ENTREVISTA | Leonardo Marona 31/05/2021 - 14:01

Dos dois lados do balcão

Autor dos recentes Não Vale Morrer e Baby Buda, Leonardo Marona fala sobre seu cotidiano como livreiro e escritor

Luiz Felipe Leprevost

 

Leonardo Marona nasceu em Porto Alegre (RS), em 1982. Autor prolífico, estreou na literatura em 2009, com os poemas de Pequenas Biografias Não-autorizadas. Desde então, seguiram-se mais cinco títulos de poesia — L’amore, Óleo das Horas Dormidas, Herói de Atari, Uma Baronesa às Quatro da Madrugada e Baby Buda, que acaba de ser lançado pela Corsário Satã —, o livro de contos Conversa com Leões e os romances Cossacos Gentis, Dr. Krauss e Não Vale Morrer, pela editora Macondo.

Além de escritor, Marona é livreiro na Livraria da Travessa, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Lá ele mantém atualizado aquilo que chama de “o cubo mágico da poesia independente”, abrindo espaço para editoras pequenas e autores de fora do eixo ou iniciantes. Na Travessa, até ser impossibilitado pela pandemia, Marona também produzia o evento Poetas de Dois Mundos, convidando escritores de várias gerações e localidades do país para dialogar e ler em público os seus poemas.

Intimamente ligada a uma ideia de mistério inaugural, a escrita de Marona se apresenta com honestidade e passa a impressão de uma entrega que se dá por descargas emocionais, em jorro. É a literatura de alguém que escreve para sobreviver, transformar os traumas, atravessar os anos alucinados e deixá-los para trás, em busca de paz de espírito. Como diz seu alter ego Leon Trapani em Não Vale Morrer: “Não há outra opção melhor à poesia que a conflagração de si para si. E saber que, apesar de bem guiado, o caminho do santo não será recompensado de alegrias finais, pois o santo pobre e esquecido é o santo verdadeiro, que rompeu com as loas e profundamente concebeu sua própria vida como experiência radical de escolhas difíceis e temerosas”. Na entrevista a seguir, o autor fala sobre seus lançamentos mais recentes — o romance Não Vale Morrer e os poemas de Baby Buda — e o cotidiano, literalmente, nos “dois lados do balcão”.

 

Nos últimos 12 anos você publicou seis livros de poesia e quatro de prosa — entre eles o romance Não Vale Morrer, lançado meses atrás. Agora, recém-saídos do forno, chegam ao circuito os poemas de Baby Buda. Prosa e poesia têm impulsos de naturezas diferentes que mobilizam a sua escrita ou tudo se dá num único fluxo processual?

Hoje em dia, olhando para trás, para esse pouco “atrás” que tenho atrás de mim, tenho a impressão nítida de que o medo de morrer subitamente, que me acompanha desde criança, me levou a escrever tudo rápido, com ansiedade crônica, o que fez com que alguns de meus livros pareçam (ao menos a mim) incompletos, inacabados, como, por exemplo, o livro do manicômio Óleo das Horas Dormidas, que é uma espécie de jaca podre, um livro inchado, como aqueles tempos extremamente alquímicos. Não sei muito bem explicar, claro, mas é como se cada livro representasse algo, mesmo que indiretamente, em termos de estado de espírito, que me movimenta na vida em determinado momento. Talvez eu tenha sofrido muitas mudanças, ainda que nem todas radicais como esta última (não beber), de inclinação à vida, se posso dizer assim, e cada livro, nesses 12 anos (com mais um inédito, Comunista FDP, um pequeno livro de poemas que vai sair ainda neste ano pela Garupa Edições, daqui do Rio de Janeiro, serão 12 livros em 12 anos, se não me engano), é como uma troca de pele anual, uma pele de cobra que se renova e modifica periodicamente, e fica registrada em trama narrativa ou poema, a depender do estado de espírito. A prosa é algo que me alegra fazer. A poesia me entristece, ao mesmo tempo em que me alivia, como uma espécie de droga. Pelas contas, em termos de livros publicados, poderia dizer que fui mais triste do que feliz.

 

Mesmo escrevendo e publicando bastante, você lançou apenas um volume de contos, Conversa com Leões (Oito e Meio, 2012). Coincidentemente, lendo entrevistas suas, me deparei com uma em que você diz que o conto é o gênero literário mais difícil. Para você, escrever contos seria como “uma tourada que tem sempre sua dose de náusea”. Por que o conto é tão enjoado?

