ENTREVISTA | Ricardo Corona 29/09/2023 - 12:42
O poeta encantado
Ricardo Corona conversa sobre seus “múltiplos interesses pulsantes” e a combustão que o acompanha na sua experiência de linguagem
Hiago Rizzi
No dia 13 de setembro, depois de um ano, refiz o trajeto do Centro de Curitiba até Piraquara, na região metropolitana, para encontrar o poeta Ricardo Corona. Fomos de carro do terminal até a sua casa, no Recreio da Serra, vizinha ao maior bloco remanescente da Mata Atlântica no país. Na visita anterior, falamos sobre a antologia bilíngue Outras Praias: 13 Poetas Brasileiros Emergentes (1998), organizada por ele, e a Medusa, revista cultural de destaque que circulou entre 1998 e 2000 e deu origem à editora de mesmo nome, hoje anexa à casa.
O papo agora é outro. Corona acaba de lançar dois livros pela Iluminuras, unidos em um box. Nuvens de Bolso e Morada do Vazio são publicações irmãs, mesclando haikais, haikus, tankas — gênero ainda pouco praticado no Brasil — e os inventivos haikoans. O projeto gráfico é da artista, designer e editora Eliana Borges, companheira de décadas. Juntos trabalharam na Medusa e tocam em frente a editora e ações como o programa de residência A Zero, voltado a artistas que pesquisam e produzem a publicação de artista, realizada em 2021.
A partir de Cinemaginário (1999), o poeta ganhou reconhecimento com livros como Corpo Sutil (2005) e Curare (2011), que recebeu o prêmio Petrobras e foi finalista do Jabuti. Teve obras publicadas no México, Portugal e Espanha e verteu ao português obras da chilena Cecilia Vicunã, do argentino Arturo Carrera e do belga-francês Henri Michaux. Corona é uma das atrações confirmadas para a próxima Festa Literária da Biblioteca Pública do Paraná, acompanhado por Julia Raiz.
Depois do almoço, seguimos para um grande lago que fica dentro do condomínio. Atrás de uma de suas curvas, escondida por árvores, há dois bancos de concreto entre o lago e uma estrada de chão. O sol estava alto e nos sentamos na grama. Tirei os livros da bolsa e começamos a entrevista oficialmente. Corona fala baixo, mas com firmeza, sobre os novos trabalhos e uma sucessão de encantamentos da sua trajetória poética.
Você quis que a nossa conversa fosse aqui, em frente a um lago, no Recreio da Serra. O que esse lugar significa para você?
Eliana e eu viemos para cá em 2020. É um lugar que tem sentido de recomposição, reestruturação. Estava me recuperando de um infarto e estávamos politicamente entrando em uma pandemia, e esse lugar funcionou como um porto seguro e um espaço de acolhimento para as duas coisas, o drama pessoal e coletivo. Não sei se estaria publicando esses livros se não tivesse vindo para o Recreio da Serra. Quando chegamos, senti a necessidade de conhecer ainda mais a fundo e me deparei com esse lugar. Ficava aqui por horas, com os poemas. Passou a ser um lugar especial, cúmplice.
Uma parte de Nuvens de Bolso, “Haikoans e quase mondos”, é de poemas mais etéreos. A espiritualidade influencia o seu trabalho?
Esse lugar me fez escolher dividir aqueles poemas naquela seção. Haikoans é uma palavra inventada que trabalha com a ideia de haikai e koan. Organizando o livro, acabei buscando os haikais escritos a partir de uma vivência mais espiritual, e foi esse lugar que me empurrou para escolher esses haikais. Muitos já estavam prontos, faltando pequenos ajustes, outros foram escritos aqui ou passando por aqui. Quase todos os poemas de Morada do Vazio são inéditos e mais recentes. De 2010 para cá, passei a me preocupar com escrever um livro de tankas. Mas a ideia do tanka surgiu nos anos 1990 — era muito difícil encontrar um livro de tankas, e Wilson Bueno me presenteou com um original de Pequeno Tratado de Brinquedos antes de publicar, eu nunca tinha lido nada do gênero.
Ainda que o tanka fosse menos conhecido, o Paraná tem uma tradição na poesia oriental, personificada de alguma forma na figura do Leminski. Como você entende isso?
Leminski popularizou o haikai de uma forma bacana, mas não era muito apropriado e saudável chegar muito próximo ou imitá-lo. Não só no haikai, Leminski tem uma dicção pegajosa — se imitá-lo, você vira um sub imediatamente, nisso eu pensava. Acredito que o tanka não tenha sido conhecido antes justamente por esse fenômeno marginal. Nos anos 1990 e 2000, não havia um poeta no Brasil que não escrevesse seus haikais. Tinha até aqueles que o detratavam por ser um modismo, o que eu não acredito e nunca fiz. O haikai questiona a autoridade da autoria, nasce de uma maneira coletiva. Ele vem do hokku, a forma que o mestre dava para que os haikais fossem criados pelos discípulos. Com o tempo, o mestre escolhia um discípulo para escrever um novo hokku, e surgia o diálogo do haikai no renga. Com o tempo, esse hokku foi se descolando do haikai no renga, aí surgiu o haiku. O Nuvens de Bolso é dividido em três partes para trabalhar essa tradição mais completamente. Nós, ocidentais, temos a mania de observar o haikai e vê-lo como uma forma isolada, quando na verdade ele está inserido em um movimento, um acontecimento.
