ENSAIO | Carolina Nabuco, uma escritora cordial 22/10/2024 - 16:45

Por Adriana Tulio Baggio

 

Tomei conhecimento de Carolina Nabuco (1890 – 1981) em 2019, durante uma feira de livros. Fui atraída por uma capa com croquis de trajes femininos de outros tempos. Era a edição mais recente de A sucessora (2018, Editora Instante), o romance de estreia de Nabuco, lançado em 1934 pela Companhia Editora Nacional. Ao ler a sinopse, descobri que já a conhecia, ou ao menos o enredo do seu livro: a jovem Marina se casa com Roberto, um viúvo rico e bonitão, e o casal vai mo­rar no palacete onde ele vivera com a primeira mulher. Por descuido ou de propósito, esquecem de tirar da ca­sa o imponente retrato da falecida, a glamurosa Alice, que passa a assombrar sua “sucessora”.

O romance foi bem recebido pela crítica da época, mas o sucesso veio por fatores externos a ele. Em 1938, na Inglaterra, Daphne du Maurier publicou Rebecca. E em 1940, Alfred Hitchcock ganhou o Oscar pelo filme adaptado do romance. Antes mesmo de fita e livro chegarem ao Brasil, fontes no exterior já tinham percebido que a história se parecia com A sucessora. O plágio, constatado pelo crítico Álvaro Lins, renovou o interesse pelo romance, que recebeu mais duas edições em 1940 e 1941, agora pela José Olympio (e muitas mais depois, por outras editoras). Décadas mais tarde, em 1978, A sucessora se tornaria novela pelas mãos de Manoel Carlos, que recebeu as bênçãos da autora. E em 2020 vimos o remake do Rebecca de Hitchcock por Ben Wheatley, na Netflix. Toda vez que A su­cessora ou Rebecca aparecem, lembra-se de Carolina Nabuco. Mas só pela fofoca do plágio, e não por reconhecimento à sua atuação como intelectual e escritora.

Quando vi a capa com figurinos de papel, eu já era uma pesquisadora experiente que decidira cursar Letras na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Para o trabalho de conclusão de curso, apresentado em 2022, elegi como tema o "A sucessora no contexto do Roman­ce de 30". Nabuco escrevera naquela década, mas praticamente ninguém a associava à escrita. Os poucos es­tudos tratavam do seu apagamento ou do episódio do plágio. O que é uma amostra da realidade: ao conversar com as pessoas sobre o TCC, ninguém reconhecia Carolina Nabuco. Se eu mencionava o plágio e a novela da Globo, alguns se lembravam. Mas esses feitos não fazem jus à sua relevância para a historiografia da literatura e da intelectualidade brasileira.

No terreno da ficção, Nabuco também publicou o romance Chama e cinzas (1947) e o volume de contos O ladrão de guarda-chuva e dez outras histórias (1969). O grosso de sua produção está em gêneros não ficcionais. Sua estreia como autora foi com a biografia do pai, Joaquim Nabuco (1849 – 1910), em 1929 (A vida de Joaquim Nabuco). Nessa seara, escreveu também sobre a vida de Santa Catarina de Sena, em 1957, e a do político e jornalista Virgílio de Melo Franco (1897 – 1948), em 1962; em 1973 saiu seu livro de memórias, Oito décadas. Nabuco assinou ainda dois ensaios sobre o país onde vivera e que adorava: “Visão dos Estados Unidos”, de 1953, e “Retrato dos Estados Unidos à Luz da Sua Li­teratura”, de 1967. Escreveu ainda um catecismo historiado, em 1940 — Carolina Nabuco era uma ideóloga ca­tólica — e o volume Meu livro de cozinha (1977), mistura de receitas, memórias e crônicas culinárias. Publicou também conferências, traduções e muitos artigos na imprensa.

