ENTREVISTA | Francisco Mallmann 29/11/2021 - 15:01

Vivendo vivo

Com o recém-lançado Tudo o que Leva Consigo um Nome, Francisco Mallmann celebra os gestos, a memória e os afetos a partir do coletivo

 

Por Hiago Rizzi

 

As redes sociais são o meio em que o trabalho de Francisco Mallmann tem ressoado com mais velocidade. “A memória é uma ação política”, “escrever como quem diz: ‘eu estou viva''' e “a palavra é um gesto coletivo” são algumas das máximas que arrebatam seus leitores na internet. Mas o curitibano declina educadamente aos rótulos de “poeta de Instagram” e “produtor de slogans” — mesmo porque seu currículo na cultura é bem mais amplo. Graduado em Jornalismo e Artes Cênicas, mestre em Filosofia e doutorando em Artes da Cena pela UFRJ, Mallmann atualmente é coordenador do Departamento de Exposições Itinerantes e Temporárias do Museu do Holocausto de Curitiba e está ligado a diversos núcleos de produção, como a Casa Selvática, onde é artista residente, e o coletivo de escrita Membrana.

Como escritor, teve um conto publicado na terceira edição do Livro dos Novos (Travessa dos Editores, 2016), ao lado de autores com quem se articula até hoje. Em Haverá Festa com o que Restar (2018, 3° lugar no Prêmio Literário Biblioteca Nacional 2019), América (2020, ambos pela Urutau) e Língua Pele Áspera (7Letras, 2019), ele atravessa seus temas mais populares: linguagem, gênero e território. Tudo o que Leva Consigo um Nome, lançado em agosto pela José Olympio, selo do Grupo Record, marca o primeiro trabalho com uma grande editora e traz uma unidade entre os poemas pensada de antemão, além de um senso de humor encarnado na obsessão contra o personagem-objeto Fernando.

A construção interdisciplinar e coletiva dos seus livros, a relação com figuras da literatura paranaense e o papel do desejo e da violência em seus trabalhos são alguns dos assuntos da entrevista a seguir.

 

Maringas Maciel / Secc
Maringas Maciel / Secc

 

Como se fez o autor Francisco Mallmann? Houve algum ponto de virada para a escrita?

A escrita sempre esteve por perto, a ação / atividade de escrever nunca foi muito externa. Também por ter pais professores, a prática da escrita e da leitura eram muito naturais e corriqueiras. Acho que existe um ponto de virada onde entendo que faço isso ou que queria fazer isso, e está muito próximo à minha formação no teatro. Quando entrei na graduação em Artes Cênicas, existia um entendimento de que não queria ser ator, queria escrever para o teatro. Já no início da graduação, passei a escrever o que seria material de cena ou de experimentação, distante da ideia de publicação. Não entendia muito se essa escrita poderia ser materializada num livro. Junto com isso, sempre escrevendo poesia para a gaveta, estava na faculdade de Jornalismo. Entrei no curso em 2010, fiz as duas graduações ao mesmo tempo, e estava escrevendo de várias formas. Muito rapidamente me tornei artista residente da Selvática, um espaço de experimentos, práticas interdisciplinares, com pessoas com formação também em outras áreas.

Passei de 2010 a 2017 bastante despreocupado em nomear meus escritos. Já tinha algum desejo envolvendo essas práticas mais emancipadas, e junto com isso começou a acontecer esse trabalho mais sistematizado com dramaturgia. Estreamos Pinheiros e Precipícios e Para Não Morrer, com o Espaço Cênico. Fui me entendendo como alguém que fazia dramaturgia, como alguém que escrevia poesia, tinha isso como uma prática, um trabalho, afinal. Para o Haverá Festa com o que Restar, fui reunir aquelas coisas todas e pensar o que poderia ser um livro. Fiz uma espécie de curadoria, tem esse caráter de reunião. Enviei em 2017 e publiquei em 2018. Foi minha primeira experiência depois do Livro dos Novos (2016). Eu fui me entender como alguém que escrevia no meio de uma reunião de pessoas. Não teve esse processo de objetivação, de “eu sou um autor”. Não, foi misturado com todo mundo, um pouco alheio à ideia de que a gente escreve sozinho ou trabalha sozinho. Eu vou me formular como alguém que escreve no meio de uma sala de ensaio, em que muitas coisas acontecem. Acho que isso de algum modo é um indício do que venho fazendo, do que é estar em um coletivo, agora também no Membrana. Existe um pouco desse caráter exterior, não sei se fui eu que me entendi ou se as pessoas me entenderam como escritor.

