ENTREVISTA | Marília Garcia 31/05/2023 - 10:05

Raízes que ecoam

A poeta Marília Garcia fala sobre seu novo livro Expedição: Nebulosa, suas memórias e o futuro da América Latina

 

marília
Foto: Renato Parada

 

 

por Luiz Felipe Cunha


No dicionário, a palavra “expedição”, para além de viagem, é sinônimo de investigação. Em Expedição: Nebulosa (Companhia das Letras), novo livro de Marília Garcia, a poeta vasculha os meandros de suas memórias, em um movimento de vai-e-vem do pensamento: uma hora estamos em Florianópolis observando uma arraia derretendo ao sol e em outro momento estamos em um bairro de São Paulo, olhando as raízes de árvores centenárias. E tal qual as raízes que se afundam na terra em busca de nutrientes, os poemas de Marília se afundam no livro à procura da luz, partem de um tema específico, como o tempo, por exemplo, e se ramificam em vários outros assuntos diferentes — fruto da verve ensaísta da autora. Embora o poema mais antigo tenha dez anos, o maior volume de sua produção se deu entre 2018 e 2019, período de grandes acontecimentos na vida da poeta, como a perda de um amigo, a gravidez, o luto pela mãe, sem contar a pandemia. Eventos que a fizeram ressignificar a “nebulosa” do título, como explica na entrevista.

Logo no início da conversa, Marília se mostrou feliz e comentou que, de certa forma, o Cândido faz parte da história do seu novo livro — alguns poemas apareceram antes na edição nº 9 da revista Helena, editada pela Biblioteca Pública do Paraná entre 2012 e 2019, incluindo “gêmeos irlandeses” e o próprio “expedição nebulosa”, disponíveis para leitura aqui. Ela também falou sobre o processo de escrita e edição do livro, assim como algumas referências poéticas que aparecem durante a leitura.

 

Percebi em seu Instagram que recentemente você lançou seu novo livro na Argentina. Como foi a viagem e o lançamento em outro país?

Fui a Buenos Aires para a Feria del Libro, que é uma grande feira anual, igual a Bienal, e esse ano fui convidada para um festival de poesia que aconteceu dentro da Feira. E a editora Salta el Pez, que já tinha publicado Paris Não tem Centro, estava traduzindo o meu novo livro na Argentina, mas não sabia uma data de lançamento, até que apareceu essa oportunidade e a editora fechou a edição para lançar durante a minha viagem. E foi tudo ótimo! Deu para lançar o livro e ainda participar da Feira. O tradutor é o Geraldo Jorge, um poeta que conheci em Buenos Aires há muitos anos. Foi muito especial poder fazer o lançamento lá, além do fato de ser a primeira viagem que faço em, sei lá, seis anos, por conta da pandemia, da gravidez, minha filha… Enfim, estava há muitos anos sem sair, então essa viagem foi especial em muitos sentidos.
 

Quero aproveitar a ocasião para agradecer pela ótima indicação de disco no poema “os meus amigos são um barato”, que faz referência ao álbum de mesmo nome lançado em 1977 pela cantora Nara Leão. Como esse disco chegou até você e por que trazê-lo em seu novo livro?

Meus pais ouviam bastante música em casa quando eu era criança. E esse é um disco que escutei muito, desde sempre. Não sei bem o porquê, mas durante a pandemia esse álbum voltou para mim — é algo que eu tinha guardado na memória. Escrevi esse poema por encomenda do jornal O Globo. Eram os primeiros meses da pandemia, todos estavam isolados em casa, e o Bolívar [Torres], que estava fazendo uma matéria sobre esse período, pediu para alguns poetas contemporâneos um poema sobre aquela experiência. Naquele momento, eu estava ouvindo muito o disco da Nara e pensei em fazer um poema que jogasse com a ideia de convidar os amigos, um poema escrito por amigos, de certa maneira — pois o disco da Nara é feito só com canções alheias. Então pedi para que os meus amigos me enviassem um objeto e um comentário, e escrevi um poema a partir dessas impressões deles.
 

Em 2021, você comentou que não estava conseguindo escrever durante a pandemia e que só estava mexendo em poemas pontuais de um projeto de livro. Já se tratava do Expedição: Nebulosa? De qual período e de que momento de sua vida são os poemas desse livro?