 

Carolina Nabuco, Cícero Dias (à esquerda) e Gilberto Freyre (à direita)
Carolina Nabuco entre o pintor Cícero Dias (à esquerda) e o sociólogo Gilberto Freyre (à direita), em Recife, em 5 de novembro de 1936

 

Desses artigos na imprensa eu soube durante a elaboração do TCC, quando buscava menções sobre A sucessora no acervo da Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional. Naquela ocasião, não pude investigá-los a fundo, mas voltei a eles agora, em 2024, no âmbito de um projeto cultural.¹ Busquei pelo nome “Carolina Nabuco” em periódicos do Rio de Janeiro e São Paulo (os principais centros intelectuais) e de Pernambuco (uma visita de Nabuco a Recife teve grande repercussão na imprensa), no período de 1930 a 1939, pois foi a década de publicação de A sucessora e da con­solidação da escritora. O levantamento encontrou 44 publicações de 33 títulos, sendo que alguns foram veiculados em mais de um periódico, de variados gêneros textuais.

Esse material mostra coisas interessantes: em primeiro lugar, uma mulher que, apesar de conservadora, não se confinava à casa ou às sociabilidades da elite. Teve uma importante atuação pública, talvez viabilizada por sua origem de classe e por não ter se casado e nem tido filhos. Em segundo, a constatação de que Na­buco tinha um “projeto” para o Brasil, alicerçado na ide­ologia católica da época, mas elaborado de acordo com suas vivências nos círculos políticos, econômicos e diplomáticos. É uma visão presente nas reflexões que o narrador de A sucessora atribui à personagem Marina e que, mais tarde, aparecerá em textos não ficcionais. Por exemplo: a incipiência da literatura brasileira; o Bra­sil como o país do futuro, um lugar em que os valores tradicionais ainda estariam preservados, ao contrário do que acontecia na Europa; a decadência da economia rural a partir da Abolição e um questionamento sobre se teria valido a pena. Na lógica do narrador, o trabalhador livre dos grandes centros urbanos, normal­mente operário industrial, vivia de modo mais insalubre do que os escravizados bem tratados e alimentados por seus senhores (sic.).

Para ficar apenas nesse último exemplo, podemos ver que o “racismo cordial” da personagem Marina — presente em boa parte da intelectualidade brasileira da época — aparecerá na comunicação apresentada no III Congresso de História Nacional, em 1938, na qual Na­buco propõe uma visão suavizada da escravidão brasileira. Laivos desse pensamento estão também nas con­ferências realizadas em Recife, em 1936, transcritas em jornais. Nelas, Carolina enaltece a postura do pai, mais reflexiva do fim da vida (já convertido ao catolicismo), em detrimento da militância antiescravista — e até par­tidária da reforma agrária — dos tempos de juventude do abolicionista.

Pesquisadores aventam que o apagamento da autora talvez se deva especialmente a dois fatores: ser mulher e ser conservadora. As poucas literatas tratadas pela historiografia do Romance de 30 são as que questionam o papel social da mulher. Carolina não fez isso. Fez, no entanto, um romance psicológico, a segunda tendência do movimento — a primeira foi a literatura “engajada”. Em prefácio a uma edição de 1964 de A sucessora, o crítico Francisco Assis Barbosa chega a propor Nabuco como antecipadora das experiências mais ousadas de tipo psicológico, apenas muito mais tarde tentadas por Clarice Lispector: “[…] a investigação da autenticidade não direi da mulher brasileira em geral, mas de um tipo determinado de brasileiras, as ‘bem nascidas’, quase todas distinguindo-se por ideias e preconceitos de um tradicionalismo moribundo — que, na realidade, nunca teve peso entre nós —, caracterizadas particularmente pelo medo da vida.”

Discordo fortemente das visões de mundo de Carolina Nabuco e alguns trechos de seus escritos me cau­sam revolta. Sinto o mesmo com obras de autores ho­mens de mesma estirpe, só que eles estão presentes no cânone, ainda quando criticados. Nabuco não deve ser poupada, mas a ela também não deve ser negado o direito à contradição e à crítica sociopolítica e literária. Na pior das hipóteses, estudar seus escritos é acom­panhar a elaboração de pensamentos que fundam nos­sa nada cordial sociedade brasileira.

 

Adriana Tulio Baggio é pesquisadora e trabalhadora do texto. Atuou como redatora publicitária e professora universitária e hoje pesquisa e escreve sobre livros, leitura, literatura e bibliotecas.

Adriana Tulio Baggio