CONTO | A Polaquinha 15/07/2024 - 10:02
por Myriam Scotti
A louça do almoço perambulando há horas, enquanto procrastino me balançando na rede e olhando para o teto, relembrando, relembrando. A tarde durante o verão amazônico é abafada e a vontade é de continuar deitada na minha rede, esperando a noite chegar. Sem mais poder fugir da obrigação, levantei-me. Cida já estava por lá, como sempre. Ela diz que tem um futrico no rabo e não consegue descansar. Eu, por outro lado, sou lenta, aprecio o silêncio e a quietude. Cada uma tem seu ritmo de viver os dias.
Pratos, talheres e copos lavados, depositados no escorredor. O sol batendo impiedoso na pia me faz suar e sinto o vestido começar a colar nas costas, não suporto. Feh! Sinto nojo. Balanço as mãos para tirar o excesso d’água, pego um pouco de açúcar na lata, volto à pia e começo a esfregar as mãos com força, como minha mame me ensinara na infância:
“Isso, kindella, esfrega bem para deixar suas mãozinhas sempre delicadas. Homem não gosta de mulher com mãos grossas, que aparentem trabalho pesado.” Agora sim, estão mais macias, disfarçando o uso de sabão de má qualidade, mas, ainda que permaneçam delicadas, acabo me deparando com os primeiros sinais de que a juventude se apressa em se despedir do meu corpo. Procuro o pano de prato para me enxugar e vou até a gaveta onde guardo a faca de que gosto para descascar tucumã. Cato uma vasilha e vou em direção ao quintal. Costumo vir aqui para sentar debaixo da mangueira e descascar os frutos, enquanto observo as crianças de Cida revezarem o balanço. Ela não larga a cozinha, tem sempre algo urgente por fazer. Nesse instante, depois de me acomodar numa sombra, assisto-a de pé, com a perna direita apoiada na lateral do joelho esquerdo, uma das mão na cintura e a outra segurando a alça da panela que esquenta a água do café. Em seguida, observo-a temperar a goma com um pouco de sal e pedacinhos de castanha para preparar as tapiocas da merenda. “Mana, te avia e traz logo as lascas desses tucumãs pra rechear as tapiocas. Tá perdida de novo em pensamento besta é?”. “Nay...”, tento disfarçar. Cida é assim, impaciente como só ela. Tem mania de me criticar toda vez que me surpreende longe do agora. Mãe dedicada, impressiona-me o zelo com seus meninos. “Filhos são gerúndio, não infinitivo”, vez em quando me repete essa frase feito reza e me conta que cresceu com a mãe acordando-a com um beijo para tomar o café, alimentando-a com os peixes que pescavam no rio Negro, ralhando pelas traquinagens que fazia com os irmãos, ensinando-a a preparar a mesma tapioca que ela ia nos servir, banhando-a na beira do rio, antes de anoitecer, para refrescá-la do verão equatorial de julho a outubro. Vida simples, vida feliz. Perto da floresta, o tempo é devagar, os dias são mansos, a não ser pelas tempestades vez ou outra, para que ninguém esqueça quem dá as ordens ali.
Mas, além de Cida, quem costuma me salvar dos pensamentos desatinados, aqueles que me levam para o meu país de origem, são as águas desses rios e igarapés. Ao mergulhar pela primeira vez no Negro, fui arrebatada por ele, tornei-me íntima feito amante, como se sempre tivéssemos pertencido um ao outro. Suas águas escuras não se demoraram em esconder e roçar meu corpo para que só ele me observasse, tocasse, lambesse. Logo permiti seus banzeiros me levarem para longe da margem, porque sabia que esse rio me desejava dentro, perto, como também passei a desejá-lo. É ele quem por hábito ou pena recebe minhas lágrimas, meu sangue, meu gozo e meus odores. Ninguém passou a me conhecer mais que o Negro. Já carregou para o fundo aqueles que de mim escorreram. Amei cada anjinho que me habitou, mas que não pude deixar vir ao mundo. Preferi entregá-los ao rio, que sabe guardar meus segredos, sempre cúmplice das minhas perdas.
Depois que cheguei nesse quase fim de mundo para ficar, quem me acompanha nos mergulhos são os meninos de Cida: Francisco e Joaquim. Amo-os como se fossem meus bubbales. Talvez queira ver neles algo das crianças que perdi como castigo pelo trabalho que, após pouco tempo, aprendi a gostar mais do que deveria. Toco nos seus cabelos e penso como seriam os dos meus filhos. Ao banhá-los, imagino meus bebês, que não puderam experimentar meus cuidados. Se preparo algo para comerem, finjo que é para os meus filhos que entrego os pratos. Um amor construído em perdas e útero esvaziado. Será que um dia darei à luz? Será que ainda serei merecedora da honra de carregar alguém no ventre até o fim, até berrar as dores do nascimento? Eu, que fiz tantos homens mamarem e suplicarem para tocarem meus seios, poderei um dia vê-los cheios de leite para amamentar meus próprios bezerros? Responda-me, árvore que me aconselha, gozarei um dia deste privilégio?
