CRÔNICA | Maltrapilha e desganhanta 24/02/2025 - 15:50
Por Aline Brandalise
Sentada à mesa do lado de fora de um café no centro da cidade — daqueles em que o café custa o preço do bolo, o bolo custa o preço do prato feito, e o prato feito custa o preço de um apartamento de três quartos —, vejo uma cena que, de tão rotineira, me dá medo.
Um homem maltrapilho, malvestido, barbado, de cabelo desgrenhado e chinelos se aproxima rapidamente de uma senhora de cabelo escovado e topete, salto que faz TEC-TEC e roupa de alguma loja em que a blusinha custa o preço de dois apartamentos de três quartos.
Tá. O que eu faço? Queria ajudar de alguma forma, mas sou cagona demais pra me meter. Deveria pedir socorro pro moço do café? Gritar: "SE AFASTE DESSA MULHER DE TOPETE, SENHOR MALTRAPILHO!"?
Eu podia só me aproximar e fingir que ela é minha mãe. Ou podia continuar quieta tomando meu café caro, enquanto observo a cena, que, pra mim, já era um desastre.
Ele deve ser drogado, vai roubar essa bolsa caríssima aí. Tomara que seja rápido, tomara que ela consiga bloquear os cartões, tomara que os anéis sejam bijuteria, tomara que ele seja gentil. Um ladrão gentil, sabe? Não custa nada, poxa. Um pouco de gentileza pra não traumatizar a pobre senhora rica.
Só que... SÓ QUE... eles estão sorrindo! COMO ASSIM ELES ESTÃO SORRINDO?
Cadê o roubo, o choro, o medo? Cadê a emoção?
Um café tão caro pra assistir eles sorrindo?
O sorriso de AMBOS me faz repensar a cena. A anterior estava cheia de estereótipos absurdos. Até a gente, que se acha muito esclarecido e descoladinho, cai nessas armadilhas. Né? Eu caio.
Mas tá... então o cara maltrapilho, malvestido, barbado, de cabelo desgrenhado e chinelos não é bandido. Até nem acho mais o cabelo tão desgrenhado, sabe? Parece mais estiloso. O sorriso tem todos os dentes e, pra falar bem a verdade... até que ele é bonitão. E CARACA! Eles se parecem. O moço estiloso e a senhora de salto que faz TEC-TEC!
Mãe e filho, certeza! Se amam muito, mas se veem pouco. Ele preferiu abrir mão de ser herdeiro da empresa hoteleira que leva o nome da família há quatro gerações, para viver livre, conhecendo o mundo e dormindo em albergues, barracas e colchões de ar por aí.
Ela, embora muito puta com a decisão do filho, o ama. O sorriso me diz isso.
Lindo sorriso do moço. Pegaria fácil.
Até que pagar o preço de uma moto nessa torta de cranberry com pistache valeu a pena, afinal. Amo histórias de amor.
Calma... mas quem foi que disse que ela, a senhora, é essa paz toda? Essa princesa intocada pela maldade? Eu hein!
E se a maltrapilha for ela? Falida e com problemas psicológicos gravíssimos depois de uma péssima gestão nos negócios da família e um caráter bem questionável, ela sai por aí com suas últimas roupas de marca (que ainda não foram vendidas em algum brechó em troca de trocados) e as últimas joias (ainda não penhoradas), pedindo dinheiro aos transeuntes.
Chega toda sorridente como quem não quer nada, com essa fantasia de boa senhora, ex-boa-moça, e depois ameaça a pessoa com uma pequena faquinha de aço puro.
Esse topete bonito não me engana, minha senhora. Aqui não. Tô ligada no seu lance. Tem muita maltrapilha por aí se fazendo de madame TEC-TEC que eu bem sei.
Talvez a drogada seja ela... por que não? E ele seja apenas uma vítima. Ele tem mesmo cara de guru espiritual dessas religiões diferentonas. Às vezes ele tá tentando salvar a alma dela da degradação ou apoiando-a com uma ajuda de custo, já que o vício em heroína deixou ela nesse estado, morando de favor na casa dos outros.
Mas esse sorriso aí... esse sorriso... caramba... E se fossem amantes?
Ai, sei lá. Uma coroa linda dessa com esse moço todo moderno? Já amei!
Ele deve ser o piscineiro da família e, um dia, eles se esbarraram no jardim. Os dois suaram um pouco (não disse por onde), porque a combustão da energia sexual foi imediata. Durante o dia, ele acabou cortando o dedo, distraído e nervoso que estava; ela viu.
Claro que viu! Ela viu cada movimento dele naquele dia. Fez-se de preocupada e fez questão de aplicar um curativo. Levou ele pela mão para dentro da mansão. Viúva há sete anos, ela não sentia essa quentura há uns vinte anos. Aí, ele teve que tirar a camisa suja de sangue e... espera... se despediram.
Se afastaram. Um pra cada lado.
Sem abraço materno. Sem beijo de língua. Sem furto. Sem faca no bucho.
Ai, poxa vida, sabe?
Se eu soubesse, não teria pedido as bruschettas (que me custaram uma passagem pra Paris).
Talvez a verdadeira maltrapilha desgrenhada por aqui... seja eu.
Hora de pagar a conta.
Aline Brandalise nasceu na cidade da Lapa (PR) e reside em Curitiba. Formada em Jornalismo e especialista em comunicação e marketing, encontrou nas crônicas uma forma de expressar sua visão do mundo. Conhecida pelo codinome "AB", ganhou destaque ao publicar suas crônicas leves e ácidas nas redes sociais. Recentemente lançou seu primeiro livro intitulado Às vezes me sinto uma espectadora da vida real pela Editora Arte e Letra em parceria com o Jornal Plural.