Esses livros novos são, além de um reencontro com a poesia oriental, um reencontro com essa tradição?
Sim e não. Essa tradição leminskiana está esgotada, não tem mais o que fazer. Já é maravilhosa. Esse movimento não precisa de mim, mas de coisas novas. Acredito que esse livro apresenta algumas coisas novas. Os haikoans, por exemplo. Nunca vi esse abrasileiramento, nenhuma escolha tão definida de fazer haikais a partir da leitura de koans. São pequenas coisas a se observar. Estou me esforçando para compor essa tradição sem simplesmente aderí-la.
Vários poemas trazem referências a fenômenos atuais como a migração, a aids e a pandemia. Você pensa na capacidade de permanência deles?
Li um haikai de Bashô no qual ele critica o imperador. O haikai é tão lúcido, transparente, que não importa o imperador ou o império, não me preocupei com isso. Me chamou a atenção ele fazer um haikai político naquela época. Eu me preocupo, sim, com isso, mas os tankas que têm uma pegada mais política passam pelo costume. O poema sobre a aids já estava começado nos anos 1990, porque eu vivi a aids, perdi amigos. Quando estava mexendo com esses arquivos, encontrei esse tanka pela metade e estiquei com a pandemia.
O material gráfico que acompanha os livros novos pode remeter também à cultura indígena, abordada em outros trabalhos. Um dos haikais traz termos em português, japonês e guarani. Esse tema ainda é presente?
Os haikais e tankas são anteriores ao interesse pelas culturas originárias, muitos já estavam escritos e floresceram numa nova organização. Um ocidental que trabalha com formas orientais sempre vai estar deslocado. Esse deslocamento não deve ser escondido ou falseado, mas assumido. Lembro da cena [da foto da capa dos livros], nós estávamos brincando de [Yukio] Mishima, mestres japonesas. Demorei muito tempo para encontrá-la, levei para a Eliana e disse: “Essa é a foto dos livros”. Foi uma brincadeira por causa dos haikais, eu tinha 30 anos e já havia escrito parte deles. É uma foto-performance.
Como os povos originários aparecem no seu trabalho?
Em 2008, fiz um trabalho de campo em uma reserva com remanescentes xetás, na época eram sete ou oito. Conheci vários deles, especialmente Tikuein, ou José Luciano da Silva, que trabalhava no Corpo de Bombeiros, em Curitiba. Passamos a nos encontrar e um dia ele disse que tinha muita saudade da vida da aldeia, de falar a língua da infância. Ele me deu a chave para o poema. Pensei o Curare como um poema dito ao espelho, uma saudade, um reencontro com a língua. Comecei a pensar que poderia escrever um poema em direção a esse lugar e me apliquei várias práticas. Acordava de madrugada e me provocava sonambulismo; escrevia extremamente cansado, após um sono interrompido; colocava despertar, acordava forçosamente e ligava para a Joana [Corona] para conversar sobre o poema. É um livro muito verdadeiro, nesse sentido. Conhecendo esse trabalho, um dia o Douglas Diegues me convidou para fazer parte da coleção “¡Abran Karajo!”, da Yiyi Jambo Cartonera. Me senti provocado, fui visitar o arquivo do Curare e encontrei muitas anotações boas. Aí tive um sonho, com uma parteira indígena e sua filha em uma situação urbana, e imaginei um pequeno épico, o Mandrágora [2016].
Diferente do que acontece no trabalho de autores como Miguel Sanches Neto e Domingos Pellegrini, seu trabalho não parece marcado pela vivência no interior.
Eu me preocupo mais com línguas, os lugares em que tenho um interesse natural são outros. A fluidez me interessa muito mais. Me sinto paulista, porque a Eliana e meu filhos são paulistas e vivi lá muito tempo; curitibano, porque é onde vivi boa parte da minha trajetória; pato-branquense, porque nasci lá e tive uma infância que a gente carrega por toda a vida; e piraquarense: estamos num lugar escolhido por mim, de encantamento. Vivo os lugares dessa maneira. Entendo que um prosador necessita mais desse arquivo infância para inventar suas histórias, que a matéria-prima da memória seja mais rica e produtiva, que eles guardam com mais afinco. Tenho mais desprendimento.
Qual obra você considera um marco na sua carreira?
Curare. Demorei para entrar e para sair dele. O conjunto do meu trabalho não busca unidade, mas interesses múltiplos e crescentes. Também não é eclético, que são diferentes coisas paralisadas. Tenho múltiplos interesses pulsantes. E o Curare, dentro dessa rosácea, dessa coisa barroca que se abre, me marca muito pela sua experiência, tanto na linguagem como no corpo. Eu me impus uma condição corporal para escrevê-lo.
