ENTREVISTA | Guilherme Gontijo Flores 30/06/2022 - 12:12

Comunidades possíveis

O escritor e tradutor Guilherme Gontijo Flores fala sobre seu livro mais recente, Potlatch, e o sentido de coletividade que permeia a produção de sua obra

Luiz Felipe Cunha

 

Gontijo
Foto: Maringas Maciel / Secc

 

Aos 38 anos, o brasiliense Guilherme Gontijo Flores já tem mais de dez livros publicados, que transitam pela poesia, o romance e o ensaio — além de várias traduções. O mais recente, Potlatch (Todavia, 2022), é um compilado de poemas escritos a partir de 2017, com inspirações em um ritual violento de partilha de bens materiais praticado, antigamente, por povos originários da América do Norte. A prática seguia uma lógica: o indivíduo que mais se despir de suas posses será o mais benquisto pela comunidade. Segundo Gontijo, o material de seu novo livro mantém um anseio de partilha e comunhão muito semelhante ao rito dos indígenas norte-americanos. “Se alguém escreveu um poema é porque leu um poema, recebeu um presente”, diz.

O autor carrega essa ideia de construção de comunidade para além das páginas. Professor da Universidade Federal do Paraná e radicado em Curitiba há mais de uma década, Gontijo formou um grupo de escrita e crítica que migrou para a internet e criou o famoso blog de tradução escamandro. Desde então, passou a “levar a poesia e o fazer literário mais a sério”, como ele mesmo conta.

Tradutor premiado com o APCA e o Jabuti (por seu trabalho em A Anatomia da Melancolia, de Robert Burton), Guilherme Gontijo Flores ainda canta e toca diversos instrumentos na banda Pecora Loca, cujo repertório é baseado em traduções de autores da Antiguidade. Recentemente, lançou, em parceria com o artista visual francês François Andes, o livro Entre Costas Duplicadas Desce um Rio (Ars Et Vita, 2022) — fruto de uma residência literária de que participou, em 2020, a convite do Festival Internacional de Artes de Tiradentes, na cidade histórica mineira.

Na entrevista para o Cândido, concedida na Biblioteca Pública do Paraná, Guilherme falou sobre a elaboração desse último livro, sua obsessão com a natureza e a relação com os poetas da Antiguidade.

 

A palavra Potlatch diz respeito a um ritual praticado antigamente entre tribos indígenas da América do Norte, em que acontecia um rito de destruição de posses baseado na ideia de que o mais rico é quem perde. Como você chegou a essa história e por que dar esse nome ao seu livro?

O Potlatch eu vinha escrevendo desde 2017 e, em dado momento, lendo sobre coisas variadas, topei com esse ritual no qual o cerne é o desprendimento de bens materiais. Ou seja, o indivíduo que mais se despe de seus próprios bens em nome da sua comunidade é bem-visto — muito diferente da nossa cultura, em que se acumula para ser benquisto. Percebi que os poemas que estava escrevendo tinham um anseio muito grande de partilha, de construção de comunidade em um mundo em pé de guerra. E fiquei pensando que o conceito do ritual é, no fundo, bem parecido com o sistema dos poemas: se alguém escreveu um poema é porque leu um poema, recebeu um presente. E é natural querer devolver esse presente. Mas não há esse retorno. A poesia quase nunca garante bens materiais — pelo ponto de vista do capital, é uma grande perda de tempo. Mas é feito pelo gesto de comunidade. Para mim é uma projeção de comunidades possíveis. É um circuito infinito de recepção e doação que não está interessado em posses.

 

Esse conceito parece estar inserido no DNA dos poemas do livro. Você os escreveu já pensando nisso? Ou trata-se de uma reunião de textos esparsos?

Geralmente, os meus livros não começam pelo título ou por um projeto — talvez um ou dois tenham invertido essa lógica. Em geral, escrevo poemas novos e vou selecionando-os por afinidade, diferenciando daqueles que são exercícios e ideias abstratas. São os poemas que vão me mostrando o caminho. Cheguei no título Potlatch uns dois anos antes da publicação. Aí que comecei a escrever pensando na unidade do livro. O livro tem de ter uma unidade, mesmo que os poemas tenham sido escritos em fases variadas. Retiro vários que não fazem sentido como conjunto e, quando o projeto do livro emerge, começo a escrever deliberadamente e trabalhar em torno do que o livro pode ser. Não começo do puramente abstrato.

 

Me parece a mesma lógica que alguns músicos adotam quando lançam um novo álbum. Isso faz sentido para você, já que também tem envolvimento com a música?

Exatamente. A partir das músicas eles passam a pensar em arranjos para que aquilo de fato seja um álbum e não apenas um ajuntado aleatório de coisas que foram feitas em um determinado período. Penso no livro como álbum porque chega uma hora em que é preciso uniformizar (pelo menos é assim o jeito que eu quero, apesar de ter uma gama de variedades em um livro). Para que o leitor reconheça que não deu nenhum salto absurdo, que perceba que está tudo, de certo modo, conversando. E isso diz respeito a escolha de palavras, modo da frase, recursos rítmicos… como um álbum.

