isso não aconteceu. A gente tem muito mais livros sendo publicados, mais pessoas escrevendo, mas isso não é suficiente para nos transformar em leitores. Um leitor é formado pelas palavras, pelas trocas, pelas conversas sobre o que os livros são e que histórias contam. O que falta é criar essas oportunidades de atenção, porque as redes sociais nos colocam em estágio de dispersão e não o da concentração que a leitura nos pede. Quando olhamos para a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, quem é leitor diz que prefere ler nos livros porque a leitura em outras plataformas distrai. São mensagens que chegam, propagandas que chegam e tudo isso tira a atenção da leitura. Temos que continuar trocando os livros e promovendo encontros entre as pessoas.
A pesquisa destacou os principais motivos para os não leitores permanecerem longe de livros é a falta de tempo (33%) e gosto pela atividade (32%). Que soluções são possíveis ao pensar em reverter esse cenário e criar mais interesse da população por essa atividade?
É preciso olhar outros dados juntos desses, que vão nos dizer que as pessoas não-leitoras, a quase totalidade delas, nunca ganhou um livro de presente. É importante observar o fechamento de mais de 1000 bibliotecas comunitárias e públicas no mesmo período, ver aquilo que colabora para que nós não sejamos leitores. Eu falei na pergunta anterior sobre a dispersão e eu reforço que uma saída é criar tempo para a leitura. É louvável ter iniciativas em que as pessoas leem nas várias atividades que eu participo. Sempre iniciamos com uma mediação de leitura, parar e ler juntos. A gente sempre começa lendo, porque, como é que você vai dizer para as pessoas que é importante ler? Não se reserva tempo para os livros no nosso dia a dia para não perder tempo, então mudar essa lógica é incluir a leitura.
E sobre o gosto pela leitura? A professora doutora Leda Maria Martins fala da oralidade pura, que os nossos corpos, as nossas vidas, são cheias de histórias e palavras. O que está acontecendo e que não se percebe é que isso é literatura e que não é possível viver sem história, sem leitura. O professor Antonio Candido, ao falar do direito humano à literatura, vai dizer que não vivemos sem metáforas e histórias. A literatura está aí o tempo todo, através da leitura ficcional e não-ficcional, da leitura informativa e de outras modalidades. Trazendo mais um pensador, Paulo Freire vai dizer que a leitura do mundo antecede a leitura da palavra. A gente lê o mundo, narra o mundo e escreve o mundo. Não é possível que não gostemos disso, não tem como.
Você ressalta muito a importância de levar os livros e histórias até as pessoas e em transformar a leitura em uma atividade coletiva. Como você enxerga o papel das bibliotecas comunitárias em relação aos resultados da pesquisa Retratos da Leitura 2024?
Eu diria que as bibliotecas comunitárias podem oferecer muito para mudar esses dados, porque é ali que as pessoas aprendem a ser mediadoras e influenciadoras de outros leitores. Um dado que a pesquisa traz é que, entre 2019 e 2024, a frequência às bibliotecas caiu de 17 para 9% e outro dado são das grandes fundações que apoiavam bibliotecas comunitárias, ao menos três deixaram de fazê-lo. A penúltima edição da Retratos da Leitura no Brasil despontou que 4% dos frequentadores e frequentadoras de bibliotecas eram de espaços comunitários. Pode parecer um percentual muito pequeno, mas quando pensamos que essas bibliotecas nascem da iniciativa de indivíduos, coletivos ou instituições que atuam nas bordas do nosso país, é louvável olhar para esse resultado e pensar que é um lugar que existe bibliodiversidade. Essas bibliotecas que se enraízam nos territórios e constroem programações articuladas com as comunidades são as que criam um Brasil que lê. Dentro desses espaços você vai encontrar de clássicos a contemporâneos, uma diversidade da produção literária das periferias, de autoria negra, de autoria indígena, de pessoas que saem com a sua mochila com os livros para comercializá-los em eventos literários. A biblioteca em si, essa célula de irradiação da vida que está nas estantes, é também o centro que vai catalisar e trazer a vida em comunidade para o espaço da biblioteca.
Unir o serviço de empréstimo de livros a iniciativas culturais dentro das bibliotecas é uma saída?
