ENTREVISTA | Joca Reiners Terron 30/08/2021 - 16:42

“A imaginação anda fora de moda”

Com O Riso dos Ratos, Joca Reiners Terron escancara as muitas formas de violência que vigoram no Brasil desde o período colonial

 

por Luiz Felipe Leprevost

 

Dois anos depois de publicar o romance A Morte e o Meteoro (Todavia, 2019), Joca Reiners Terron volta às livrarias com outra narrativa longa, lançada pela mesma editora: O Riso dos Ratos. Trata-se de uma história de tom épico e pós-apocalíptico, que transcorre numa metrópole arruinada e inclemente, tomada por milícias. No centro da trama está um homem diagnosticado com uma doença terminal, que promete se vingar do abusador de sua filha. É acompanhando a saga deste personagem, antes burguês, hoje escravo, num mundo em que estão de volta feitores, mordaças, senzala, pelourinho e enforcamentos, que os leitores verão passar diante de seus olhos todo tipo de barbárie.

O escritor cuiabano, radicado em São Paulo, também vem transitando pelos aforismos, contos e pela poesia ao longo de seus mais de 20 anos de carreira. Sua produção poética mais recente pode ser lida em O Sonâmbulo Canta no Topo do Edifício em Chamas (Pedra Papel Tesoura, 2018), possivelmente sua obra mais madura no gênero, e Transportunhol Borracho (ed. YiYi Jambo, 2018), em que apresenta versões de seus poetas preferidos — são “15 joyitas bêbadas de la poesía universal contrabandeadas al portunhol salbaje”, segundo ele.

Na entrevista a seguir, Terron fala sobre a distopia à brasileira que marca seus romances recentes, mercado literário e modismos. Também convoca para a cena expressões literárias que pactuem com uma ideia de invenção. E lembra de escritores curitibanos de quem foi e é admirador.

 

Como nasceu O Riso dos Ratos?

Nunca é simples responder a esse tipo de pergunta. Os romances nascem de um lampejo, mas depois são necessários meses ou até anos de teimosia, dor nas costas e tendinite para sua concretização — anos esses que podem ser desperdiçados, afinal nunca se sabe se o livro será concluído, se vai fazer algum sentido para outra pessoa que não seja o próprio autor. Com esse último não foi diferente, já que, como autor, nunca poderei entrar na cabeça do leitor. Se o processo de escrita é dialógico, coescritural e privilegia o leitor, também tem mão única: o autor não recebe de volta o quadro completado pela leitura. Escrever é investir em fundo perdido, um trabalho infernal que só gera frustração. Talvez por isso as oficinas de escrita tenham proliferado tanto, para suprir essa lacuna. Nelas, todos se leem uns aos outros.

 

Renato Parada / Divulgação Todavia
Renato Parada / Divulgação Todavia

 

Você escreveu O Riso dos Ratos à mão? O que tem de diferente no processo e no resultado de um livro escrito à mão do de um escrito no computador?

Tudo é diferente, o movimento do corpo, por exemplo: ao escrever à mão, abaixamos a cabeça para observar o caderno apoiado na mesa, a cabeça pendendo meio de lado é segurada pelo punho que permanece livre, enquanto a outra mão rabisca alguma frase desajeitada. Já no computador se escreve olhando para o horizonte que é obstruído pela tela. No processador de texto usamos as duas mãos, apagamos o que foi escrito ou já reescrevemos quase ao mesmo tempo em que escrevemos pela primeira vez. Tem uma quebra da naturalidade subjacente ao processo. Na primeira situação, leva um tempo entre a primeira escrita e a segunda, o que faz com que o texto descanse um pouco mais, enquanto a segunda é mais elétrica, já que o computador está ligado na tomada. No computador o texto ilude, pois parece concluído. Está diagramado, imita a página impressa. À mão, a escrita adota o ritmo de um sonho e o manuscrito adquire textura, parece uma trama de rabiscos.

 

Apesar de regido pela língua portuguesa, o país fala muitas línguas brasileiras, que estão em constante mutação. O narrador do seu livro, em vários trechos, descreve essa Babel de dialetos — “comunicando-se numa língua da qual captava não mais que estilhaços”, “parecia algum dialeto esquecido, uma língua que nasceu livre nas ruas”. Nós, brasileiros, somos incapazes de nos entender? Que abismos estão aí à flor da língua (ou das línguas)?

