ENTREVISTA | Jussara Salazar 30/03/2022 - 17:49

 

Histórias sobre antimusas

Jussara Salazar fala sobre o premiado livro O Dia em que Fui Santa Joana dos Matadouros: do Amor entre Fogo, Faca e Bala e adianta detalhes de seu próximo trabalho, com poemas baseados em memórias de sua infância

Luiz Felipe Cunha

 

Jussara Salazar
Foto: Kraw Penas / BPP

 

Sutileza, pesquisa e projeto unitário. Estas são as principais características da produção poética de Jussara Salazar, segundo o poeta e professor da UFPR Guilherme Contijo Flores (em artigo publicado em 2021 na revista Continente). A análise de Gontijo pode ser atestada no livro mais recente da autora, O Dia em que Fui Santa Joana dos Matadouros: do Amor entre Fogo, Faca e Bala (Cepe, 2020) — vencedor do prêmio Hermeliano Borba Filho e finalista do Jabuti —, que traz poemas inspirados em três histórias de mulheres distintas.

Começando por Zia, tia-avó de Jussara, que teve seus pertences queimados em praça pública quando abandonou o marido e fugiu com seu grande amor. A segunda, Maria Bueno, negra, foi degolada por um soldado no século XIX e passou a ser cultuada como santa popular no Paraná. Por fim, temos a cantora Beatriz, atingida na boca por uma bala perdida disparada por um homem que atirava a esmo no décimo andar de um edifício no Rio de Janeiro. Todas elas definidas pela própria escritora como “antimusas”.

Carpideiras (7letras, 2011) e Fia (Selo Demônio Negro, 2016) são outros livros de Jussara que abordam a violência contra as mulheres, um dos temas recorrentes de sua produção — bem como a ancestralidade, assunto de seu próximo trabalho, Bugra, a ser lançado ainda em 2022 pela Kotter. Nesta nova obra, a autora constrói os poemas a partir das histórias e memórias de sua infância na casa da avó, descendente de negros e indígenas.

Na entrevista concedida ao Cândido, a poeta pernambucana que se considera curitibana falou sobre o trabalho de pesquisa que sempre envolve seus projetos, sua amizade com Ariano Suassuna e a ligação com as artes visuais.

 

Os poemas de O Dia em que Fui Santa Joana dos Matadouros foram inspirados em três mulheres. Como essas histórias chegaram até você?

Esse livro tem uma característica muito diferente dos outros: o processo de escrita dele foi demorado, longo. Em 2018 eu já tinha escrito duas partes do livro. Já tinha escrito o “Maria, a Degolada”, porque era um trabalho que eu já fazia, desde 2007, no Cemitério Municipal, na lápide de Maria Bueno, um projeto de um livro de fotos com o fotógrafo João Urban, meu companheiro. Em 2012, comecei a escrever a última parte do livro, “Lamento para Beatriz”, quando soube da história de uma moça que recebeu um tiro perdido na boca, lá no Rio de Janeiro. Fiquei muito impactada e comecei a escrever sobre isso, sem pretensão de nada. E ainda tinha uma história familiar que estava me instigando desde 2004, a história da minha tia-avó, que fugiu com um soldado no sertão da Paraíba. Ela fugiu e desapareceu. Meu avô, à época, jogou e queimou suas roupas em praça pública e proibiu todo mundo da família de falar o nome dela. Quando soube disso, fiquei abismada e tive que escrever. Essas três histórias juntas fecham um ciclo de discussão sobre narrativas, sobre violência, seja no sentido amplo ou no sentido mais simbólico. Por isso o livro tem a questão do “fogo, faca e bala”. Juntei essas histórias e pensei na obra do Brecht, pensei em todo o envolvimento que tinha do capitalismo, do machismo, da presença silenciada das mulheres, e fiz uma aposta. E acabou que ganhei um prêmio.

 

O escritor e ensaísta Guilherme Contijo Flores, em um texto para a revista Continente, disse que a sua trajetória de produção tem uma tripla marca recorrente: sutileza, pesquisa e projeto unitário. Com O Dia em que Fui Santa Joana dos Matadouros não parece ser diferente. Mas falando especificamente sobre pesquisa, como foi o processo para esse livro? Acredito que tenha sido uma parte importante, já que levou dez anos.

Esse processo de pesquisa vem acontecendo há muito tempo, realmente. E ele se acentuou mais em um livro que publiquei em 2011 pela editora 7letras, Carpideiras. Fui contemplada pela bolsa Funarte e fiz uma pesquisa de fato: fui recolher relatos sobre os cantos fúnebres. Viajei ao Nordeste e a Portugal para recolher os cantos. E gostei disso porque envolvia algo que me interessa muito que é a poesia, mas com algum ponto de sustentação nas oralidades populares, nos contos, nas lendas urbanas. E tem a questão de que gosto de projetos de livro. Quando penso que aquilo vai ser um livro, tenho ele até o final já desenhado na minha cabeça. Claro que às vezes algumas coisas escapam e temos que fazer um desvio de rota, mas sempre com um objetivo. Às vezes acontece de o objetivo mudar o projeto inicial, mas depois ele vira um outro projeto. Não sei escrever um projeto a partir de poemas soltos, tem que ter uma espécie de minicuradoria que junte tudo num sentido único, que amarre tudo como projeto.

 

O que essas mulheres têm em comum e que confere uma unidade ao livro?

Entre as duas primeiras personagens existe a questão do amor: Zia foge porque se apaixona e a outra morre em um crime passional. A terceira era uma cantora que tinha ligação profunda com a arte. São três histórias sensíveis, não envolvem brigas de casal ou momentos de violências. São histórias suaves, em que as vítimas amam, vivem, se movimentam como mulheres comuns. Mas são atingidas por movimentos vindos de homens.