 

No poema “Pasárgada”, presente na primeira parte de Potlatch, há referências à Grécia Antiga, ao clipe de “I'm Still Standing”, do Elton John, e às religiões de matrizes africanas, com a presença do Orixá Xapanã. Esse mix cultural, que aparece em outros poemas, é trabalhado como um objetivo a ser alcançado? Parece difícil fazer essas conexões sem soar pedante.

Minha exigência pessoal é que um poema tem que tratar da vida. Sinto que autores mais novos têm um anseio de autoafirmação. E essa autoafirmação acontece de modo citacional. O sujeito lista nomes para mostrar que está por dentro. Me esforcei para não fazer isso quase nunca, de modo que, quando aparece, soa natural. Como uma parte real da vida. E uma parte real da vida é o convívio com as artes. Não há hierarquia quando escrevo sobre uma cidade milenar, se falo de algo da semana passada ou se falo de algum momento da minha vida. O Elton John não está no poema para afirmar. Nem ironicamente nem a sério, nada. Está porque é real.

 

Você acha que cada lançamento representa um evolução sua como poeta? Ou cada obra carrega um propósito diferente?

Do ponto de vista intelectual, o ser humano atinge a maturidade mais ou menos na idade com que estou no momento, 38 anos. Por enquanto, tenho a impressão de que, a cada livro que faço, consigo ir a um ponto novo em que não fui nos outros. Mas não tenho certeza se vai ser sempre assim. Pode ser que em algum momento da minha vida eu queira fazer um retorno para maturar. Não sei responder. O que sei é que meus cinco primeiro livros são um esforço muito grande para recusar uma voz unificada, diferentemente de alguns poetas iniciantes que querem, logo de cara, ter uma assinatura. Nos primeiros anos, me recusei a ter um estilo. No entanto, principalmente com os apontamentos de amigos próximos, percebi que havia algo que ainda era uma assinatura (risos). Os dois últimos livros de poesia são um pouco uma retomada, assumindo que alguma voz emerge como que a contragosto. Continuo tentando não me apegar a uma dicção ou a um jeito, mas sinto uma estabilidade, que hoje acho interessante.

 

Em um texto publicado neste ano no jornal Plural, o também tradutor e escritor Caetano Galindo chama você de “maior poeta de sua geração” (“Trata-se, sempre, de uma poesia sonoramente inteligente, sofisticada, surpreendente, desviante e exuberantemente linda”). Também afirma que Potlatch é um “livro fundamental”. O que você pensa sobre esse tipo de elogio?

(Risos) ele me enviou o texto antes de ser publicado, é um amigo meu. Admiro muito como pessoa, como escritor e tradutor. Mas temos temperamentos muitos diferentes. O Caetano escreve frases muito naturalmente, ele pensa bombasticamente. Não consigo dizer qual poeta gosto mais ou elencar meus discos preferidos… Sou muito difuso. Não é falsa modéstia, mas não me chamaria de maior poeta da minha geração porque não é como penso e me organizo. Mas é óbvio que fiquei muito honrado com o texto. Como poeta, quero produzir algo relevante.

 

Nesse mesmo texto, Galindo fala sobre a relação de coletividade que faz parte da elaboração de suas obras. Ficou entendido que você compartilha bastante seu material com pessoas próximas, de confiança. Não se incomoda com eventuais críticas sobre seus trabalhos?

Sinto que voltei a escrever pelo motivo contrário ao que a maioria das pessoas é levada a escrever. Votei a escrever por causa de um grupo que foi formado no ambiente acadêmico, com o intuito de criticar os textos uns dos outros, no sentido de apontar melhoramentos. Passei a escrever pelo prazer de encontrar as pessoas e elas criticarem os poemas, de tentar levar a sério a critica e não levar pelo lado pessoal. É muito fácil preservar a amizade fazendo elogios vazios. Por isso, vejo a leitura coletiva como um ato de generosidade. Com os contratempos da vida, o grupo se desfez, mas não perdi o hábito de compartilhar escritos com amigos próximos. São pessoas que sei que, quando elogiam, de fato é um elogio. E, quando criticam, é para se levar a sério. O Caetano mesmo já disse que acha incrível que eu adoto as sugestões dele.

 

Então você não se considera uma pessoa vaidosa?

Não, nenhum pouco. Quero que o poema atinja um ponto, que não me proteja de nada. Num limite, daria para pensar que os poemas talvez devessem ser assinados não só por mim… Para dar um exemplo: essa semana estava fazendo uma série de poemas e, em um dado momento, enviei o mesmo poema para o André Capilé e para o Caetano Galindo. E a resposta foi antípoda: um falou que era o melhor poema da série e o outro não achou grandes coisas…

 

Nesses casos, para onde seguir?