Além disso, sempre fui uma pessoa que leu muito poesia contemporânea, acompanhei esse movimento dos blogs, via esse trânsito na internet. Foi também esse o momento de me reconhecer em pessoas muito jovens que faziam isso, tinham um trabalho e de algum modo estavam se formulando enquanto poetas e escritores. Entender isso para dissolver essa imagem do grande escritor, essas questões etárias, românticas, do que é escrever ou ser sábio. A revista Modo de Usar & Co. é um exemplo para ver isso naquele momento, pessoas jovens escrevendo, traduzindo, pensando.

 

Qual é sua relação com a Biblioteca Pública? Você frequentava este espaço?

Foi um espaço importante quando eu comecei a viver a cidade de um modo mais efetivo, ainda adolescente. Saía para fazer algo, como uma aula, e calculava quantas horas de leitura teria aqui. Saía horas antes para ter esse tempo na Biblioteca, às vezes matava aula. Foi um lugar de muito refúgio, foi e é um lugar muito importante na minha relação com a cidade, com Curitiba. Acompanho os eventos daqui, vi muitas pessoas por quem tenho profunda admiração aqui, pude viver vários tipos de experiência. É muito central geograficamente e também numa espécie de cartografia afetiva, eu amo esse lugar.

 

Gostaria que falasse mais sobre dois autores que viveram em Curitiba e você já citou em outros contextos: Wilson Bueno e Rollo de Resende.

São duas bichas maravilhosas. Entre os escritores de Curitiba, Wilson Bueno é o que mais me mobiliza e me afeta. Escrevi a peça Pinheiros e Precipícios a partir de duas obras dele, Bolero’s Bar (1986) e Mano, a Noite Está Velha (2011). Poderia falar longamente sobre a qualidade da escrita, a experimentação formal, a língua fronteiriça, mas o que fez com que eu me apaixonasse são esses seres meio desviantes que a literatura do Bueno traz. É muito a noite, o lado B, uma espécie de avesso do cartão-postal. Minha Curitiba definitivamente é essa, não passa perto da narrativa heróica, edificante, via progresso. Eu gosto mesmo é de pensar essa escuridão que de alguma forma a escrita do Wilson tem. Para Pinheiros e Precipícios eu li e reli seus livros muitas vezes, ele tem um jeito de construir mapas da cidade que de alguma forma são sempre marginais — se ele passa pelo centro é para subverter o centro, ou é pra mostrar esse centro que não é limpo, não é vitorioso. Isso sempre me interessou, a partir do não-hegemônico, não-normativo, o que à primeira vista não está posto. Wilson foi assassinado por um michê, tem essa morte trágica, que de algum modo foi muito forte para eu pensar o que isso nos revela em torno das nossas afetividades, sobre ser um homem gay de outra geração, as dinâmicas e práticas afetivo-sexuais. Existe aí uma narrativa muito específica sobre como as páginas dele traziam quase uma premonição da sua própria morte. Fiquei muito impactado na época. Foi uma figura que me fez pensar sobre a indissociabilidade de arte e vida. Acho que criar e viver são o mesmo exercício, de algum modo.