Li poucos contos e, raras vezes, um contista por inteiro, mas tudo que li foi o que me ensinou. Basicamente todo Hemingway, que era um mestre no gênero. Cortázar, que li quase todo, Borges, de quem amo os contos gauchos, Bolaño, que estou longe de ter lido inteiro, mas de quem li dois dos melhores livros de contos da minha vida (Putas Assassinas e Chamadas Telefônica), Tchekov, talvez o maior de todos, além de um pouco de Lawrence, Victor Giudice, Caio Fernando, um pouco de Clarice Lispector, mestra no gênero, como Silvina Ocampo, que dava aula ao Borges e bancava aquele povo todo. Bastante Dalton Trevisan, Raymond Carver, Murilo Rubião, além do Allan Poe inteiro, estes três últimos com uma obra, para sorte do diletante adicto, curta em comparação com outros autores, mas toda genial. Foi com eles que aprendi o que significa tatuar com a escrita, que é para mim a diferença do conto para os demais gêneros. Tanto para escrever quanto para ler um conto, deve haver uma espécie generosa de dor e surpresa, uma suspensão dolorida com gostosura, como a agulha perfurando a pele para criar uma beleza imediata. O conto é um gênero cardíaco, como os 100 metros rasos. Uma explosão e uma rede que precisa ser infalível logo nas primeiras palavras. Dificilmente, perceba, um conto que começa mal pode ser bom. E já li inúmeros ótimos romances e poemas que começam de forma medíocre. É o punch de que fala Cortázar, a Eureka de Allan Poe. A tentativa de encaixotar um leitor para o prazer sórdido do mesmo.

 

Mesmo nauseado, mesmo que, tanto na sua prosa quanto na poesia, apareçam cargas de desencanto e desespero, fica a nós leitores a impressão de que se diverte bastante escrevendo. Especialmente na sua ficção, há um certo tom picaresco. O que te ajuda a resistir? O que te inspira a viver?

Preciso lembrar aqui de um autor que dá uma aula no quesito “picaresco”. Ou melhor, dois autores, dois autores muito estranhos e únicos, que tiveram provavelmente vidas estranhíssimas: Gombrowicz e Hrabal. Aprendi muito com eles sobre como descrever a tragédia de forma divertida. Como Bolaño na Literatura Nazi na América. Ou Bukowski em Misto-Quente. Ou Aglaja Veteranyl, que Rita [Isadora Pessoa, companheira de Marona e também poeta] me apresentou e também dá uma aula disso que, no meu caso, persigo e sei que se trata de uma habilidade adquirida com a capacidade de rir de si próprio e, acima de tudo, da tragicomédia ininterrupta que é a vida. Mesmo quando eu era um autor muito mais mal-humorado, ainda assim ali estava um rabinho de ridículo, que é a própria impressão que certos autores (os que mais me interessam) têm da existência. Como dizia Maura Lopes Cançado (e que roubei para transformar num haikai): “grudar no traseiro / das coisas mais sagradas / um rabinho cômico”.

 

Você frequenta o A.A. (Alcoólicos Anônimos). Está sem beber há quanto tempo? O que mudou em seu trabalho literário dos tempos em que vivia estimulado pelo álcool para os dias de hoje?

Frequento o A.A. desde 16 de janeiro de 2016, mas estou sem beber apenas há três anos, oito meses e 11 dias, portanto, desde 3 de setembro de 2017. Primeiro me deu um pânico monstruoso de fazer qualquer coisa libidinal sem beber, e eu considero escrever a coisa mais libidinal que posso fazer, na frente, inclusive, do sexo (mas nem sempre foi assim). Minha segunda preocupação era me tornar uma espécie de carola, um pregador pela sobriedade, o que, vez por outra, me pego sendo, não sem alguma vergonha. Finalmente: dissociar o risco de vida insano ao qual eu me inclinava da ideia fantasiosa de uma “aventura literária”. Isso foi fundamental para seguir escrevendo. E a vantagem de você mudar completamente de vida é que, sendo um escritor, pode aproveitar, com o tempo, para ver as coisas por um outro prisma, mais lentamente, mais humildemente. Isso não chegou a mudar meu estilo de prosa ou poesia, mas mudou meus temas e a forma como penso. Mudou o sentido das minhas palavras e, acima de tudo, o sentido do meu medo. Que não é mais de morrer jovem, mas de viver tempo demais. Isso ainda é um problema particular da abstinência. Talvez por isso eu fume tanto (risos).

 

Você ganha a vida como livreiro da Livraria da Travessa, na Zona Sul do Rio de Janeiro. No seu romance Não Vale Morrer (ed. Macondo, 2021), o personagem Leon Trapani também é livreiro de uma grande livraria. Trapani se apresenta como poeta-operário. Você também se vê como um poeta-operário?

