ENTREVISTA | Não há vagas para leitores sensíveis 28/02/2025 - 11:45
por João Lucas Dusi
Embora tenha se encantado cedo por temas relacionados à saúde mental, o médico psiquiatra e professor universitário Ulisses Rezende Brandão – organizador da antologia de contos Escritofrenias, tema dos tópicos transcritos na sequência – demorou um bocado para realmente se sentir realizado. Leitor “tardio”, fisgado pela literatura somente quando cursava medicina, o paulista – adotado por Minas Gerais há anos – descobriu na ficção uma oportunidade de imergir em vivências e assuntos ainda distantes de sua experiência à época. A partir daí, antes mesmo de exercer sua futura profissão durante o período de residência médica e já na condição de leitor, viu-se obcecado pela ficção e buscou formas de conciliá-la com sua paixão inicial – até chegar na ideia de Escritofrenias, editada pela Madame Psicose. No conjunto de dezessete narrativas, Brandão reuniu “vários autores, cada um com sua própria dicção e obsessão, abordando diferentes condições psíquicas”, como ele mesmo define. Cada convidado – entre iniciantes e premiados, estrangeiros e experientes – recebeu um diagnóstico psiquiátrico e escreveu um conto do zero, em primeira pessoa, a fim de compor uma amorfa espécie de ambiente ficcional compartilhado e, a depender de quem lê, catártico. A obra traz produções inéditas de nomes como Rafael Gallo, Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, Luiz Bras e George Salis (norte-americano, em publicação bilíngue), entre outros. “A preocupação com a forma narrativa, capaz de representar transtornos mentais, é um dos pilares do projeto”, explica o organizador, cuja atenção à verossimilhança dos textos em relação aos diagnósticos que representam fez do conjunto um mosaico sensorial tão complexo quanto a realidade.
Gênese da “ficção psiquiátrica”
Tenho duas obsessões: literatura e psiquiatria, ou melhor, saúde mental. Antes de ser psiquiatra, precisei me formar médico. Eu tinha uns 12 anos quando descobri a profissão de psiquiatra e simplesmente cumpri o pré-requisito da medicina para atingir meu objetivo.
Tornei-me leitor de ficção durante a faculdade. Na infância e adolescência, não lia. Sempre achei bonito ver pessoas lendo, mas, no início, sentia mais vontade de ter livros do que de lê-los. Essa é uma memória forte da minha pré-adolescência. Na graduação, no entanto, a literatura se tornou uma companhia essencial.
As narrativas que falavam sobre a condição humana, sobre sofrimentos que eu desconhecia, com vozes estranhas à minha própria experiência, serviam como ponte: um modo de matar a vontade de ser psiquiatra enquanto ainda era estudante. Foi uma preparação antes de pisar na psiquiatria, de fato, durante a residência médica.
Mais tarde, como psiquiatra, senti falta de uma ligação específica entre as duas áreas. Eu era leitor e psiquiatra, mas não sabia exatamente como conciliar essas abordagens. Tentei produzir alguns textos, buscando unir meu olhar sobre os transtornos mentais com a literatura, no que surgiu a ideia da antologia Escritofrenias. Reunir vários autores, cada um com sua própria dicção e obsessão, abordando diferentes condições psíquicas, me pareceu a forma ideal de criar uma “ficção psiquiátrica”.
A polifonia desse conjunto reflete a natureza da clínica psiquiátrica: são pessoas diferentes, cada uma contando suas dores do seu jeito. Foi o melhor modo de contemplar minhas duas paixões em um só projeto.
O médico e o leitor
Separar os dois é um exercício difícil. Cada autor da antologia teve um entendimento específico sobre o diagnóstico que escolheu, baseado em sua própria pesquisa; ao ler o conteúdo, tendo entendimento enquanto psiquiatra, meu olhar acabou sendo hiper-real: estou acostumado ao diagnóstico e à intervenção terapêutica. Em minha profissão, acabo me tornando personagem na narrativa dos meus pacientes. Um coautor de suas histórias.
Na literatura, por outro lado, devo ser apenas leitor. Isso exige certo distanciamento: não posso ser psiquiatra demais na leitura. Para ser sincero, evito ao máximo ficções que tratam diretamente de psiquiatria. Via de regra, me desagradam.
