CRÔNICA | As linhas tortas de Edival Perrini 19/09/2024 - 14:37

por Carlitos Marinho 

 

“Ele é bem discreto”, foi como Marianna Camargo, editora do jornal Cândido, descreveu o poeta e psicanalista curitibano. A missão dada por ela foi realizar uma entrevista com Edival Perrini, 75 anos, que está lançando o seu sétimo livro de poemas, Oceano, pelo selo TAO, da editora Blucher. A obra reúne poesias das principais publicações do autor, além de poemas inéditos. Para ter acesso ao misterioso poeta, eu precisaria entrar em contato com Cleuza, esposa dele. Resolvi mandar uma mensagem de texto no WhatsApp. Depois, pensei: “Seria eu muito geração Z por ter enviado mensagem ao invés de ligar?” Fatalmente, concluí. 

Três dias e nada de resposta. Será que errei o tom? Será que o número dela está certo? "Que desagradável esse Carlitos", imagino eu o que Cleuza estaria pensando sobre a mensagem. É, a ansiedade realmente é o mal da minha geração. Bom, resolvi ligar, timida­mente.

Mas antes de ligar, dou um google para confirmar o contato — afinal, ambos são médicos psiquiatras e, quem sabe, eu estou com o número errado. Encontro o contato do consultório de Edival. Ligo. De primeira, ouço uma voz grave, mansa, levemen­te rouca, que, sem me dar bom dia, já me fala de supe­tão: “Estou de férias e retorno no dia 30 de julho, deixe uma mensagem na caixa postal”. Desligo. Naquele momento pensei comigo mesmo que nunca tinha visto isso de deixar mensagem na caixa postal. E muito menos com a voz da pró­pria pessoa. Achei que estava em um filme norte-ame­ricano. Será que é normal os curitibanos fazerem isto? Eles odeiam tanto assim receber um áudio no WhatsApp? Na minha terra, Campo Mourão, acho que este chiste não existe, pelo menos. Ouço religiosamente os áudios de três minutos da minha vó. Ainda bem que não mandei figurinha de “Bom dia” no “Whats” da Cleuza.

Para cortar um pouco do mistério, resolvi ligar para o contato que a Marianna me passou. Depois de três toques, Cleuza atendeu. Era uma voz que sorria, de alguém feliz. Ela me disse que leu a mensagem que eu tinha enviado e que logo Edival me ligaria. Acrescentou que ele só não tinha ligado ainda porque estava de férias. Mais tarde, no mesmo dia, recebo a ligação de um número desconhecido com o DDD 41. Esqueço que poderia ser o Edival, apenas agradeço por não ser um nú­mero de São Paulo e atendo. Numa rápida surpresa, identifiquei a voz. Era ele, a voz do homem da caixa postal. O misterioso Edival. Conversamos por cerca de dez minutos. Uma voz alegre assim como a de sua esposa. Diálogo que te deixa feliz e honrado. Trocamos e-mail, pois Edival não usa WhatsApp. Manias de um poeta cu­ritibano, penso eu. Mas de qualquer maneira, o encontro estava marcado. Seria no sótão de sua residência. Um local privilegiado que ele mesmo mandou construir. Segundo o escritor, foi onde nasceu a sua poesia.

Capa de "Oceano", lançamento de Edival Perrine
Capa de "Oceano", lançamento de Edival Perrine

 

Chegou o grande dia. Para encontrar o rincão do poeta, Edival relatou que uma grande araucária seria o ponto de referência, que ele mesmo plantou há 40 anos. A primeira coisa que vi, depois da imensa árvore, foi a janela do sótão. Ah, que enigmas guardariam este sótão? Encarei a janela por alguns segundos enquanto atravessava a rua em direção a sua casa. A fachada era impecável. A grama estava bem cortada e cascalhos adornavam as plantas. Apertei o interfone. Era a voz de Cleuza. De repente, um homem de praticamente 1,70 m de altura abre a porta. Era o misterioso Edival. Com um grande sorriso e, ao mesmo tempo, um olhar impiedoso, ele disse que eu teria dificuldade para entrar na casa. Eu, com a minha timidez de costume e o meu ca­rac­terístico sorriso amarelo, perguntei o porquê. Edival respondeu que o portãozinho não estava abrindo, e eu teria que entrar pelo portão eletrônico da garagem. “Será que você passa?”, perguntou com um olhar desafiador. Dou risada, com um leve desespero, e entrei, como um cachorro caramelo com o rabo entre as pernas.