Hoje, por exemplo, enquanto sento aqui para te responder, sinto-me tão cansado, e tudo parece tão impossível. Refiro-me à vida de um escritor-operário. São oito horas por dia em pé, cuidando dos livros dos outros, representando o que se pensa ser a “literatura que importa”, tentando fazer alguma pessoa ler Dostoévski, Lima Barreto. Em suma: são oito horas em pé fazendo-se de Dom Quixote contra os moinhos. E todo mundo pergunta: mas quando você escreve? Principalmente os escritores acadêmicos, que conseguem o feito incrível, talvez com os dias contados, a depender dos fascistas no poder, de receber um salário para estudar. Eu nunca fui um bom estudante, então, de certa forma invejo essas pessoas. Sempre fui um estudante amedrontado. Meu desejo intelectual, no que diz respeito ao estudo tradicional, se resume a um pavor de tirar nota baixa e ter que contar ao meu pai. Isso acabou um pouco no final do colégio, início da faculdade, quando meu pai parou de se interessar em saber como iam minhas notas. Isso nunca me permitiu, por trauma, sair da infância nesse quesito. A maioria dos meus amigos escritores é acadêmica e vive disso. Conheço muito poucos escritores livreiros, e apenas ouvi falar de escritores operários de fábrica, que deve ser um tipo interessante. Eu acho uma tarefa impossível e, honestamente, quando olho para o que escrevi, gostando ou não, fico espantado que tenha conseguido escrever livros trabalhando por dez anos numa livraria, oito horas por dia, fim de semana sim, fim de semana não, em pé, falando o tempo todo, carregando peso, arrumando, lendo, “tendo estômago”, como diria meu pai. De certa forma, para sobreviver e não me deprimir, coloquei para mim mesmo que faria da minha vida uma experiência única e utópica de escrever uma obra enquanto bato o ponto. Literariamente, me ajuda muito. Os tipos que circulam numa livraria cotidianamente são os mais excêntricos e, por isso mesmo, os mais literários. E tem algo de mágico em saber um pouco de cada coisa, fazer fofoca, denegrir ou venerar outros autores, ser um pouco psicólogo e conhecer as pessoas com quem se convive em outros ambientes, de outro modo, ou às quais se assiste, no caso de pessoas públicas, num lugar onde, em geral, os frequentadores assíduos se desarmam e se mostram verdadeiramente como são. Não à toa escrevi esse romance mais gordinho, Não Vale Morrer, publicado recentemente pelas Edições Macondo, que é um pouco a radiografia desses dez anos na livraria, sendo um operário e, por milagre e mistério, um escritor ativo. Se eu fosse um acadêmico, este romance seria minha pesquisa de campo. Pela exaustão acumulada que tal iniciativa gera dentro de mim, é importante fazer com que essas experiências signifiquem, em contrapartida ao esforço, algo que eu possa lapidar, inventar em cima, como no caso do romance. Algo que pudesse se tornar algo bonito. Mesmo que sua origem seja feia e, muitas vezes, desanimadora. Mas não sei se é possível manter isso por muito tempo. Talvez eu precise mudar de vida em breve. Pobre de mim.

 

Como você definiria um poeta-operário? Em que medida acredita que a literatura produzida por um poeta-operário possa interessar à sociedade de nosso país atualmente?

É um pouco como falei acima: um poeta operário pode ser uma peça interessante porque politiza com profundidade empírica a função do escritor, que é algo que perdemos ou que fazemos como panfleto raso. Um escritor de ficção que é também um acadêmico, um intelectual de função, acaba inevitavelmente soando panfletário quando tenta ser político. Isso porque o objeto dele não corresponde em nada com a sua vivência, dentro de um escritório, de uma sala de aula, uma biblioteca. Um escritor operário consegue ver, de baixo, até o alto da pirâmide. Isso pode se tornar um trunfo, fora o fato de que ele não precisa ser panfletário porque ele mesmo é o objeto do seu interesse. No sentido político, ele é sua própria pauta. Posso estar enganado, mas é o que a História parece me dizer, se procurarmos os escritores operários que permaneceram vivos através de suas obras. Mas crio essa teoria para sobreviver à minha sina, pois, de outro modo, poderia ser muito deprimente e eu seria provavelmente alguém muito ressentido, como vejo alguns poetas operários que conheço, que se sentem incompreendidos e pensam que o mundo ainda não está pronto para eles. Para não ser isso, decidi inventar que sou uma espécie de pesquisador de campo da literatura.

 

No posfácio de Não Vale Morrer, Leonardo Fróes diz que “no olho tonitruante do furacão carioca” você criou uma obra decorrente de uma “conflagração de si para si”. Ao mesmo tempo, o enredo do livro apresenta anseios utópicos de uma trupe de personagens que sonham fazer a revolução por meio da literatura. Que revolução seria possível com poesia e ficção?

Honestamente, não tenho ideia. Os personagens do meu romance, como eu os imaginei, são como utópicos delirantes. Nunca pretendi apontar, como autor, que a saída para a nossa deplorável situação viria de uma revolução intelectual. Mas é isso que tenho mais perto, era o barro que eu podia usar. Imagino que o conhecimento nos trouxe muita coisa, mas ainda é frágil diante da barbárie. Não sei se podemos combater facínoras com ideias. Isso me parece um sonho bom. De todo modo, na minha cabeça, talvez um pouco estranha, a ideia das coisas impossíveis, ainda assim abraçadas e colocadas em prática, é o que há de mais bonito na literatura. Digamos que seja a essência de um Dom Quixote, um príncipe Míchkin, um Hans Castorp, sujeitos literários de quem se poderia ter pena. Eles são, no entanto, das maiores belezas escritas na história da ficção. Então eu acho que, mais importante do que o sucesso da missão, é a coragem de vivê-la na própria pele, com honestidade e entrega.