Vejo na produção contemporânea uma obsessão pelo diagnóstico; muitas vezes, representado de forma panfletária. Do ponto de vista estético, a abordagem é frequentemente brega e piegas. Já do ponto de vista técnico, simplesmente errada. Por isso, é comum que esse tipo de obra me desagrade enquanto leitor e psiquiatra. Talvez a antologia seja uma resposta a essa literatura que não quero mais consumir nem ver sendo produzida.
Curadoria
A seleção dos participantes teve como principal critério nosso apreço pessoal, meu e do editor da Madame Psicose, enquanto leitores. Não buscamos finalistas ou vencedores de grandes prêmios, simplesmente, nem aproveitamos algum tipo de hype literário. Nunca foi a intenção. E continua não sendo.
O foco foi reunir escritores que admiramos por diversos motivos. Nisso, claro que houve desafios, especialmente no engajamento e nas respostas. Tivemos variadas reações de diferentes convidados, mas os que realmente queríamos e aceitaram participar fizeram um trabalho impressionante.
Nomes internacionais
Por outro lado, se não estávamos preocupados em convidar somente vencedores de prêmios, conseguimos algo que o público brasileiro adora: participações estrangeiras. – Mas, mesmo nesse ponto, seguimos o mesmo critério. Selecionamos escritores que têm um projeto estético rico e estilos marcantes.
Dois contos serão veiculados de forma bilíngue. Isso é um grande ganho, tanto pela questão do trabalho de linguagem quanto pela possibilidade de cativar o leitor que aprecia ficção no idioma original.
Além disso, trata-se de nomes ainda pouco conhecidos do público nacional, no que a antologia também acaba servindo para abrir portas. São autores impressionantes, que mereciam já ter sido publicados aqui. É um privilégio apresentar essas vozes inéditas.
Verossimilhança e recepção
A preocupação com a verossimilhança dos contos em relação aos diagnósticos atribuídos a cada autor esteve sempre presente na construção da antologia. No entanto, não me preocupo muito com a recepção do conjunto entre os profissionais da saúde mental: são os que mais devem estar preparados para lidar com qualquer tipo de discurso. O psicólogo ou psiquiatra habituado a ouvir narrativas de seus pacientes não deveria se abalar com literatura de ficção. Se há algo que a psiquiatria ensina, afinal, é que o inesperado faz parte da rotina.
Agora, acredito na possibilidade de um fator especialmente interessante para meus pares: o jogo narrativo presente no projeto. Tirando os autores e demais envolvidos na produção, ninguém sabe qual diagnóstico cada personagem possui. Isso torna a experiência instigante e enriquecedora.
De qualquer forma, espero que o livro não seja recebido com maus olhos. Não conto com leitores sensíveis ao extremo no meio da saúde mental. Mas, claro, posso estar enganado.
Representação e espectro
Ainda sobre a verossimilhança: na imensa maioria dos casos, não houve distorções significativas por parte dos participantes. Nesse contexto, é difícil afirmar uma ideia de “erro”, pois qualquer transtorno mental opera dentro de um espectro. Podemos estar falando de um paciente que, apesar do diagnóstico, segue sua vida normalmente, enquanto outro está completamente incapacitado. A amplitude e a intensidade variam tanto que a noção de “ideia errada” beira o impossível.
Potencial catártico
A antologia pode ter um potencial catártico para alguns leitores, mas não foi concebida com essa obrigação. Alguns textos podem ser impactantes para quem vivencia experiências semelhantes às narradas; para outros, não.
A seleção dos nomes e diagnósticos abordados foi feita com base na diversidade. Por regra, cada narrador carrega uma síndrome ou psicopatologia diferente, mas a execução varia. Há histórias contadas pelas vítimas e relatos dos algozes.
O livro transita entre diferentes tonalidades afetivas. Algumas histórias são violentas, outras melancólicas. Há textos de humor e até comédia. A antologia não é sobre tristeza, nem raiva. Dentro do universo da psiquiatria, sintomas podem gerar expressões artísticas muito distintas.
