ENSAIO | Alice Munro 14/06/2024 - 09:57

O conto extraordinário dentro do ordinário de Alice Munro

por Carlitos Marinho

 

Em meio a uma noite de pesadelos, após a enferma que estava sob seus cuidados admitir um crime hediondo, Enid, personagem do livro O Amor de uma Boa Mulher, de Alice Munro, sonhou que copulava com parceiros totalmente proibidos ou impensáveis. Nesta mais profunda subjetividade pessoal, a personagem sonhou que tinha relações sexuais com um bebê gordo imperativo, com pacientes envoltos em bandagens, ou com sua própria mãe. Algum tempo depois de acordar, Enid pensou que, caso fosse católica, seria este tipo de coisa que deveria ser revelada numa confissão?

“A lascívia a deixava molhada, oca, gemendo de desejo, e ela buscava se aliviar com rispidez e com uma atitude de pragmatismo malévolo. ‘É, vai ter que ser assim’, ela dizia a si mesma, ‘Vai ter que ser assim mesmo se não aparecer nada melhor.’ E essa frieza do coração, essa depravação prosaica, simplesmente estimulava sua libido. Acordava sem sentir nenhum arrependimento, mas, suada e exausta, lá ficava como uma carcaça até que seu próprio eu, sua vergonha e sua descrença refluíssem para dentro dela. O suor esfriava sobre a pele. Permanecia deitada, tremendo na noite quente, sentindo repugnância e humilhação.”

Na obra de Alice Munro, a crítica literária Coral Ann Howells identifica um tema central: a exploração da subjetividade feminina através da sexualidade e do desejo. Howells destaca que Munro mergulha nas contradições e complexidades dos desejos femininos, tecendo narrativas que revelam a dupla consciência vivida pelas protagonistas em relação aos valores morais da sociedade. Além disso, a obra se distingue pela abertura à interpretação, recusando-se a oferecer respostas definitivas. Essa característica permite que os leitores construam seus próprios significados, dentro de um mundo secreto, a partir da identificação com sua própria realidade.

No mundo secreto, os segredos sempre são acompanhados de um susto. Antes de esclarecer o que está sendo apresentado, Alice lança o interlocutor direto no meio da história. O crítico literário do The New York Times, Gregory Cowles, escreve que se o GPS oferecesse uma rota mais curta, ela recusaria. Alice era capaz de desvios vertiginosos em uma linha ou quebra de linha, sem prosa floreada. Os contos nem-tão-curtos duravam décadas com intimidade e profundidade, isso é em parte o que a crítica quer dizer quando escrevem sobre o escopo romanesco que ela trouxe para o gênero.

 

ALICE

Alice Munro nasceu em 10 de julho de 1931, em Wingham, que fica na província canadense de Ontário. Recebeu vários prêmios literários importantes, incluindo o Man Booker International Prize em 2009 e o principal deles, o Prêmio Nobel de Literatura em 2013. Conhecida como "mestre do conto contemporâneo", Munro começou a escrever histórias aos 12 anos, inicialmente imitando contos de aventura como "A Pequena Sereia" de Hans Christian Andersen e Wuthering Heights de Charlotte Bronte.

Cursou jornalismo e língua inglesa na Universidade de Western Ontario com uma bolsa de estudos, mas interrompeu a formação após dois anos para se casar com seu primeiro marido, James Munro. O casal se mudou para Victoria, na extremidade sul da Ilha de Vancouver, no oeste do Canadá. Lá, abriram uma livraria e Munro começou a publicar suas obras em diversas revistas. Nos 20 anos seguintes, a escritora conciliou a escrita com as tarefas domésticas, o que justifica sua propensão pelo gênero do conto, pois se trata de um texto curto, que escrevia somente à noite, enquanto seus três filhos dormiam.

