ENTREVISTA | Julia Raiz 26/04/2024 - 03:46

Uma escritora não domesticada

Julia Raiz se considera uma trabalhadora da escrita. Com uma obra marcada por obsessões, a escritora constrói uma narrativa singular e desenvolve uma pesquisa apurada sobre a linguagem e o fazer

 

 

julia raiz
Foto: Jessica Stori

 

 

Luiz Felipe Cunha

 

Uma das questões contemporâneas que rondam a cabeça da escritora Julia Raiz é a moralidade do trabalho. “Por que quando minha mãe me visita sinto a necessidade de mostrar para ela que estou trabalhando muito?”, questiona-se em determinado momento da entrevista. Para Julia, essa necessidade está ligada a uma ideia incutida na sociedade de que gente boa é gente trabalhadora, mas essa moralidade acaba alimentando uma mente servil. Por isso ela firmou um compromisso consigo mesma: de que conseguiria viver de literatura no Brasil.

Autora de Diário: a Mulher e o Cavalo (2017) — que ganhou uma edição bilíngue no espanhol pela editora curitibana Telaranha, no final de 2023 —, Metamorfoses do Sr. Ovídio (Arte e Letra, 2022), entre outros escritos de prosa e poesia, além das traduções, sua obra é marcada por algumas obsessões como, por exemplo, os cavalos (que tem ligação direta com a sua infância em Ibiúna, no interior de São Paulo), a ideia de um Jesus revolucionário e os sonhos. Atualmente, Julia está focada em uma novela sobre os laços entre irmãos, mais uma de suas obsessões do momento.

Na entrevista para o Cândido de abril, Julia fala um pouco sobre seus livros, seus sonhos, obsessões e a labuta do ofício. Em meio a investigações literárias, projetos ligados à juventude e a pulsão pela escrita, ela pontua: “Se eu fosse fazer algo na escrita, era melhor fazer do meu jeito, pois já tinham feito muito e muito melhor.”

 

Quero começar falando sobre o Diário: A Mulher e o Cavalo. Qual era a sua intenção nessa obra, o que pretendia fazer? Diria que esse livro abriu para você, de certa forma, as portas no meio literário?

Em 2016, me deu vontade de escrever um livro sobre a relação entre uma mulher e um cavalo — esses dois corpos, essas duas existências. Querendo dominar o assunto, abri um arquivo no word para esquematizar como seria esse livro. Nesse primeiro momento, não pensei em gênero, mas sim nas divisões dos capítulos. Mas caí do cavalo: essa esquematização não foi para frente. Na época, eu lecionava em três escolas diferentes; tentava escrever durante os intervalos das aulas e em casa à noite. Mas não funcionava. Depois de algumas semanas, abri um novo arquivo no word chamado “Diário: a mulher e o cavalo”, como um espaço para destravar a minha escrita para escrever meu “verdadeiro livro”; era um diário de auto-observação e observação das coisas ao meu redor, a partir desses filtros “cavalo” e “mulher”. Algum tempo depois, a convite da Revista Germina, enviei dois textos desse diário, e a poeta Silvana Guimarães, que havia recebido esses textos, respondeu dizendo que tinha alguma coisa de interessante ali. Foi então que percebi que aquele Diário: A Mulher e o Cavalo era o meu livro verdadeiro, não apenas um registro de uma obsessão nem uma estratégia de me soltar. Como valiosa lição, aprendi que não deveria domesticar a minha escrita. É um livro que tem a intenção de me firmar como escritora que escapa com uma escrita escapante, é o texto não domesticado de uma escritora iniciante. Mais do que ter aberto caminhos no meio literário, ele me trouxe muitas amizades, muitas delas citadas na segunda edição [lançada no fim de 2023].

 

Recentemente você fez um tour com adolescentes falando sobre o Diário: A Mulher e o Cavalo. Fale um pouco sobre essa viagem e como percebeu a recepção desses jovens com a sua obra?

Este ano sou uma das autoras convidadas do projeto Arte da Palavra, do SESC, uma oportunidade maravilhosa de poder viajar para falar sobre meu trabalho. Serão cinco Estados: em abril foi Pernambuco, em maio vou para o Rio de Janeiro e depois para Goiás, Belém do Pará, Rio Grande do Sul e outras cidades. Já havia feito esse tour em outras oportunidades pelo interior do Paraná, e uma coisa curiosa que percebi, tanto agora quanto das outras vezes, é que em todo grupo de adolescentes tem pelo menos uns cinco ou seis que escrevem. Isso é sempre um mistério para mim, fico encantada. Uma das falas foi no Instituto Federal (IF), no sertão de Pernambuco, em Petrolina. Em uma turma de Química tinha uns seis que escreviam. É louco que apesar de tudo e de todas as opções de fazer e ocupar o tempo, as pessoas continuam escrevendo, muitos com papel e caneta. 

 

Você comentou algo sobre gostar desse contato com adolescentes. Por quê?