Por isso, o potencial catártico existe, mas não é imposto. A catarse pode surgir para alguns leitores enquanto, para outros, a experiência será estética ou reflexiva. Essa multiplicidade de recepções é uma das maiores conquistas do projeto.
Ultraviolência?
Uma peculiaridade do conjunto me chamou a atenção: a presença marcante da violência. Os nomes convidados, leigos na área da saúde mental, criaram muitos episódios violentos. Em algumas histórias, a violência se apresenta – no desfecho, normalmente – de maneiras distintas: sofrida ou infligida, autodirigida ou heterodirigida.
Em minhas primeiras impressões, a questão apareceu com tanta força que fiquei preocupado. Havia um risco de que a antologia transmitisse a mensagem errônea de que transtornos mentais são sinônimos de violência. Definitivamente, não é o objetivo.
Felizmente, conforme os textos foram chegando, caminhos diversos se apresentaram. Há os que chocam pela violência, mas outros extremamente emocionantes e até hilários. No fim, foi mais um susto inicial do que uma tendência geral.
O título: Escritofrenias
Desde o início, queria um neologismo como título. Tenho uma verdadeira obsessão por esse fenômeno linguístico: mantenho documentos, no celular e no computador, com novas palavras que me ocorrem. Quem estiver lendo esta entrevista não poderá ver o cenário em que estou agora, mas há um pequeno James Joyce atrás de mim, já na fase de Finnegans Wake (1939).
Mesmo decidido a respeito do nome, o processo de escolha demorou. Ao me surgir, Escritofrenias pareceu perfeito devido à homofonia com um diagnóstico amplamente conhecido, a esquizofrenia, ao mesmo tempo em que se combina com “escrita”. Modéstia à parte, é um ótimo neologismo para sintetizar a proposta do livro.
Forma e conteúdo
A necessidade de que a forma do conto dialogasse com o conteúdo foi fundamental: não seria suficiente se apenas sugerissem os sintomas e o diagnóstico. Isso porque, na vida real, a percepção de um transtorno mental se dá exatamente a partir dessa junção.
O instrumento do psiquiatra é a linguagem. O silêncio diz muito, o grito também. O paciente não responder o que lhe foi perguntado é, por si só, uma resposta com um significado absoluto. A análise da mente atravessa a da linguagem. E, ao falar em mente, refiro-me tanto ao pensamento quanto ao sentimento.
Nos contos, o ritmo da fala pode ser traduzido pela pontuação. A fuga de ideias ou a letargia de um discurso pode ser expressa na estrutura. A escolha e a correção das palavras revelam camadas de significado. A antologia, assim, tem a linguagem como um de seus temas centrais. A preocupação com a forma narrativa, capaz de representar transtornos mentais, é um dos pilares do projeto.
Até mesmo as produções com discursos mais convencionais dialogam com essa proposta, já que a execução linear pode refletir uma psicopatologia menos gritante. Forma, discurso e até a disposição do conteúdo na página foram elementos levados em consideração, como uma espécie de exame de estado mental dos textos em si.
Na contramão da mesmice
O diferencial da antologia vem de alguns méritos estruturais. Partimos de diretrizes muito específicas, sim, mas sem intenção de restringir a criatividade dos participantes. Pelo contrário, buscamos estimulá-los ao apontar um Norte com amplo horizonte a ser explorado.
A temática, por si só, tem um fascínio universal. Não é preciso ser psiquiatra ou psicólogo para se interessar por transtornos mentais. Pelas nuances dos afetos e da consciência. É um assunto que pode surgir em qualquer ambiente – num restaurante, numa mesa de bar ou na faculdade, independentemente do curso. Existe algo quase químico no apelo desse tema.
Além da premissa cativante, miramos na diversidade estilística. Não impusemos experimentalismos, mas encorajamos a fuga do clichê, o que considero uma grande contribuição para a literatura nacional. Há uma tendência atual pela produção excessivamente realista, com abordagens limitadas e discursos reciclados, tanto em termos temáticos quanto formais. Isso não se aplica a todos, claro, mas a uma parcela expressiva, principalmente entre nomes celebrados.