Antonio Fraga, autor de Desabrigo, dizia que no Brasil temos duas línguas, a escrita e a falada. Qualquer valorização ortodoxa da norma culta neste país só pode ser um desvario, uma incoerência. A língua brasileira nasce das ruas, é canibal como Oswald de Andrade ou o Índio da Cuíca. Quando querem, os brasileiros se entendem. O problema é que o brasileiro quase nunca quer nada, então prevalece a entropia. Agora, se aqui você nasce pobre ou proletário e deseja ter alguma oportunidade de sobrevivência, é preciso ser poliglota e variar o registro linguístico, ou seja, falar a língua da rua na rua e a língua do escritório no escritório. Se inverter os polos vai acabar passando fome ou sendo artista, o que dá na mesma.

 

O realismo é uma convenção literária bastante em voga no mercado editorial brasileiro. Há importantes livros do passado e de hoje que retratam a vida “como ela é” no país. No entanto, somos um país repleto de tradições orais advindas dos imaginários africano e indígena. Por que o Brasil, de modo geral, se relaciona tão pouco e tão mal com esses conhecimentos e repertórios populares, preferindo importar modelos de fora?

Bem, o realismo é um delírio. Não passa de uma convenção, que opera a partir de um esforço mimético seletivo, com uma linguagem pasteurizada pela normatização. Como convenção, causa efeitos colaterais tipo a imitação desenfreada de romancistas norte-americanos, inclua-se aí a linguagem que, curiosamente, deriva da tradução e não do original, para o convencionalismo, resultando num texto sem pulsação, sem vida ou excessivamente normatizado. Esse compromisso com a realidade, com retratar o real, também tem viés comercial. É o que vende, aparentemente, pois aos leitores não parece mais importar aquilo que não seja baseado em fatos reais. Portanto seria saudável existir o contraponto de uma literatura sem amarras estilísticas e baseada em fatos irreais, mas a imaginação anda fora de moda.

 

O protagonista do livro tem uma ideia fixa: vingar a filha vítima de abuso sexual. Assombrado, ele imagina formas brutais com as quais submeter o abusador da filha. Ela, por sua vez, horrorizada com a brutalidade da promessa do pai, ensina que “um só ato de violência causa uma reação em cadeia, fazendo a sociedade retroceder à barbárie”. Fica a questão: por quais caminhos será possível sair desse cipoal lamacento de vilezas, baixezas e aviltamentos? Ou estaremos eternamente condenados à tal condição?

No romance, não há saída. Já na vida dependemos de muita, dispendiosa, altruística mobilização para contornar nossa atual circunstância política, de saúde pública e relativa à questão ambiental, uma mobilização que, infelizmente, me parece a cada dia mais improvável que ocorra como a gente espera.

 

A filha do protagonista de O Riso dos Ratos é alguém que “ainda acreditava na justiça, não na dos homens mas na justiça das mulheres”. Qual é a diferença da justiça dos homens para a justiça das mulheres?

Bem, suponho que a justiça dos homens é a responsável por nos trazer a este beco sem saída em que estamos. A justiça das mulheres, também idealmente, seria a esperança que temos de um mundo mais equilibrado, com menos violência e mais igualdade. É a justiça de um futuro que, espero, não demore muito. Mas infelizmente o futuro sempre nos decepciona, e talvez seja um ônus muito pesado atribuir essa possibilidade às mulheres.

 

Grande parte da produção literária contemporânea brasileira se tornou nos últimos tempos declaradamente política. Os romances O Som do Rugido da Onça, de Micheliny Verunschk, Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, e O Último Gozo do Mundo, de Bernardo Carvalho, são alguns exemplos, além dos poemas de Vida Rasteiras, de Alberto Pucheu. Do ponto de vista político, mesmo que desejassem, há certas obrigações das quais os escritores não podem escapar?

Não diria obrigação, mas fatalidade. Num país de analfabetos, toda literatura é política. Não é o caso das obras mencionadas, mas pode até mesmo ser fascista, quando se compromete a repetir a sintaxe e o vocabulário de antigas visões de mundo que não correspondam mais ao tempo que ocupamos. Até os baixos índices de leitura têm componente político, já que são resultado da destruição programática da rede de ensino de décadas atrás, que ainda surte efeitos na sociedade. É fatalidade, mas não obrigação. A literatura deve ser livre para fazer o que bem entender.

 

O Riso dos Ratos está visceralmente ligado à realidade brasileira, porém também — o que talvez seria estranhíssimo em outras épocas, mas não nesta em que vivemos —  parece fortemente influenciado pela ficção científica e pela literatura fantástica. Você concorda com essa impressão?