E com o Rollo aconteceu um encontro super bonito. Um dia, a Julia Raiz e a Desirée dos Santos me ligaram e perguntaram: “Chico, você conhece Rollo de Resende?”, e eu não conhecia. Li Água Mineral (1995) com muita avidez, acho que isso foi em 2018. Percebi que o Rollo fazia várias das coisas que eu me interesso por fazer. Durante a epidemia da Aids, exatamente nesse contexto, eles fizeram o Homeopoética – Poemas em Cápsulas (1991, com Jane Sprenger Bodnar e Fernando Zanella), e aquilo me pareceu maravilhoso. Existia também um pensamento muito radical sobre o que é circular poesia, um trabalho além da escrita, que se dá em coletivo, próximo ao que eu articulo aqui. Uma vez Ricardo Corona disse que nos parecemos. Ele faleceu em 1995. Fico pensando o que era produzir esse tipo de poesia que o Rollo produziu durante a epidemia da Aids, com as discussões que a gente sabe que foram absolutamente brutais e uma violência muito mais explícita aos corpos LGBTQIA+, o que tudo isso significou e que gesto radical foi publicar o que ele publicou nesse contexto.

Foi um grande encontro que me fez pensar muito sobre o modo como somos mal-documentados. Nós e outros grupos ditos minoritários. Existem lacunas muito profundas sobre quem veio antes de nós. O Rollo nunca me havia sido apresentado antes. A impressão que tive quando o conheci é que ninguém o conhecia, o que evidentemente é uma mentira. De que isso é um indício? Da época? Sobre um certo apagamento? Acho que parte do nosso trabalho como criadores é fazer essa espécie de revisão. Preencher essas lacunas também é tornar possíveis essas existências impossíveis, tornar possível um reconhecimento mais direto ou mais amplo dos muitos que vieram antes e que criaram coisas muito interessantes. São artistas que estiveram criando caminhos para fazermos o que fazemos hoje. É importante pensar nisso de muitas maneiras, seja numa ordem direta, o que é trabalhar em relação a esses artistas, mas também um trabalho que é da ordem do inominável — são nossas irmãs que cavaram isso tudo. Acho que existe uma irmandade radical que nos une em relação a uma fabricação de vida que não é biológica, mas uma certa transmissão de vida viva. Acessar esses materiais tem um pouco da vitalidade que é dessa ordem. Viver viva. Viver viva. Viver viva. São pessoas que viveram vivas.

 

Há na comunidade LGBTQIA+, especialmente entre os homens, uma questão em torno do envelhecimento. Essa também é uma questão pra você?

Acho que existe, culturalmente, uma fobia da idade que se relaciona com várias coisas complexas envolvendo normatividade, heteronormatividade, ideias do que são masculinidades, beleza, virilidade e desejo. Minha relação com essa questão tem via de acesso pensando a narrativa LGBTQIA+, é um dos polos, mas culturalmente as pessoas vão fazendo ligações entre idade, maturidade e maturidade no trabalho. Fico confuso com o que a idade significa em alguns circuitos e contextos. Acho que as pessoas tendem a ser pouco generosas com quem está iniciando uma prática, e fico pensando de onde vem essa espécie de hostilidade que existe com jovens artistas e escritores.

 

Esse é um lugar da poesia também? Afeta o seu trabalho?

Não fico buscando esses lugares de legitimação e autoridade, para mim passa por outro lugar de criação, de construção de comunidade e coletivo. As classes artísticas têm um funcionamento muito patriarcal, por filiação ou apadrinhamento, lógicas onde eu não opero. Minha interlocução vai acontecer com pessoas que estão interessadas em articular com as questões e práticas que me mobilizam. Essa questão da idade não me assombra, não sei se porque sou bastante jovem ainda, mas não tenho esse receio. Inclusive, quero muito ficar ultrapassado. Sonho com as próximas gerações tão mais interessantes que eu. Tomara que em algum momento eu fique para trás, tomara que eu envelheça, e envelheça bem, perto de gente, sem rancor. Tenho mais medo de envelhecer rancoroso do que de envelhecer.

 

Se você tivesse que definir seu interesse na literatura em uma ideia, qual seria?

Acho que meu interesse na literatura envolve fazer convites. E, mais do que convites, convites de ação. Meu interesse na escrita envolve criar contextos de convites à ação.

 

O desejo parece ser uma peça-chave no seu trabalho.

