ENTREVISTA | Salgado Maranhão 30/11/2023 - 15:20

 

Na borda da língua

O poeta maranhense Salgado Maranhão chega aos 70 anos com lançamento de antologia que reúne os poemas mais marcantes de sua carreira literária

 

Maurício Pokemon
Foto: Maurício Pokemon

 

por Luiz Felipe Cunha

 

Aos 70 anos, Salgado Maranhão acaba de lançar a antologia A Voz que Vem dos Poros (Editora Malê), uma compilação de poemas marcantes dos seus 45 anos de carreira literária. Tido como uma das vozes mais originais da poesia brasileira, a obra de Salgado gravita em um universo poético próprio, onde a língua ganha autonomia e as palavras são estendidas ao máximo para dar conta de um emaranhado de temas, como a natureza, a negritude, o sexo, a história do Brasil, a passagem implacável do tempo, entre outros. Salgado vai no âmago das palavras para criar imagens únicas, envoltas em ritmo e musicalidade. Tudo isso com uma linguagem singular e pontual.  “Minha poética gravita na borda da língua, nesse equilíbrio delicado em que um passo para trás é o lugar comum e um passo para frente é o ininteligível”, disse, certa vez, em entrevista.

Nasceu no Quilombo Cana Brava das Moças, município de Caxias, no estado do Maranhão. Na década de 70 conheceu Torquato Neto, mudou-se para o Rio de Janeiro e se envolveu com a literatura marginal da chamada “geração mimeógrafo”, da qual fizeram parte Ana Cristina Cesar, Chacal, Paulo Leminski e o próprio Torquato. Neste período, lançou seu primeiro livro Ebulição da Escrivatura, uma antologia de novos poetas que, na época, fazia frente aos 26 poetas elencados por Heloísa Teixeira. Publicou mais de dezesseis obras individuais, das quais se destacam: Os Punhos da Serpente (1989), Palávora (1985), tido pela crítica especializada como um dos melhores livros do poeta, Mural de Ventos (1998), com o qual ganhou o seu primeiro prêmio Jabuti e Sol Sanguíneo (2002), publicado nos Estados Unidos como Blood of the Sun, pela Milkweed Editions; em 2016 ganhou o seu segundo Jabuti pelo seu Ópera de Nãos.

Além da consagração enquanto poeta, Salgado tem uma carreira de sucesso como compositor, tendo trabalhado com artistas do jazz e da MPB, como Alcione, Ivan Lins e Paulinho da Viola. Em 2017, a Universidade Federal do Piauí (UFPI) lhe concedeu o título de Doutor Honoris Causa pela importância da sua obra para a literatura brasileira e pelos feitos de promoção da boa cultura no estado do Piauí. Em 2020, foi convidado pelo New York Times a publicar um poema  sobre “como as pessoas da região [da Amazônia] estão vivenciando as versões mais extremas dos problemas do nosso planeta”. Por essas e outras, o nome de Salgado Maranhão tem se tornado cada vez mais cotado para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.

 

Que balanço você faz da sua carreira literária nesses 45 anos de carreira, desde o lançamento de Ebulição da Escrivatura (1978) e agora com A Voz que Vem dos Poros?

Esses 45 anos de trajetória literária passaram como um relâmpago. Estive o tempo todo ocupado com alguma busca criativa  e continuo com a sensação de que há muito por fazer. Mas isso não me angustia, ao contrário, me encoraja a voar onde não for possível caminhar.

 

Como foi o processo de voltar a esses poemas antigos e organizá-los em uma ordem lógica?

Foi muito interessante rever poemas que eu não lia há muito tempo. Porque ao invés de ficar fuçando o passado, tenho fome de avançar no desconhecido. Porém, me alegrou perceber que o que faço hoje tem conexão com o que eu já fazia no início de minha carreira. Sempre tive uma obstinação pelo rigor formal, sem perder de vista a questão humanística. Essa preocupação com a forma me livrou da instrumentalização da minha poesia para servir a bandeiras ideológicas. Antes de qualquer coisa, eu trato de qualquer drama humano com o olhar da poesia. É a ética submetida aos rigores da estética.

 

capa
Livro A Voz Que Vem dos Poros, lançado pela editora Malê, em 2023

 

E como foi o seu começo na poesia? Você se lembra de quando o “bicho” da poesia te mordeu, lembra dos primeiros ímpetos para a poesia?

A poesia sempre esteve presente em minha vida, desde a mais tenra infância. Não a poesia do cânone, mas a poesia popular dos repentistas nordestinos, que tinha enorme qualidade imagética. Não eram apenas rimadores, havia vasta especulação imaginativa naqueles improvisadores. Mais tarde, quando saí da região rural do Maranhão para morar em Teresina (PI), tive acesso à poesia canônica dos grandes autores clássicos e modernos, e Fernando Pessoa me arrastou para a escrita, de onde jamais me livrei.

 

Além de poeta, você também é um notável compositor, com parcerias musicais com nomes de peso, como Alcione, Paulinho da Viola, entre muitos outros. A música e a poesia vêm do mesmo lugar ou são coisas distintas?

A poesia das canções tem muita semelhança com a do livro, por vezes até se confundem, mas não operam do mesmo modo. Murilo Mendes diz que "A poesia — como o vento — sopra onde quer". Porém, a letra de música tem o amparo da melodia para facilitar as coisas. Muitas vezes, um poema frágil funciona muito bem numa canção; o mesmo não ocorre na página em branco, onde o poema está nu com a mão no bolso. Além disso, a música é matemática, e as palavras, não; é o poeta que precisa operar o encaixe para que tudo vire uma dança de sons e sentidos em perfeita sinergia.