Acho a juventude brasileira muito criativa e com muito potencial. Na maior parte das vezes não é dada a oportunidade de suporte criativo e emocional. Me sinto sempre muito bem-vinda em todos os lugares que vou, quero estar lá para trocar. Sempre começo a fala agradecendo pela oportunidade de viajar para poder falar de literatura; por mais que tenham os que estão ali por obrigação, depois eles conseguem se enturmar e aproveitar. Eu quero dar algo em troca pela presença deles. 

 

O Metamorfoses do Sr. Ovídio (Arte e Letra, 2022) me parece ser um livro mais difícil em comparação com o Diário. E durante a leitura, confesso, me pareceu um livro inclassificável. São contos, novela, prosa poética? Como pensou esse livro, o que queria fazer? 

Foi uma ideia que me veio de madrugada e que eu achei engraçada na hora. Eu estava em uma época da vida que queria escrever algo divertido, sentir a liberdade e a não domesticação novamente. E, para mim, uma das coisas mais divertidas é desafiar a ideia de autoridade. Sendo Ovídio um autor clássico, por mais que o texto dele seja “malucão”, poderia ser uma ideia engraçada. Na época, estava lendo o livro Ontologia do Acidente, da filósofa francesa Catherine Malabou [editora Barbárie, tradução de Fernando Scheibe], que fala sobre uma diferença entre uma tradição das metamorfoses no Ocidente e no Oriente — não gosto desses polos de diferenciação do mundo, acho que é um vocabulário da Guerra Fria, não gosto de reforçar isso. Enfim, para a Malabou, na tradição Oriental não existe uma manutenção da essência no ato da metamorfose, trata-se de uma metamorfose onde a essência não se mantém; por exemplo, em A Metamorfose, de Franz Kafka, quando Gregor Samsa se transforma em um inseto, ainda resta algo dele — sua personalidade, desejos e preocupações — em sua nova forma, a Malabou estaria interessada em investigar quando isso não se mantém. Fiquei imaginando se daria para criar um personagem em que a única coisa que se mantivesse fosse o nome, mas que não tivesse a essência.

 

Acha que uma obra literária necessita de definição? Ou um texto inclassificável é interessante? 

Penso mais em projeto do que em gênero. Isso está ligado ao meu desejo do que quero fazer no momento, as referências que estão orbitando minha vida, o que eu estou lendo e assistindo, com quem estou saindo e vivendo e, assim, o formato vai se construindo. Dito isso, agora estou desenvolvendo habilidades técnicas em relação à prosa de fôlego. Estou finalizando uma novela, e percebo que a narrativa tem algumas particularidades que estão me fazendo bem estudar.

 

Como a literatura apareceu para você? Quando surgiu o desejo/chamado para escrever?

O primeiro poema que lembro de ter escrito foi sobre a morte. Na escola, estávamos estudando sobre coletivos e tinha uma rima com “alma” e “revoada”. Escrevi algo mais ou menos assim: “Quando eu morrer espero que minha alma seja levada por uma linda revoada”. Era uma resposta ao trauma que foi a morte da minha tia (irmã mais nova da minha mãe), assassinada aos 33 anos — praticamente a idade que tenho hoje. Quando a vida fica grave, a gente vai para o papel e para esses outros lugares de elaboração da experiência. Fora isso, sempre gostei muito de estar com os livros, embora não tivesse muitos em casa por falta de dinheiro. Lembro que fui alfabetizada na escola rural de Ibiúna e os alunos não tinham material, mas eu pedia para a professora levar o livro dela. Essa fascinação com o objeto livro continuou, mas nessa época não pensava em ser escritora, era muito distante do que podia vislumbrar. Depois, fiz Letras em Maringá (PR) e escrevi muito pouco, fiquei encantada pela tradição e esmagada ao mesmo tempo. Mas isso me deu uma boa percepção de que, se eu fosse fazer algo na escrita, era melhor fazer do meu jeito, pois já tinham feito muito e muito melhor.

 

Em uma de suas oficinas literárias, o tema é a Obsessão, com a proposta de “escrever sobre o que mais se pensa”. Aproveito para perguntar sobre o que você mais pensa? Qual sua obsessão?

As minhas obsessões mudam com o tempo. Quando olho para o meu trabalho tem algumas obsessões marcadas: o cavalo, que tem ligação com minha infância/adolescência em Ibiúna, no interior de São Paulo; a figura de um Jesus revolucionário, menos mártir e mais provocador; a moralidade do trabalho; os sonhos. No momento, minha obsessão é terminar a novela que estou trabalhando, ela orbita a relação entre irmãos, que é algo que estou investigando.

 

Embora tenha nascido em São Paulo, toda a sua produção acontece em Curitiba (PR). Como enxerga a cena literária do Paraná? Qual seria o cenário ideal para os escritores do Estado?