Pois é, nessas horas percebo que tenho de tomar as decisões sozinho. Algumas vezes faço algumas pequenas alterações, mas aposto no jeito que está. O poeta tem que ser alguém que aposta.

 

Neste ano também foi lançado o livro Entre Costas Duplicadas Desce um Rio (Ars Et Vita), resultado de uma parceria com o artista visual François Andes em Tiradentes (MG), durante um período de residência literária realizado entre novembro e dezembro de 2020. Foi sua primeira residência? Como foi a experiência?

Foi a primeira como escritor. O tema do evento daquele ano foi “água” e a organização resolveu chamar dois artistas residentes: eu, como escritor, e o François Ande, como artista visual. Já nos conhecíamos antes, em edições anteriores desse mesmo evento. E foi incrível! Ambos já tinham pesquisado e produzidos trabalhos relacionados à água. Quando chegamos lá [em Tiradentes] começou a troca, de fato: conversávamos bastante, compartilhando nossas produções, e também produzindo a partir do trabalho um do outro. Durou duas semanas. Todo dia fazia caminhadas longas e observava os rios, que são muitos, da região. Foram dias muito férteis. No ano seguinte, recebemos a proposta de transformar essa troca em livro, um livro que não fosse nem um livro de poesia ilustrado, nem um livro de artista plástico com meros poemas intercalando as páginas. Nesse sentido, esse livro é um objeto único.

 

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Foto: Maringas Maciel / Secc

 

A natureza está bem presente em seus trabalhos, com a presença de rios, plantas, animais, etc. Qual a sua relação com as coisas naturais? É uma obsessão literária para você? Aliás, você tem alguma obsessão literária?

(Pensativo) acho que é da ordem da obsessão, sim… Morei três anos em Morretes [PR], em uma chácara no meio da mata atlântica com a minha família. E foi uma experiência muito forte, porque se inicia como algo ingênuo de retorno à natureza e depois se torna algo mais sutil e complexo, com múltiplas interações possíveis. Um exemplo disso é que lá na região todos os rios têm nomes. É nesse período que começo a escrever porque percebo muito forte o impacto da vida urbana, principalmente no sentido de naturalizar ações que não são nada naturais, como soterrar rios. Mas o espaço urbano também tem seus mistérios e pode ser tornar um espaço de convívio com a natureza. Perto da minha casa tem uma paineira gigante, considerada a mais antiga da cidade. Sempre passo por ela e tenho o meu momento com aquela árvore antes de seguir adiante. Parece papo hippie, mas não é.

 

O seu primeiro e único romance até o momento, História de Joia (Todavia, 2019), parece ser uma inflexão na sua carreira. É mais plano, urbano, inclusive no uso de uma linguagem mais coloquial, do dia a dia. Você se sente confortável escrevendo uma narrativa longa?

É bem difícil. Às vezes me arrependo de ter publicado como romance, devia ter lançado com o subtítulo “poema”. Cheguei a cogitar isso na época. Pois é um romance, no sentido de que é uma narrativa longa, disposta visualmente em prosa. Mas qualquer um que lê percebe que não é um romance típico, mas um romance que só um poeta iria querer fazer (risos). Ali estava mais preocupado em como tentar narrar o limite da tensão, por isso criei esse personagem, Joia, que não tem voz. Só obtemos informações sobre essa pessoa pelos outros. A maior dificuldade foi tentar achar o tom: tudo que eu escrevia saía demasiado poético. Além disso, diferentemente dos poemas, fiquei muito tempo maturando esse livro na cabeça antes de escrever.

 

Em entrevista para um periódico da UFPR, você diz que o poeta da Roma Antiga Sexto Propércio foi uma das descobertas que o estimulou a entrar no mundo da tradução. Depois virou até paixão. Quais características do poema romano que você percebe em sua própria produção poética?

Acho que sim. Como disse, tinha parado de escrever e comecei a traduzir. No fim da graduação em Letras, entendi que o meu mestrado iria ser Propércio — foram dois anos só traduzindo. Nele, vi uma capacidade de ser muito leve, para o padrão da época, e direto. E ao mesmo tempo muito sútil e irônico. Além de ser um trabalho incrível de linguagem e sonoridade, com um textura admirável. Para mim, traduzir Propécio foi aprender, porque passei a tentar escrever como ele, só que em português. Sinto que carrego um anseio de uma linguagem que não seja totalmente obscura, mas que não está a fim de banalizar nenhum assunto — posso falar sobre a coisa mais boba possível, mas terá um tratamento com dignidade. Mas também me influencio por outros autores. Horácio foi meu assunto de doutorado e dele peguei o gosto pela organização das frases. Sou influenciado pelos dois, mas tenho uma preocupação em nunca soar clássico, mantendo meus dois pés no presente.