Sem dúvida. Nós das bibliotecas comunitárias, trabalhamos os espaços pensando em alguns eixos ou linhas de atuação. Os livros estão no eixo do acervo que envolve a curadoria para garantia da bibliodiversidade, seguindo conceitos da biblioteconomia sobre catalogação e classificação do acervo. Mas nós temos a mediação, da qual eu já falei, que é essa aproximação entre o interagente, seja ele leitora ou não leitor, e o livro. Quando a gente pega, por exemplo, livros infantis com ilustrações, estamos construindo uma galeria de arte dentro da biblioteca. Só por olhar a diversidade de ilustrações, de composição de imagens com colagens e variadas técnicas, promover o encontro com ilustradores, é uma forma de aproximar os livros das pessoas. Então, ter encontros para conversar sobre poesia, realizar um sarau poético, círculos de leitura para compartilhamentos literários, emprestar a voz para acessar a leitura, mas também trazer as suas reflexões e compreensões daquela obra que foi lida, tudo isso é uma solução. A biblioteca é a casa dos livros, mas também é a casa dos leitores, é a casa das histórias. Voltando para a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, quando se observa o eixo que fala da opinião do leitor sobre as bibliotecas, 24% dos pesquisados acham que a biblioteca é para todo mundo enquanto 59% acham que a biblioteca é um lugar para estudar. Se eu não for para a escola, o que eu vou fazer lá? Se o espaço tem uma programação cultural voltada para diferentes faixas etárias e gêneros literários, as pessoas vão perceber que a biblioteca é um lugar para se estar, onde você pode encontrar um livro para chamar de seu e criar conexões com aquilo que você gosta. Se você gosta de música, se você gosta de artes visuais, se você gosta de atividade física… Tem livro para todo mundo.
Conte um pouco sobre o projeto em Parelheiros, como essa transformação que está sendo feita pode servir de inspiração para o restante do país nessa luta pela valorização dos livros?
Parelheiros está no extremo sul da cidade de São Paulo, é uma área periférica rural da cidade, uma região de mananciais conhecida como a Amazônia paulistana. Sendo a terceira maior população percentual de negros da cidade de São Paulo, até o ano de 2010 Parelheiros não tinha nenhuma biblioteca. Fomos a primeira a ser criada, uma biblioteca comunitária que viveu por dez anos num cemitério, tendo que sair de lá para ampliar as áreas de sepultura durante a pandemia. Em Parelheiros, com um grupo de adolescentes do ensino médio, criamos a Biblioteca Caminhos da Leitura, que está fazendo 15 anos. Ela seguiu com um princípio de povoar aquele território que tinha sido considerado o pior lugar para se nascer e viver na cidade de São Paulo, num ranking de 30 subprefeituras. Nos empenhamos em fazer com que a literatura chegasse à comunidade e chegasse em forma de livros que podiam ser acessados para empréstimos, mas que também poderiam ser ouvidos para as pessoas que não pudessem ler. A partir dessa biblioteca com adolescentes, a gente começa a levar a literatura ainda desde a barriga para os momentos de acompanhamento pré- natal. Começa assim a nossa ação do Nascidos para Ler — inspirado no Nati per Leggere da Itália. Assim, a biblioteca vai caminhando do cemitério até à maternidade, passando por todos os ciclos da vida.
Acho que eu não falei quem somos, né? Nós somos o Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário, o IBA, que é uma organização da sociedade civil que tem 44 anos e desses projetos desenvolvidos pelo IBA, vão chegando outros parceiros. Hoje nós somos cinco bibliotecas comunitárias no território, sonhando que todas as pessoas consigam chegar a pé até onde os livros estão. Com quase 16 anos no território, transformamos a nossa ação numa pós-graduação que vem falar dessa relação entre literatura e território. E, pelo menos a cada dois meses, fazemos algumas vivências em que as pessoas podem conversar com quem está ali em Parelheiros. Então, essa é uma luta que tem aí alguns anos para fazer de Parelheiros o melhor lugar para se nascer e viver.
Após todos estes anos de trabalho e projetos realizados para ampliar e democratizar o acesso à leitura, qual é para você a grande importância de iniciativas deste porte do ponto de vista da mudança individual e do sociocultural?
Eu continuo acreditando que seremos um dia um país de leitores e de leitoras. E não é porque vai ter uma grande transformação, isso já está pronto. Temos Plano Nacional de Leitura, a Lei Castilho, então tudo isso já foi discutido, cheio de propostas. Vários municípios já têm os seus planos municipais do livro e leitura e estão caminhando para construir planos estaduais. A gente tem um arcabouço legal de iniciativas que está sendo debatido, pensado e organizado, o que está faltando é fazer as coisas acontecerem. Aí eu confio muito nessas transformações miúdas. Não é possível transformar leitores sem escutar, sem dedicar tempo para conversar, para escrever. Eu falei isso aqui: que a gente não tem tempo para ler juntos dentro das casas, as famílias que têm crianças e adolescentes. Não dá para abandonar os adolescentes sozinhos nesse mundo da leitura. Continue lendo com eles, coloque literatura, indique literatura, dê livros de presente, visite bibliotecas e livrarias, participe das programações. É tudo isso que vai fazer as transformações acontecerem. Nenhum de nós chegou até aqui, até o fim dessa entrevista, sem que tivéssemos dedicado tempo para leitura, para a escrita, para a conversa sobre os livros. Então são revoluções bem miudinhas, mas que só vão acontecer se cada um de nós fizer essa parte.
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Bianca Weiss nasceu em Arapongas, no norte do Paraná. Formada em Jornalismo na Universidade Federal do Paraná (UFPR), é repórter do jornal Cândido.