Edival Perrini, Dalton Trevisan… Por que estes escritores gostam tanto da escuridão? Bom, para mim a escuridão é agradável, e foi esta a primeira impressão que senti ao entrar na casa de Edival. A sala era muito aconchegante. Madeirado. Cortinas fechadas. Uma estante cheia de latas de cerveja de vários lugares do mundo. Um bar com vários possíveis drinks. Tudo em madeira e escuro. Um lugar que você sempre desejou estar, mas nunca visualizou. Como a lembrança de um sonho fragmentado na memória após acordar. Pensando bem, por que os lugares em Curitiba são tão rústicos e escuros? Barbaran, Bife Sujo, Kapelle Bar, Bar do Tatára, ou o sótão de Edival. Sim, descobri o refúgio do misterioso poeta. Não que o espaço fosse exatamente escuro, pois lá Edival colocou uma luz de farmácia. Deve ajudar na leitura. E como lê. Ao subir a esca­da até o sótão, vi caixas de livros e algumas edições de jornais cuidadosamente colocados sob os degraus — não pude deixar de reparar em uma linda capa do jornal Relevo. Sobre a bagunça organizada de sua escada, Edival disse que Leopoldo Scherner foi a inspiração. “Espere só um momento, Edival, por favor. Posso iniciar a gravação de voz para não perder nenhum detalhe?”

O escritor Leopoldo Scherner, falecido em 2011, foi amigo de Edival e ajudou a fundar o Grupo Encontrovérsia, que existe até hoje ininterruptamente desde que foi criado, em 1980. Com reuniões quinzenais, os membros compartilham o que estão lendo, analisam a criação de prosa e poesia de autores do Brasil e do mundo, e criam um espaço de crítica sobre a própria produção de seus participantes. As primeiras reuniões do coletivo de poetas eram na Casa do Estudante Luterano Universitário (CELU), com Leopoldo, Edival, Jandyra Kondera e Luiz Alberto Pena Kuchenbecker. Depois dos encontros, os escritores do covil iam tramar mais controvérsias no antigo bar Lá no Pasquale, que ficava no Passeio Público. Inclusive, Paulo Leminski participou de algumas reuniões. “Ele era muito chato, bebia demais. Criticava os nossos textos com veemência”, disse Edival.

E com veemência foi o início da nossa conversa e tudo o que as paredes do sótão diziam. Eu e o misterioso, em sua ainda misteriosa caverna. Mario Covas, Diretas Já!, Mahatma Gandhi, Edifício Itapuá, Calendário de Kama Sutra, Pablo Neruda, Psicanálise, Dulce Osinski, Zequinha, Coyote (do desenho), Guernica, Charlotte Becker, Prefeito Dobrandino 15, Manoel de Barros, Helena Kolody, Iemanjá, Museu Chileno de Arte Pré-colombiana, A Lenda do Jardim do Éden: A Psicanálise do Gênesis, Sexofone, Cerveja Antarctica, Amigo Aprendiz, virada do milênio na Ilha de Páscoa, pastilha Tic Tac, Serra Catarinense, entre infinita outras que a minha memória e a Canon não conseguiram capturar.

“Não posso deixar tudo isso engavetado. A vida é feita de pequenos detalhes”, disse o poeta durante a nossa conversa. Os objetos nada mais são do que a extensão da memória do pequeno Edivalzinho, do sótão da já demolida casa de sua avó, que resiste bravamente nas paredes da atual caverna. Para entender a afirmação acima, é preciso voltar para o ano de 1998. 