A antologia, na contramão disso tudo, propõe um enfoque que a literatura brasileira contemporânea parece evitar. O trabalho com a linguagem, por exemplo, é uma contribuição substancial. Além disso, há o esforço de trazer à tona vozes ainda submersas, de um modo injustificável, num meio que negligencia sobretudo as mais jovens. Não que a mídia tenha obrigação de promovê-las, mas a lacuna é evidente.
Fascínio pelo distúrbio
O fascínio pela psiquiatria me parece inescapável porque essa é, ao mesmo tempo, a questão mais antiga da medicina e da experiência humana. Hoje, conseguimos estabelecer diagnósticos com critérios específicos que delimitam episódios, mas a verdade é que os transtornos e sintomas sempre existiram. Só não tinham os mesmos nomes de agora.
O crescente interesse pelo assunto se deve à ampliação do acesso à informação, ao olhar mais atento da comunidade científica e ao maior espaço dado pela mídia. As pessoas falam sobre isso com mais precisão, mas o tema sempre esteve presente.
Se pensarmos nos transtornos mentais sob um olhar estritamente médico, qualquer leitor que pegar a antologia conhecerá alguém que já passou por determinada situação narrada ou se identificará, ele mesmo, com alguma das experiências de sofrimento psíquico.
É praticamente impossível encontrar alguém que nunca tenha ouvido falar desses temas, que não tenha um amigo, parente ou colega afetado por alguma condição mental. O apelo, então, vem desta prevalência massacrante: trata-se de uma ainda incompreendida realidade cotidiana.
Detetives selvagens
A proposta da antologia, ao não revelar os diagnósticos atribuídos a cada participante, tem um viés detetivesco: permite ao leitor se envolver num jogo interpretativo. No cenário brasileiro, onde a leitura é escassa e a literatura costuma ser relegada ao último plano, essa estratégia pode parecer ousada. Mas não vejo assim.
O motivo é simples: os contos operam em múltiplos níveis de leitura. Para profissionais da saúde mental, o livro pode funcionar quase como um compêndio lúdico, um estudo de casos narrados com sofisticação literária. Quem quiser entrar no jogo de investigação diagnóstica pode fazê-lo.
Antes de tudo, porém, o objetivo foi reunir boas histórias. Identificar o diagnóstico representado pode ser um elemento adicional, mas não é requisito. Até porque, por exemplo, é possível reduzir grandes clássicos da literatura mundial em uma sinopse de um parágrafo, o que não significa compreendê-los. A experiência literária é sempre plural: dois leitores de um mesmo livro, no fundo, leem dois livros diferentes. Em Escritofrenias, o jogo é possível porque existe o leitor que joga, sem excluir quem busca apenas uma boa narrativa.
Absurdo palpável
Se é que algumas narrativas assumiram um tom carnavalesco, hiperbólico ou exagerado, é importante destacar: a própria realidade pode ser hiperbólica. Um paciente pode vivenciar um episódio tão intenso a ponto de parecer caricato e, ainda assim, ser absolutamente real. O absurdo pode acontecer em tempo real, e há momentos em que conseguimos tocá-lo.
Não vejo o exagero na contramão da verdade. E acredito que os leitores mais atentos perceberão: a antologia não se propõe a oferecer retratos definitivos ou totalizantes. Cada autor interpreta um transtorno à sua maneira, o que é muito diferente de afirmar: “Se quer entender um diagnóstico, leia tal conto”. Não funciona assim.
Se colocarmos dez pacientes em sequência, todos com o mesmo diagnóstico, a experiência de consulta com cada um deles será radicalmente distinta. Suas vidas serão completamente diferentes; as manifestações, singulares. A literatura segue a mesma lógica: em uma antologia, a ideia é justamente reunir múltiplas visões. Se fosse um livro escrito por um único autor, teríamos impressões unilaterais sobre cada transtorno. Não é o caso. Estamos lidando com um projeto polifônico, assim como a psiquiatria. Assim como a realidade.
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João Lucas Dusi é escritor e editor, com longas passagens pelos jornais de literatura Cândido e Rascunho. Publicou o romance O diabo na rua (2022) e os contos de O grito da borboleta (2019). Pela Kotter, editou mais de 70 títulos e está à frente da Madame Psicose desde 2023. Vive em Curitiba (PR).