 

O primeiro verso de um poema diz: “no vale das sombras vigia-te o sagrado ofício maria ao fio: antimusa”. Me parece que as mulheres do livro são antimusas, em contradição às musas dos poemas dos poetas clássicos.

O livro foi pensando nessa contradição. E nesse mesmo poema me refiro ao fato que Maria Bueno, à época de sua morte, não recebeu a unção dos mortos, a extrema unção — os padres da cidade se recusaram a abençoar o corpo de Maria. Quando foi esfaqueada, ela ficou várias horas de um dia para o outro na esquina em que foi morta. Hoje, se não me falha a memória, o local é uma casa que existe na esquina da Carlos de Carvalho — antigamente era um matagal. Embora hoje seja considerada santa, nas minhas pesquisas — geralmente nos jornais — constatei que ela era uma moça comum, vítima de feminicídio. A extrema unção se dá a todos, até aos indigentes, no entanto foi negada a Maria Bueno. “Antimusa” é empregado nesse sentido: hoje em dia se sabe quem é a mulher, os católicos estão interessados nela.

 

Jussara
Foto: Kraw Penas / BPP

 

Você também se preocupa bastante com a estrutura do livro, como apontou Guilherme Contijo Flores no texto que citei. Como a estrutura de O Dia em que Fui Santa Joana dos Matadouros foi pensada? Tive a impressão de estar num filme.

Tenho uma ligação muito forte com as artes visuais, sou artista plástica, já expus em quase todos os museus da cidade. Muito antes da poesia, a questão da organização da imagem é muito presente na minha vida. Minha formação inicial é na área do design e isso explica muito a história dos projetos e a ligação com a presença das imagens, que vem automaticamente para que realmente seja visto como uma sequência imagética. No meu novo livro, Bugra, por exemplo, ao final, eu escrevi: “Este livro é um álbum de fotografias”, porque ele tem uma sequência em que trago memórias da minha infância.

 

A morte é um ponto presente na sua produção poética. Outro autor que dialogava bastante com essa temática era Ariano Suassuna, com quem você teve uma relação de professor-aluna, e também de amizade. Pode falar um pouco sobre como surgiu o interesse no autor? Você vê uma intersecção entre a sua obra e a de Suassuna?

Ariano foi o meu professor de Estética no curso de Design, na Universidade Federal de Pernambuco. Ele era uma pessoa cativante, não tinha quem não gostasse. Nessa época, as aulas dele eram espetáculos, um show, a sala enchia. Anos depois, um amigo meu de infância, Alexandre Nóbrega, casou com a filha de Suassuna, Maria. Então, sempre que eu ia visitar meu amigo, visitava Ariano. Era sempre uma festa, uma coisa maravilhosa. Em 2008, para o mestrado, resolvi pesquisar sobre a figura do diabo no livro Pedra do Reino, então mantive mais contato ainda com Ariano. Fiquei muito orgulhosa quando, muito tímida, levei meu livro para Ariano e ele disse que tinha outros livros meus na sua cabeceira. Na hora tive vontade de chorar. Nossa amizade foi até o fim. E eu, de certo modo, não acredito que a obra de Ariano tenha alguma relação com a minha literatura. Eu e Suassuna bebemos da mesma fonte, que é a fonte das culturas populares. Minha aproximação com a obra do Ariano, eu diria, também se dá com a questão do diabo no sertão, Deus, o sagrado e o profano.

 

Você nasceu em Pernambuco, mas desde 1985 está no Paraná, em Curitiba. Recentemente, depois de ser finalista no Jabuti, vi algumas homenagens feitas para você no seu estado natal — em jornais, sites, páginas literárias — destacando sua origem. Mas também vi aqui no Paraná homenagens no mesmo sentido, mas chamando-a de paranaense. O que acha disso? O que esses dois lugares representam para você?

Me considero, hoje, uma escritora do Paraná, porque comecei a escrever em solo paranaense e é aqui que todos os meus amigos escritores e escritoras estão. Curitiba é meu berço. A primeira vez em que pisei aqui amei a cidade, mesmo com as pessoas dizendo que ela é fria. Fui muito bem recebida, tive sorte de encontrar pessoas que me acolheram e foram muito receptivas com o meu trabalho. Mas, ao mesmo tempo, quando vou escrever, pensar, me situar, o que vem são minhas origens. Tenho muito respeito por Pernambuco como sendo uma espécie de berço natural. E acho interessante que eu não tenha precisado morrer para que as pessoas de Pernambuco me olhassem como alguém que escreve a partir deles e longe deles.

 

Um outro tema que aparece bastante na sua produção poética é a questão da ancestralidade. E parece que não vai ser diferente com o seu próximo livro, Bugra. “Bugra” é um termo depreciativo usado pelos europeus para se referirem aos indígenas brasileiros. Pode falar um pouco sobre o que os leitores podem esperar desse livro? Como a questão da ancestralidade vai aparecer aqui?

O tema da ancestralidade vai aparecer da primeira à última página. Inclusive, cheguei a pontuar bastante essa minha presença nas religiões africanas. Minha avó, que é descendente de indígenas e negros, tinha um centro de Jurema. Ela era juremeira, mexia com ervas, junto com as duas irmãs. Escrevi alguns poemas sobre elas. Todo dia eu pensava nisso, era impressionante. Elas moravam num sítio dentro da cidade, e o livro é um esforço de reunir todas as histórias e lembranças do local.