 

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Foto: Carlinhos Marinho | Edição: Cândido
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Foto: Carlinhos Marinho | Edição: Cândido
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Foto: Carlinhos Marinho | Edição: Cândido
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Foto: Carlinhos Marinho | Edição: Cândido

 

 

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Edival Perrini mostra a capa do seu novo livro Oceano, que tem uma pintura de Monet, e compara com a pintura feita por Dulce Osinski, que leva o poema “Vértice”, do próprio Edival: “Homem em pé sobre a canoa. Pesca a manhã de cada dia, noventa graus de poesia.” Fotos: Carlitos Marinho | Edição: Cândido
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Peixe símbolo da casa de Pablo Neruda, “La Isla Negra” Fotos: Carlitos Marinho | Edição: Cândido
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Edival Perrini apresenta livro de sua infância. Fotos: Carlitos Marinho | Edição: Cândido

 

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Foto: Carlitos Marinho | Edição: Cândido

 

Edival pediu ao artista Poty Lazzarotto que criasse a capa de seu livro Armazém de ecos e achados, título inspirado no armazém de secos e molhados de sua avó. Ele solicitou que Poty desenhasse não só a casa da avó, mas também os devaneios, sonhos e terrores que viveu durante a infância naquele lugar. No entanto, o desenho final retrata apenas a casa, os sonhos ficaram de fora. Poty disse que complementaria em 15 dias e sugeriu que pegasse o desenho em definitivo no dia 15 de abril.
Edival pediu, então, que recebesse apenas o esboço assinado, para colocar em moldura para o noivado da filha. Poty, já debilitado por um câncer no pulmão, provocou: “Por que você acha que não consigo entregar em 15 dias? Acha que vou morrer?” Em seguida, garantiu que finalizaria o desenho. Eis que no dia 8 de maio de 1998, dez dias após a conversa entre eles, Poty faleceu.

Edival relatou que, na época, procurou o cartório do irmão de Poty, para saber se o desenho havia sido feito. O irmão disse que não sabia e que não poderia devolver nenhuma obra, pois tudo iria para o inventário do artista. Vinte e seis anos depois, Amilcar Marques, amigo de Edival, entrou em contato com Cleuza após visitar uma exposição de Poty no Museu Oscar Niemeyer, que exibiu obras do acervo pessoal do artista. “Cleuza, vi um desenho na mostra que se parece muito com a casa da avó do Edival. Será que é?”. Edival foi conferir. Seus olhos mal podiam acreditar. Eram os sonhos do pequeno Edival.

Para a imensa surpresa de Edival, que vez ou outra acordava no meio da noite pensando nos seus sonhos de infância, a fantasia tornou-se realidade. A casa e a rua retratam a terra, a realidade. Já os sonhos de Edival no sótão são o céu, a utopia. Nos sonhos, uma banda de fanfarra militar faz um som com alguns instrumentos de jazz. A Paróquia Senhor Bom Jesus dos Perdões também estava em sua fantasia, o barulho dos sinos acalmavam a doce criança que temia o barulho das palmeiras com o vento da noite. Percebeu a quantidade de soldados? Ele adorava brincar com soldadinhos de brinquedo na casa da avó. “Achei excessivamente militarizado”, disse Edival sobre o desenho. E tem mais, os soldadinhos cuidavam dele enquanto dormia e seguravam o planeta do Pequeno Príncipe, livro pelo qual o poeta é apaixonado. Para completar a fantasia, uma caravela viking com Papai Noel e o carro do leite surgem no cenário. “Lembro do barulho do carro. O leiteiro pegava dois baldes vazios e entregava dois cheios”, recordou. Há mistérios nesse desenho que ele ainda tenta decifrar.

 

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Ilustração: Poty Lazzarotto | Edição: Cândido

 

Assunto vai e assunto vem, duas horas depois de entrevista, percebi que Edival balançava muito as pernas e dava respostas curtas. O excesso de palavras deixou o sótão abafado. Fazia muito calor naquele final de tarde de inverno em Curitiba. O escritor interrompeu a conversa e pediu licença para ir ao banheiro. Fiquei sozinho no esconderijo e pensei: “está ficando tarde”. Fui conferir o horário no celular e… “Por que o gravador de som não está ligado?”

Os meus olhos arregalaram e paralisei por alguns segundos. O mundo parou naquele momento. Todas as lembranças de Edival na parede me encararam com desafeto. O que eu faria agora? Naquele instante, Edival voltou do banheiro e disse: “E aí, o que mais temos pra hoje?”, como quem já estava entediadamente cansado. Eu, atônito, inicio a gravação e faço uma série de perguntas esotéricas sobre a vida, religião e juventude. Daqui eu tiro alguma coisa, pensei. Uma, que a minha memória pescou, foi perguntar para Edival se ele ainda acredita que Curitiba é uma cidade sem orgulho e que não é convencida de si mesma.