 

Certa vez, em uma entrevista, você afirmou que  “Poeta é quem tem no DNA a doença incurável do mistério”. O que quis dizer com isso?

O olhar de alguém que tem o dom da poesia já vem de fábrica, assemelha-se com o olhar do humorista, que percebe detalhes insólitos onde a maioria de nós não vê nada anormal. É um talento específico como, por exemplo, o de um atleta de alta performance. Todos podem praticar a poesia, mas, os Drummonds são poucos, os Fernandos Pessoa. Todos podem jogar futebol, mas quantos são os Pelés? Os Maradonas? Não se trata de privilégios, porque há que pagar em duras vivências e dedicação de uma vida inteira para que a obra corresponda ao que está na alma do poeta.

 

E o senhor já vivenciou ativamente a década de 1970, da poesia marginal, depois as décadas de 1980 e 1990, e as décadas seguintes; viu mudanças no mercado editorial e mudanças significativas da sociedade. Como você observa a cena literária hoje?

Atravessei essas últimas quatro décadas inteiramente dedicado à poesia e à convivência com os meus pares. Embora tenha um temperamento combativo em defesa das causas que acho justas, não o faço de modo deselegante, nem ofendendo pessoas. Assim, pude perceber sem parcialidade as mudanças que ocorreram no mundo da poesia, para melhor ou para pior. Para melhor foi a enorme diversidade de talentos que ocorre hoje em dia, propiciado pelo acesso à leitura, principalmente, das autoras e autores negros, que trazem uma nova cor ao caleidoscópio das nossas letras. O lado ruim é confundir queixa pessoal com poesia. Mas o próprio tempo se encarrega de fazer a devida filtragem, separando o ouro do cascalho.

 

 

Salgado Maranhão
Foto: Maurício Pokemon

 

 

Sobre essa "convivência" com seus pares, fale um pouco sobre as suas amizades no meio literário, você costuma ter trocas com os colegas ou o fazer literário é solitário?

Minha vida de relações com meus pares sempre foi muito cordial — não costumo me envolver em conflitos banais com ninguém. Deste modo, tenho muitas amizades duradouras no meio literário, entre essas, estão as do Leonardo Fróes, Edmilson de Almeida Pereira, José Inácio Vieira de Melo e Ricardo Aleixo, que considero grandes poetas e pessoas adoráveis. Poderia ainda elencar aqui tantos outros nomes de poetas de várias gerações e lugares, numa lista que não teria mais fim.

 

Embora esteja completando 70 anos, o senhor continua produzindo literatura. O que está ocupando a sua cabeça no momento em termos de poesia? Que tipo de técnica está te chamando a atenção e para qual caminho acredita que está indo a sua poesia?

Sim, eu, na real, não tenho ideia da minha idade. Tenho praticado as artes marciais chinesas durante muito tempo, e a saúde tem sido generosa com meu corpo. Quanto à questão criativa, até aqui, não sofreu qualquer revés; por vezes, sinto-me feito um cavalo fogoso querendo estrada. Agora, com esse novo livro super bem produzido pela Editora Malê, tenho todos os motivos de galopar com as palavras.

 

Você se considera parte da Geração Marginal?

Sim, me considero, em parte, da Geração Marginal (aliás, um crítico de Brasília me definiu como o filho caçula dessa Geração), porque entrei na vida literária nesse período e também porque interagi com seus principais representantes, como o Cacaso, Chacal, Geraldo Carneiro, Bernardo Vilhena, Nicolas Behr, Ana Cristina César, etc. Porém, do ponto de vista da poética, propriamente dita, já havia em mim os traços de um caminho próprio. De qualquer modo, este movimento teve um papel fundamental em realizar a ponte entre a rigidez formal daquela hora com a liberdade literária dos dias de hoje.

 

Como conheceu Torquato Neto e como ele incentivou  a sua mudança para o Rio de Janeiro? Aliás, considera a sua mudança para o Rio como um momento definidor da sua carreira?

Eu conheci Torquato Neto em Teresina, sua terra natal. Nessa época, eu morava na cidade e ele tinha ido visitar seus pais. Isso foi em junho de 1972. Acompanhei um jornalista amigo que foi fazer uma reportagem para um jornal local e ele nos recebeu com a melhor cortesia. A partir daquele encontro ficamos próximos e ainda o reencontrei umas duas ou três vezes, quando recebi sugestões preciosas que mudaram  minhas escolhas literárias e, em geral, nas artes. Nem meu nome escapou da mudança. Ele me influenciou até mesmo na minha vinda para o Rio de Janeiro (eu ia para Brasília), sugerindo que em Brasília não havia nada além de políticos. E assim o fiz e não me arrependi; o Rio de Janeiro representa, na minha história de vida, meus frutos, enquanto o Maranhão e o Piauí, minhas raízes e meu caule, sucessivamente.

 

Você ainda é terapeuta de Shiatsu e praticante do Zen? Aproveito para perguntar se a cultura oriental tem algum papel na sua poesia?

Não continuo a praticar, profissionalmente, as terapias orientais. A poesia tomou minha vida por completo. Claro, se algum amigo tem problema, dou uma ajuda. No entanto, não tenho mais tempo para oferecer consultas regulares. Viajo bastante pelo Brasil e exterior, por conta das palestras em torno de minha obra. Quanto às influências das filosofias Zen e Taoista em minha poesia, são flagrantes. Estas formas de ver o mundo e as relações humanas mudaram em mim não só meu comportamento, mas também a percepção estética. Naturalmente, o que escrevo tem alinhamento com muitas fontes, sobretudo, a influência africana e moura, via tradição provençal nordestina. Mas o Oriente me deu a disciplina formal de um samurai.