O que mudou no seu trabalho, dos anos 1990 até aqui?
A combustão é a mesma. Eu trabalho a linguagem, todo material pode ser trabalhado. Obviamente que se um poema aparece na sua frente, de onde vier, pode suscitar um estímulo tal que você vá gerar outro. Aliás, muita literatura é alimentada por outras literaturas. Como editor, acabo ruminando todo texto que passa por mim e isso repercute, de alguma maneira, na própria criação. Exceto os haikais e os tankas, porque as formas japonesas, de forma geral, estão muito ligadas aos acontecimentos da vida e da natureza, são muito menos intelectualizadas. Com o passar do tempo, percebi que deveria me preparar para receber essas formas. Hoje, caminhando com minhas cachorras ou dentro de um supermercado, pode aparecer um haikai. Anoto, mando um e-mail para mim mesmo e quando releio, um mês ou um ano depois, lembro exatamente onde estava e posso continuar o haikai. Aí tem um pequeno trabalho de linguagem, mas aquele núcleo inicial da experiência se preserva. Nunca me sentei com a intenção de escrever um haikai ou um tanka. Uma das coisas que se deve se aprender em relação a essas formas é que elas vêm de fora pra dentro.
Você e Eliana tem uma parceria de décadas, afetiva e no trabalho. Já fizeram publicações juntos, como o Tortografia, de 2003. Como é essa convivência, na poesia e nas artes?
Nós temos uma produção quieta e solitária no início. É uma questão de respeito, porque quando um artista está criando, se você não é outro artista visual, uma opinião pode atrapalhar. E o inverso é a mesma coisa, ela também não é poeta. A Eliana declara, e eu também, de minha parte, que a literatura atravessa o seu trabalho, não necessariamente com a minha presença. O Tortografia foi muito intuitivo. Eu escrevia algo e dizia: “isso serve para o nosso livro”, ela fazia um trabalho e falava também, e reunimos material por quase dez anos. Em 2014, durante a minha tradução de Retrato dos Meidosems, de Henri Michaux, criamos uma performance juntos. Ela escolheu uma das criaturas criadas por Michaux para performar enquanto eu lia o texto, na Casa Hoffmann.
E qual a sua entrada nas artes visuais?
Eu via a poesia valorizada entre os artistas visuais, pelo menos entre uma trupe, daqueles que pensam e produzem as publicações de artista. Saquei que muitos deles faziam poesia, inclusive, mas sem se preocupar com o ser ou não ser poeta. Percebi que posso pesquisar coisas sem querer ser artista visual, e comecei a produzir algumas publicações de artista. Penso um livro como um artista visual pensa seu trabalho. Isso de pensar o livro e a imagem vem de uma convivência com a Eliana, ela trouxe muita sabedoria para eu me pensar como poeta. Imagino uma instalação de um artista virtual como uma escrita, uma narrativa. Os poetas, de modo geral, veem um artista visual construindo sua obra e não conseguem imaginar uma instalação como uma escrita.
Em Corpo Sutil [2007], você dedica um poema a Jardelina da Silva, e alguns versos são falas dela. Como foi o contato entre vocês?
Ela tem tudo a ver com a minha loucura como criador. Por causa da esquizofrenia, ela vivia num mundo absolutamente livre. Nós estávamos trabalhando na primeira edição da Medusa quando o artista Rubens Pileggi ligou e falou que tinha o contato de uma mulher que estava “causando” em Bela Vista do Paraíso. Jardelina criava as próprias roupas, e quando criava queria “causar”, nas palavras dele. Eu fui para lá no fim de semana, num bate e volta. Passamos uma tarde com ela, morava numa casa pequena. Ela tinha passado pela violência do manicômio em Curitiba na década de 1970 e demonstrava um certo rancor por mim, sabendo que eu era de lá. Depois se acalmou e começou a me chamar de “meu amor”. Jardelina era uma figura doce e amorosa que não queria nada além de se expressar e mostrar sua potência para o mundo, pela oralidade e pela criação de figurinos que se desdobram em teatro, performance — sem isso estar categorizado e lucidamente compreensível. Também era muito sedutora, se manifestava em praça pública e cultos religiosos e foi presa várias vezes por isso.
Esse poema aparece primeiro no disco Ladrão de Fogo [2001], na época eu estava muito interessado na poesia falada. Quando decidi gravar os meus dois únicos CDs, já tinha em mente que Ladrão de Fogo envolveria um trabalho a partir do meu mundo e do alcance de oralidades distintas que estão perdidas na cultura popular. A Jardelina participa dele por conta disso, da poesia se manifestando nessa língua que também é sintoma de uma desorganização mental e de comportamento, que não se enquadra.
Hiago Rizzi é jornalista e atua na área da cultura, com interesse em artes visuais e poesia contemporânea. Foi colaborador do Cândido e organizou a antologia Espáduas (Telaranha, 2023), do poeta e artista paranaense Rollo de Resende (1965-1995).