Eu tenho várias vias de acesso ao desejo ou à ideia do que ele é, tanto numa perspectiva do que move, um desejo-ação, desejo-prática, que tem muito a ver com meu trabalho, que envolve coletividade e estar perto de ações interdisciplinares e de fronteiras abertas e borradas, mas também o desejo como uma certa ética de vida. Estar perto do desejo envolve um tipo de atenção bastante sensível ao que a gente é, ao que a gente faz, e o que isso pode gerar em relação a uma paisagem mais ampla. Evidentemente, falar em desejo em alguma fase envolve ter tido um desejo interrompido, censurado ou silenciado. Quando eu falo em desejo, eu falo de um desvio à norma. Existe também esse lugar do desejo como uma produção de ruído nessa paisagem muito normativa, muito fóbica, muito centrada numa prática que não nos cabe. Essa ideia de desejo está muito próxima àquela frase que se tornou comum em cartazes feministas, “o pessoal é político”, e derivações dessa ordem. Acho que nesse tipo de reivindicação envolvendo o desejo existe uma certa política de produção de outras possibilidades, outros modos de fazer, de experienciar, de relação. Outras formas de vida.

 

Em Haverá Festa com o que Restar, um dos poemas fala sobre “não confundir a violência das mãos”. Em outros trabalhos você fala: “devolver a eles esse grande susto”, “não há reconciliação possível” e “não deixar dormir quem não nos deixa sonhar”, este último usado em um protesto recente. Você está mais combativo?

Eu acho que estou bastante combativo em um certo âmbito, e menos combativo em outro. O Tudo o que Leva Consigo um Nome tem uma coisa de humor, estou tentando entender essa maleabilidade que pode existir nessas reivindicações. Eu leio o Haverá Festa com o que Restar e penso que algumas coisas estão datadas, de política institucional. Hoje minhas escolhas seriam outras, não sei se eu teria entregue essa discussão que é tão mais ampla em uma discussão como essa, que é da ordem da institucionalidade. Para mim era sobre outra coisa. Mas está aí, tem o nome do Temer, tem o golpe. Isso se tornou uma questão para mim depois. Como a gente faz para que essa documentação de um período se torne uma questão mais ampla? Será que é sobre registrar o nome dos malditos? Eu, definitivamente, não acho que seja restrito à política institucional, mas estamos implicados em dizer “fora Bolsonaro”. É uma questão de escala, quase de medir as urgências. Mas eu sigo bastante furioso. Tem uma fúria que me interessa, uma fúria enquanto energia vital, fundamental enquanto prática artística e de vida.

A violência me interessa muito, enquanto fenômeno. Acho importante a gente continuamente se perguntar onde está a violência e o que é a violência. Existe esse lugar de que tudo que escapa à norma produz alguma forma de violência. Mas tem algo que eu tenho pensado e perguntado sobre o meu trabalho e outros trabalhos. Como a gente produz essa ação para dar um salto entre a denúncia e a produção de anúncios que não passem necessariamente pela mesma formulação que envolve a denúncia. Porque embora eu ache muito importante produzir essa denúncia, eu quero saber o que a gente vai anunciar. Quando a gente produz, quais são os anúncios que nós queremos fazer, quais são as nossas formulações?

E sei lá o que é dizer “nossas”, o que é dizer “eles”, isso também está em questão. Quem são essas coletividades e quem são esses pontos, isso também é circunstancial. O potencial combativo, a investigação do que é a violência, quem violenta quem, esse movimento de refazer as perguntas que parecem inaugurais — o que é normal, o que é a dissidência, o que é uma porção de coisas. Em “não deixar dormir quem não nos deixa sonhar” ou “devolver a eles esse grande susto”, existe uma abertura dessa formulação que não está localizada, mas ativa muito rapidamente produções de contexto, imagens, situações. E esses materiais em larga escala têm a ver com deixar em ambientes públicos mesmo, para que a palavra seja uma disputa, o sentido seja uma disputa. Eu também não sei quem são eles, mas acho que a gente vai ter que descobrir juntos, ou você vai descobrir contigo. Eu vi isso acontecendo nos espaços públicos em que o “América é marica” foi exposto, é físico, o bug tá na cara. AMÉRICA // ÉMARICA. Não se entende, e quando se entende é um espanto. Existe uma espécie de efeito, e esse efeito é que eu acho interessante.