Sim, e pelos quadrinhos, terror, policial e pela poesia, entre outros elementos. Vem daí minha implicância com essa perpetuação acrítica do realismo. Onde andam a sátira corrosiva, as epopeias afrofuturistas espaciais, as comédias antropofágicas indígenas e tal? Por onde olho só vejo o realismo requentado a serviço do dramalhão.

 

Você é identificado com a ideia de invenção na literatura. Acredita que ainda é possível inventar o futuro (e um futuro melhor) por meio da linguagem?

Para isso ocorrer, a linguagem teria de ser reinventada, tomar um banho ressignificante para que as palavras voltem a ter o sentido que tinham originalmente, pois hoje foram desgastadas pela política, pela publicidade e pelo policiamento, os três PPPs que se apropriaram do motor narrativo que antes era acionado pela ficção. Agora o escritor não precisa mais inventar ficção. A tarefa do escritor é inventar a realidade.

 

Num texto mais ou menos recente do seu blog, você conta que, 20 anos atrás, a escrita da sua primeira novela, Não Há Nada Lá (Ciência do Acidente, 2001), causou a demissão de um emprego e que dessa forma “a ficção terminou por afetar gravemente a sua realidade”. De que modo, hoje em dia, a ficção interfere na sua realidade?

Interfere o tempo todo, também na sua vida e na de todo o mundo. Estamos vivendo dentro de um romance escrito por José Agrippino de Paula, adaptado para o cinema por Glauber Rocha e protagonizado por um idiota.

 

Nas últimas décadas, os escritores, em boa parte, atuaram no jornalismo cultural e no mercado editorial, incluindo aí palestras em feiras e eventos literários. A crise, no entanto, agravada pela pandemia, atingiu todas as áreas — a cultural, então, nem se fala. Como você tem conseguido sobreviver?

Sou uma espécie de agente literário secreto. Trabalho como rights scout (olheiro de obras literárias que podem ser adaptadas para audiovisual) numa produtora de São Paulo. Também dou aulas de escrita em várias escolas, como na pós em Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz, além de traduzir e escrever ocasionalmente na imprensa. A soma dessas atividades me permite sobreviver, mas não é algo simples.

 

Mesmo com tantos títulos na praça, sendo um dos autores mais importantes em atividade no país, publicado por grandes editoras, você não consegue viver da vendagem dos seus livros?

Não consigo nem ao menos vislumbrar essa possibilidade, pois vendo pouco. Como dizia, a imaginação anda fora de moda. E agradeço seu elogio, mas não tenho meios para avaliar essa importância, que me parece mais uma coisa que as editoras colocam nos releases para tentar vender seus autores. No meu caso, não tem funcionado.

 

Você sempre foi um entusiasta da literatura feita em Curitiba. Como foi e por que você se voltou com tanto interesse para a literatura desta estranha cidade?

Foi culpa da estranheza radical de Dalton Trevisan, Wilson Bueno, Luci Collin, Paulo Leminski, Jamil Snege, Jussara Salazar, Manoel Carlos Karam e Valêncio Xavier, entre outros do Paraná, também de Cristovão Tezza, que é, ele sim, um dos autores mais importantes em atividade no país. “Mas não é realista de carteirinha, o Tezza?”, você poderia perguntar. É, mas escreve satanicamente bem, e seus últimos livros trazem uma invenção estilística da oralidade que é coisa muito séria. A literatura paranaense, curitibana em especial, corresponde à literatura uruguaia no âmbito latino-americano. É incomum e selvagem, pois de certa forma criou na margem o seu próprio centro.

 

Além de ficcionista, você também escreve poesia. Como vai o seu trabalho de poeta? Não sente vontade de reunir num único volume os seus poemas, desde Eletroencefalodrama (1998) e Animal Anônimo (2002), incluindo os inéditos produzidos nesses 23 anos de carreira?

Em 2018 publiquei um terceiro livro de poemas, O Sonâmbulo Canta no Topo do Edifício em Chamas, além de outras coisinhas por aí. Quero fazer mais um este ano, autoeditado e com tiragem mínima, Mapa Desbotado pelo Sol. Continuo a escrever e a traduzir poemas, e apesar de ser um gesto meio fútil, gostaria de reunir os que publiquei num volume magro algum dia. Mas é uma atividade meio inútil, tão inútil quanto escrever ficção imaginativa numa época em que todos estão adoecidos pela realidade das miragens. Publicar poesia, afinal, dá quase no mesmo que não publicar.