Realmente, eu estava muito sobrecarregada e não consegui escrever muito. O poema mais antigo, “praia dos ingleses”, foi escrito em 2014 e fala sobre as memórias da infância — cheguei a publicar outros livros depois, mas é um poema tão pessoal que achei que não cabia em nenhum outro lugar até então. Esse é o mais antigo. Depois, são os poemas de 2018 e 2019 (vários são desse período), e algumas poucas coisas de 2020. E em 2021, quando já tinha bastante volume, quase todo o livro, comecei a trabalhar neles. Mas foi nesse momento que a minha mãe adoeceu e faleceu. Depois disso, ainda escrevi alguns poemas e tive um segundo trabalho — acho que tem um momento em que se escreve os poemas, e depois tem o momento em que se escreve o livro: pensa em como reunir os poemas, qual poema entra e qual não entra, qual vai ao lado de qual. Durante a pandemia, vivi um luto pessoal intenso, mas também um luto coletivo pelo momento que todos estavam passando. Quando dei uma segunda mão em cima dos poemas, aí se deu a presença da minha mãe e a nebulosa que já existia ao longo do livro apareceu de outra maneira, conforme fui os retrabalhando. Para resumir: o poema mais antigo é de 2014 e o livro está pronto desde o começo deste ano, já tem um ano do processo de edição. 
 

E imagino que ter uma poeta do calibre da Alice Sant’Anna como editora deve ter as suas vantagens.

Sim, muitas. Primeiro que ela também é uma super editora de muitos poetas e isso, por si só, já é incrível. Uma editora-poeta tem um tipo de sensibilidade muito apurada. Eu a conheço há bastante tempo, ela lia os meus livros antes de ser minha editora, já havia uma troca mútua. Ela também editou o Câmera Lenta [2017]. Esse novo [Expedição: Nebulosa] eu já mandei tal e qual, nesse formato, só a parte “p.s.” que adicionei depois. Mas ela fez muitos comentários pontuais, sugestões em versos específicos, trocar uma palavra por outra, cortar os excessos, pensar em padronização. Foi um trabalho minucioso, nos detalhes — o trabalho dela e da Carolina, que cuidou da edição de texto especificamente. No fim, o poema é isso: ele vive dos detalhes. Estamos falando do livro como um todo, mas ele também é feito dessas pequenas coisas. Nesse livro, as colocações da Alice foram bem pontuais. O livro só existe porque há várias observações certeiras que formam o todo.

 
E o livro já tinha esse nome desde o início? Qual a história e o motivo do nome?

Há dois poemas no livro com esse título “Expedição: nebulosa”. Um deles é mais antigo, bem curtinho, e eu tinha um rascunho dele quando me convidaram para publicar em uma revista portuguesa que publica sempre um poeta e um artista visual. Eu chamei o Victor Heringer — que foi um poeta e artista que faleceu super jovem, em 2018, e que aparece no meu livro em alguns outros momentos — para fazer uma intervenção gráfico-visual, e publicamos juntos, o meu poema com o trabalho dele. Quando fez um ano da sua morte, me convidaram para falar no serrote ao vivo, que é um festival da revista serrote, onde o convidado faz uma performance de um texto. Para essa apresentação, escrevi um texto chamado “Expedição nebulosa”, em homenagem ao Victor, embora tenham outras coisas que vão atravessando o texto, como a questão de morar fora, a relação entre Rio e São Paulo. Fiquei bastante em dúvida a respeito do título quando fechei o livro, mas de certa forma é um poema importante dentro da obra. E para além disso, vários outros poemas trabalham com a ideia da expedição, do caminhar, do sair procurando alguma coisa, mas também uma expedição na linguagem, de explorar a linguagem literária, de pensar e especular. E essa expedição é nebulosa pelos tempos em que a gente vive. De certa forma, essa imagem traz uma indeterminação, uma indefinição que nos rondou e ainda nos ronda. O livro tenta fazer essa expedição em busca de tentar entender essa nuvem de fumaça.
 

A presença do Victor Heringer nos poemas foi uma surpresa durante a leitura, não sabia que vocês se conheciam. Como isso aconteceu?

Nos conhecemos quando ainda morávamos no Rio, por meio de amigos em comum. Eu era muito amiga do Ismar Tirelli Neto e o Victor também. Nessa mesma época, ele começou a participar de leituras e logo depois lançou seu primeiro livro, Automatógrafo. Em 2012, ele também escreveu um trabalho sobre o meu livro Engano Geográfico, lembro desse momento, ele mandou o texto e passamos a conversar. No ano seguinte, me mudei para São Paulo e dois meses depois ele também. Por sermos do Rio e os dois se mudarem para a mesma cidade na mesma época, acabamos nos aproximando muito.
 

Há muitas memórias no livro e reflexões sobre o ato de relembrar. O que te levou a abordar esse tema?

Em outros livros eu tinha uma ideia programada e uma intenção muito clara do que queria fazer. Nesse novo, não. Mas depois do nascimento da minha filha, vieram vários poemas de caráter mais memorialístico, memórias da minha infância e da dela. Há nisso uma mistura de passado e presente.
 

E você consegue dizer qual a sua memória mais antiga?