É difícil falar do Paraná porque moro na capital há dez anos. Mas é um Estado muito grande, muito diverso entre si. Nas minhas poucas andanças, o que me surpreendeu positivamente é que em cidades menores, como Medianeira, que tem uns 50 mil habitantes, existem festivais literários anuais. Penso que formar essa cultura em torno da cena literária local, em diálogo com outras cidades do Paraná e do Brasil, é muito importante para fortalecer a área. Investir na circulação de autorias pelo país é uma das maneiras de se chegar nesse cenário mais respirável, mais possível. Por isso falo muito sobre a profissionalização da escritora. Esse país é muito grande, tem muito dinheiro; ninguém vai me convencer de que não posso trabalhar e sustentar a minha filha com a literatura. 

 

Você comentou que se considera uma trabalhadora da escrita. Pode falar um pouco sobre isso? 

Essa é uma super questão pra mim. Primeiro, porque firmei esse compromisso comigo mesma de trabalhar com literatura (em várias frentes), ser remunerada por isso, de acreditar que é possível trazer dinheiro pra casa. E isso não é algo dado quando se vem da classe trabalhadora. Segundo, porque acho que é importante que as pessoas trabalhadoras da cultura se entendam como classe, uma classe inclusive que precisa conviver com uma instabilidade muito grande de oportunidades e direitos. Uma classe que precisa continuar a se organizar politicamente, radicalizar essa organização. Falo muito sobre a profissionalização da escritora não como uma maneira de categorizar/hierarquizar quem é amadora ou profissional, quem foi publicado ou não. Nada disso. Mas como uma forma de ficarmos atentas a como podemos criar e aumentar as possibilidades de trabalho remunerado e mais justo para todas. Por exemplo, buscar informações sobre notas fiscais, tributos, ter um plano de carreira, etc. Por outro lado, tenho me questionado sobre a "moralidade" do trabalho. Por que quando minha mãe me visita sinto a necessidade de mostrar para ela que estou trabalhando muito? Existe uma mentalidade que nos foi incutida que a pior coisa é você ser vagabundo, não fazer nada, ser folgado, etc. Gente boa é gente trabalhadora. Entendo por um lado o porquê disso. E por outro acho que alimenta essa "moralidade", uma mentalidade servil. Acho que nosso senso de identidade está vinculado ao trabalho de uma maneira doentia, como se a vida de cada pessoa não valesse por si só.

 

Um dos tópicos que percebo de forma recorrente em seus livros (tanto no Diário quanto no Metamorfoses) é o sonho. O mistério por trás dos sonhos, os símbolos ocultos, a interpretação, a descrição das imagens. O que esse campo do onírico significa para você? 

Sou uma escritora que sonha, isso é uma das marcas da minha escrita e da minha pessoa, não dá para separar. Quando era criança tive problemas sérios com pesadelos violentos. Hoje penso na minha relação com tudo que existe no mundo e com o meu dia a dia a partir dos sonhos. Concordo muito com o Ailton Krenak sobre o sonho ser uma instituição, onde há uma troca de conhecimentos e informações, ou seja, o sonho não é uma dimensão separada da vida. Desde que terminei minha tese de doutorado, em 2022, fiquei com uma espécie de ressaca de estudo, e esse ano decidi voltar a estudar de forma autônoma, sem muita cobrança. Falo disso porque um dos meus tópicos de estudo neste trimestre são justamente os sonhos. Comprei livros do Sidarta Ribeiro, vi algumas conversas do Ciclo de Estudo Selvagens, coordenado pelo Krenak. Estou nessa de sistematizar minha relação com os sonhos e dar uma nova camada.

 

Você traduz e estuda a autora canadense Anne Carson. Como conheceu a autora e o que te chamou/chama a atenção nela? Ela é o tema de sua tese de doutorado. Fale um pouco sobre essas propostas de tradução.

O primeiro texto que li dela é o Antigonick, uma tradução dela de Antígona, de Sófocles. Logo de primeira fiquei impressionada com a construção, com a proximidade de linguagem, uma não reverência em relação a autoridade do texto clássico, o humor. Mas, inicialmente, não planejava fazer um doutorado sobre Anne Carson. Na graduação, a literatura brasileira sempre me interessou. No mestrado, estudei o teatro moderno brasileiro. Nada a ver com Anne Carson, mas ela me pegou pelo humor da linguagem, por uma torsão feminista na tradução. Como eu queria dar menos aula, tentei o doutorado para ganhar uma bolsa, pensei “Ah, vou tentar com a Anne Carson”. Primeiro iriam ser as traduções das peças de teatro, mas logo mudei para os ensaios porque me apaixonei por eles. O que estudei na tese foram coisas que eu vinha desenvolvendo interesse, como o ensaio, o fato da Carson ser professora e os estudos feministas da tradução. Quando fui ler a fortuna crítica sobre a Carson percebi que essas três questões apareciam muito pouco. Pensei: “Opa! É por aqui que eu vou mesmo”. Os estudos sobre ela giravam em torno dos estudos clássicos, uma ideia de linguagem experimental, entre outros aspectos. Mas pouco sobre os ensaios, ela ser professora e a tradução feminista. Finalizei a tese com minha filha Agnes com 3 meses, e defendi a tese quando ela tinha 1 ano e meio. Isso foi um grande desafio.