A primeira reação de Edival foi questionar. “Onde escrevi isso?”. Mostro para ele, com o livro dele que comprei no sebo. “...Não és a maior das metrópoles. És, somente, Curitiba. Sem máscara, sem orgulho! É por isso que gosto de Ti. Tu não és convencida. És apenas Curitiba…”, está no livro Entre sem Bater, de 1972, fase que o poeta se considera um “jovem aprendiz”, ainda. Ele entoou a voz e começou com um: “Bom, meu caro”, e disse que Curitiba era uma cidade de passagem, onde as pessoas não criam raízes, e que é diferente de Salvador, por exemplo, de onde ele é fã e ama visitar. “Odeio o frio e adoro Iemanjá”, justificou.

O segundo tempo da entrevista me rendeu mais uma preciosidade, vejam só. Ao perguntar sobre a coleção de livros de Edival, questionei se ele teria algo raro. Eis que ele me mostra o livro Toda Poesia, de Ferrei­ra Gullar, que reúne os dez livros de poemas do poeta maranhense, publicados ao longo de quase 60 anos. A edição estava errada. Ou melhor, corrigida. Edi­val contou que foi até a casa de Gullar para tomar um café. Apresentou o livro e tomou um chá. Olhem abaixo as correções que o próprio Ferreira Gullar rasurou.

 

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Fotos: Carlitos Marinho | Edição: Cândido
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Fotos: Carlitos Marinho | Edição: Cândido
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Fotos: Carlitos Marinho | Edição: Cândido
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Fotos: Carlitos Marinho | Edição: Cândido

 

 

 

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Fotos: Carlitos Marinho | Edição: Cândido

 

Já na minha tardia hora de ir embora, depois de muitas fotos, fui checar o celular. É um “tic”. Coisa de Geração Z. É necessário ver se tem alguma notificação na tela. Noradrenalina que fala, né? Ou ocitocina. Não sei. Só sei que senti mais um pouco de adrenalina ao ver que novamente eu não tinha gravado nenhum mísero som de Edival. Cortisol? Antes eu tivesse uma caixa postal em mãos. Gravaria lindas mensagens de voz. Reparei bem no meu celular e identifiquei o erro. Ou melhor, os erros que cometi. Por duas vezes eu apertei o botão de gravar a tela do celular ao invés do áudio. Rá! Estou anos-luz atrasado em tecnologia do que Edival em sua caixa postal. Quer saber? Vou pra casa porque deu a minha hora, tentar gravar um áudio com o que a minha memória lembrar e colocar tudo no papel. Mas antes, preciso passar em outro lugar. Seria um desvio de TDA? Fatalmente, concluo.

Lembram quando eu disse que levei um livro do Edival que comprei no sebo? Quando comprei, percebi que haviam dedicatórias nos dois livros. Com muita dificuldade, compreendi que as mensagens eram endereçadas para Dolores, e tinha uma assinatura que poderia ser do próprio autor do livro. Mostrei para o Edival e ele confirmou. Foi ele mesmo que havia feito a dedicatória no ano de 1982 para o seu colega. Com a mesma sorte de Dolores, ganhei alguns livros com a dedicatória do escritor.
Pois bem, no dia 20 de setembro, das 19h às 22h, na Livraria da Vila, que fica no Shopping Pátio Batel, Edival faz o lançamento presencial de seu livro, Oceano, com sessão de autógrafos. Será uma excelente opor­tunidade para conhecer o médico escritor. Se você tiver a sorte e o privilégio de conseguir, assim como eu, uma dedicatória em seu livro, terá que ir à farmácia logo após sair da livraria. Foi o que fiz naquela noite em que saí da casa de Edival. Dizem que a letra de médico é feia. É o caso do Doutor Edival, que escreve certo por linhas tortas.

 

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Escrivaninha do sótão de Edival Perrini Foto: Carlitos Marinho |Edição: Cândido

 

Carlitos Marinho (1997) nasceu em Mariluz, no Paraná. É jornalista na Secretaria de Estado da Cultura do Paraná e pesquisa Gestão Cultural no Programa de Pós-graduação da Unespar.

 

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Foto: Anderson Tozato | Edição: Cândido