Todo fim de tarde, Joaquim e Francisco me arrastam para a praia. “Vem, tia. Fica triste mais não, vem anadar com nóis, vem!” Os irmãos caminham lado a lado, na ilharga, como costumam dizer por aqui, feito sombra um do outro, lembrando as minhas irmãs, das quais fui afastada há tantos anos e, provavelmente, não voltarei a encontrar. Joaquim, o caçula, gosta de me pregar peças. Costuma sumir de repente nas águas, e, passados uns minutos, depois de me causar desespero, acreditando que se afogara, o menino reaparece longe, acenando com alegria. Levo as mãos ao peito, reconfortada, tentando acalmar o ritmo da respiração já cansado. Nadamos então de volta à praia e depois de retomarmos o fôlego, os irmãos me abraçam, desconfiados da minha carência de afetos. São crianças inteligentes, aprendem rápido a se virar. Já sabem pescar, subir no açaizeiro com destreza, colher frutos, têm força para carregar peso e ajudar em casa, mas sonham ir para a capital Manáos, para frequentar escola boa e sair da pobreza. Ingênuos, não fazem ideia de que a riqueza está onde nasceram e que a cidade grande talvez os engula antes de se tornarem homens. Quando eu tinha a idade deles, já não me era permitido sonhar tanto assim. Ter o que comer era a única busca das famílias da minha Shtetl, uma entre tantas comunidades judaicas polonesas. Mame ainda tentava nos fazer esquecer dos problemas quando nos colocava para dormir, mas era difícil confiar que teríamos direito a um futuro próspero. Por volta de 1904, sob o domínio da Rússia czarista, as Shtetls já padeciam com os pogroms, o que nos arrancava qualquer esperança de melhoras. Foram tantos ataques às comunidades judaicas, que já não nos surpreendíamos. Ainda sou capaz de escutar as risadas e as pisadas fortes daqueles homens enquanto se aproximavam de nossa casa.
Cientes de que estávamos celebrando alguma data importante, saíam de suas casas com o intuito de nos arruinar. Como se aguardássemos uma guerra, já sabíamos o que tínhamos de fazer se quiséssemos sobreviver. Por maiores que fossem os barulhos, Tate permanecia imóvel, rezando, rezando, rezando. Seu corpo balançava para frente e para trás, entrava em transe, enquanto saqueavam nossas poucas coisas. Mami tinha ordens de se trancar conosco em outro cômodo, para assegurar que não mexessem com suas meninas, nem machucassem o nosso bubbale, ainda de colo. Bradavam: “Judeus malditos, sujos, saiam daqui!” e riam, riam, riam. Depois o silêncio, hora de sair para recolher os restos e esperar a próxima visita.
Ainda abraçados e feito estátuas, meus irmãos e eu assistíamos Mame se aproximar de Tate, chamá-lo, mas ele não conseguia parar de se balançar, estava fora de si. Mame, então, desprezando nossa presença, deixava as primeiras lágrimas escorrerem, as costas arquearem, o rosto murchar, desfazendo a aparência de fortaleza que sustentava diante de nós, e passava a sacudir o nosso Tate, ali tão frágil, como se fosse um órfão, para que voltasse para casa, para nós. Ele colocava as mãos nos ombros dela, encostavam, aos soluços, as testas por alguns minutos, depois recobravam a razão, retomavam o lugar de pais e fingiam que nada demais acontecera.
Aos dezesseis anos, sem mais suportar aquela vida, aceitei o primeiro pedido de casamento que recebi. De início, pensei ter tirado a sorte grande. O noivo, além de boa aparência, era rico. Explicou ao meu pai que sua família fizera fortuna nas Américas, para onde nos mudaríamos, logo depois da cerimônia. Mas, a verdade era que eu era uma das centenas de judias miseráveis, trocadas feito mercadoria para servir a lascívia de homens muito ricos no Brasil e na Argentina. Depois de ser arremessada de cidade em cidade para o colo de homens asquerosos, aportei em Manaus, o lugar onde fui menos infeliz. Cida me ajudou a fugir do meu dono e aqui estou, nesse fim de mundo, onde já não penso que dia ou mês do ano estamos. Não faz diferença. Aqui, todos os dias são os mesmos, não há novidade nem aventuras nem música, só a cachaça, minha grande amiga, depois de Cida, claro!
Myriam Scotti nasceu em 1981, em Manaus (AM). É escritora, crítica literária e mestre em Literatura pela PUC-SP. Seu romance Terra Úmida foi vencedor do Prêmio Literário de Manaus 2020. Em 2021, seu romance juvenil Quem chamarei de lar? (Editora Pantograf) foi aprovado no PNLD (Programa Nacional do Livro e do material Didático) literário e escolhido pelo edital Biblioteca de São Paulo. Em 2023, lançou o livro de poemas Receita Para Explodir Bolos (Editora Patuá). Foi finalista do prêmio Pena de Ouro 2021 na categoria Conto. Em 2023, ficou em segundo lugar na categoria Conto do prêmio Off Flip.