Em 1973, após o fim de seu casamento de 20 anos, Alice retornou para Ontário. Sozinha, assumiu a criação de suas filhas pequenas e se dedicou à escrita e ao ensino. Quatro anos depois, casou-se novamente, e passou a viver numa fazenda no distrito de Huron. Com um texto gentilmente engraçado e sempre carregado de uma ousada verdade, Alice começou a escrever para a revista New Yorker, em 1977, onde foi uma presença constante durante décadas. No dia 14 de maio de 2024, morreu aos 92 anos.

Curiosamente, a canadense que escreveu sobre a vida em cidades pequenas se tornou sinônimo de revista essencialmente urbana. A aclamada New Yorker foi muito importante para a consolidação do sucesso e fama da escritora. A revista estadunidense detinha um "acordo de primeira leitura" com a autora, o que colocou a New Yorker em primeiro lugar na fila para publicar suas histórias antes de qualquer outra publicação.

De acordo com Joe Cummings, jornalista da Canadian Broadcasting Corporation (CBC), embora os leitores da New Yorker recebessem regularmente o melhor de Munro, muitos na comunidade literária do Canadá apontam que não era necessária uma revista americana (por mais influente que fosse) para entregar os talentos da autora aos canadenses. Linda Warley, professora da Universidade de Waterloo, diz que a ficção de Munro está profundamente enraizada na cultura e no sistema educacional do Canadá.

Segundo a professora, o livro Lives of Girls and Women, de Alice Munro, e que ainda não foi traduzido para o Brasil, seria o equivalente ao O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger. "Seria difícil encontrar um canadense que não tenha lido seu trabalho."

 

CONTO

A origem do conto tem suas raízes nas narrativas orais folclóricas, mitos e lendas que os homens primitivos contavam ao redor das fogueiras. Essas histórias eram repassadas de geração em geração e modificadas por cada contador, caracterizando uma criação coletiva sem autoria definida. As primeiras compilações desses contos, como as de Partênio de Niceia, apresentavam anedotas e proezas de pessoas comuns. Na França, surgiram os fabliaux, histórias populares em verso que encontram correspondências nas ballads da Inglaterra, Escócia e países escandinavos.

Com o tempo, os contos passaram a ser escritos em prosa, inicialmente de forma rudimentar, até que se desenvolvessem em narrativas mais estruturadas. Durante o século XIX, autores como Guy de Maupassant e Anton Tchekhov se destacaram criando contos que exploravam a vida cotidiana e a complexidade humana com profundidade psicológica e uma estética refinada.

Na modernidade, houve um afastamento das estruturas fechadas e dos finais surpreendentes típicos do conto clássico. Autores como Julio Cortázar destacam que o conto moderno se caracteriza por uma narrativa cheia de tensão, eliminando transições desnecessárias e focando em uma história que se desdobra de maneira sutil. Cortázar compara o conto à fotografia, com sua limitação estética que exige precisão e profundidade, enquanto o romance se assemelha ao cinema, com uma "ordem aberta" que permite mais liberdade narrativa.

Nesse sentido, Edgar Allan Poe pode ser considerado um pioneiro na evolução do conto, cujas inovações estéticas influenciaram muitos autores subsequentes. A evolução do conto, de uma forma simples e oral para uma narrativa literária complexa, reflete a mudança nas práticas culturais e nas técnicas narrativas ao longo do tempo, culminando na obra de autores contemporâneos como Alice Munro, que utilizam a narrativa curta para explorar a profundidade emocional e as intrincadas relações humanas.

As histórias de Munro, revigoradora do conto contemporâneo, não dependem de grandes dramas externos, mas sim de uma rica trama emocional de silêncios, mentiras e anseios. As barreiras de gênero e classe são temas recorrentes em sua obra, que busca captar a essência do extraordinário dentro do ordinário e refletir um entendimento feminino oculto, seja sobre os seus corpos ou dos paradigmas que ditam a vida das mulheres. Em uma entrevista, como a própria Alice sugeriu, suas histórias continuam existindo em algum lugar.

 

Carlitos Marinho (1997) nasceu em Mariluz, no Paraná. É jornalista na Secretaria de Estado da Cultura do Paraná e pesquisa Gestão Cultural no Programa de Pós-graduação da Unespar.