Que pergunta difícil… Tenho memória de quando meu irmão nasceu, eu tinha 3 anos e lembro de estar com a minha avó, que é de Lages, no interior de Santa Catarina. Também tenho outras memórias com a minha avó em Florianópolis, mas que não sei definir muito bem, nem determinar no tempo, acho que são memórias mais antigas ainda, de antes do nascimento do meu irmão.

 

Marília Garcia
Foto: Renato Parada

 

Antes de ser livro, o Expedição: Nebulosa nasceu como uma performance, e não é a primeira vez que isso acontece. Como você enxerga esses dois formatos? O que reverbera mais em um do que no outro? 

A primeira vez que fiz esse formato de apresentação foi uma vez que me pediram para dar um depoimento sobre a minha poesia e achei muito difícil preparar essa fala, pois tinha a sensação de que qualquer coisa que eu falasse iria soar como uma paráfrase sobre o que é o poema. Inicialmente, tentei fazer um depoimento por escrito, mas depois optei por escrever algo que tivesse um ritmo e elementos do poema e que também fosse uma espécie de depoimento. E claro, daí fui caminhando para o ensaio. Nessa primeira experiência não tinha nenhuma imagem. Depois, aos poucos, comecei a inserir algumas e passei a escrever com as imagens (elas transformam e determinam o texto). Eu gosto do formato da performance, eu até prefiro. Ele é feito para aquela situação específica com as imagens, as pessoas ao vivo, a fala. Mas acho que vale a pena, muitas vezes, que eles estejam no livro, então eu também mexo no texto para caber nesse formato. É o meu quarto livro em que aparecem essas performances: Teste de Resistores, que foi esse primeiro texto, depois Câmera Lenta, o Parque das Ruínas, e esse novo tem duas dessas apresentações que, acredito, compõe muito bem o livro.
 

Quando começa um poema, você sente a necessidade de finalizá-lo ou alguns deles ficam pelo caminho?

Tem poemas que ficam pelo caminho. E tem poemas que escrevo, mas só retomo e finalizo anos depois. Por exemplo, o primeiro poema do livro, “história natural”, eu fiz uma versão inicial dele e publiquei no site da Companhias das Letras, mas só três anos depois cheguei na versão que foi para o livro. E tem poemas que se perdem com o tempo mesmo e vão parar em lugar nenhum.
 

Tem algum poema que veio como uma iluminação? Daqueles que parecem se escrever sozinhos?

Às vezes sim, e é maravilhoso quando acontece. Se fizesse isso, eu diria que sou poeta mesmo, realmente, de verdade [risos]. Os poemas "assim se diz está chovendo” e "gêmeos irlandeses” são um desses que escrevi de uma só vez.
 

Na parte do livro “então descemos para o centro da terra”, você apresenta uma distinção entre elegia clássica e elegia inversa, a primeira como sendo um modo de o sujeito vasculhar o passado e achar elementos para poder se lamentar e a outra como o ato de invocar a memória e trazer algum elemento do passado para o presente, em uma tentativa de refazê-lo. Em qual das duas definições você enxerga o seu livro?

O que eu gostaria de fazer é uma elegia inversa, que é essa tentativa de trazer o passado para o presente. Para isso, cito o poeta Emmanuel Hocquard, que explica que existe uma poesia mais tradicional, mais clássica, que fala de um lugar comum da poesia, que é algo mais sentimental, sobre lamentar o tempo perdido. Trouxe essa diferença para dizer que gostaria de  fazer uma elegía inversa e resgatar o passado — passado pessoal, pois há muita coisa pessoal minha no livro, mas também o passado da história social em que estamos vivendo e vivemos nos últimos anos — para, pelo menos, tentar entender o presente e não lamentar que o perdemos. Na verdade, nosso passado é um passado difícil demais, acho que não tem muita coisa para lamentar, tem que recuperar para refazer o presente em direção ao futuro. Nesse sentido, minha tentativa foi buscar uma elegia inversa.
 

Outro escritor que você referencia é o Cacaso, no poema “história natural”. Como você definiria a América Latina hoje e as projeções para o futuro?

O poema do Cacaso é de 1974, ele escreveu em plena Ditadura Militar, e é um poema lindo em que ele olha para o filho e reconhece os traços da mãe dele e da mãe do menino, percebendo a herança genética, ao mesmo tempo em que tenta imaginar a América Latina do futuro. Olhando para esse poema hoje, vejo que a América Latina do futuro dele é o nosso tempo atual, e são tempos difíceis de definir, não sei dizer se mudou tanto de lá para cá. Acho que mudou, mas a gente viveu um período complicado. Esse poema é de 2019 e continuo me sentindo um pouco em um túnel de fumaça. Estamos em um momento um pouco melhor agora do que foram esses últimos anos  (não só por causa da pandemia). Acho que conseguimos ver uma luz no fim desse túnel. Nessa América Latina, pensamos que os problemas do Brasil são específicos, mas na verdade têm muito a ver. E não sei dizer se caminhamos tanto.