CONTO | Michel Neves 30/06/2023 - 10:18
Casa-grande e negra
Há quem diga que coisas e lugares têm alma, e há quem diga que não; não me atrevo a dar meu próprio parecer a respeito, apenas falarei daquela famosa construção erguida no sudeste do Brasil.
Começou a se levantar em meados do século XVIII, não seria mais uma das “tantas construções com acabamento grosseiro, chão de terra batida e telhado de palha, e sim um castelo”, dizia o senhor Figueiredo, ainda jovem na época. Não é de se estranhar que o projeto tenha sido encomendado de um arquiteto de origem francesa, “um arquiteto de verdade”.
No entanto, apesar da planta ser europeia, a casa não era. Tal como pais biológicos podem até gerar um filho, contudo o filho enxergará seus pais nas figuras que o alimentaram e o educaram, assim era com a casa. Seus pais biológicos estavam do outro lado do Atlântico, sem nunca terem a visto de verdade, se preocupavam com os reveses políticos de sua própria terra. Já seus pais de criação, estes tinham pele escura e falavam um idioma que a casa aprendeu de tanto ouvir, um misto entre português e múltiplos dialetos de um continente distante, com ocasionais usos de francês (adquirido dos povos que usurparam sua terra natal).
Foram esses pais e mães negros que levantaram a casa. Com seus braços fortes prepararam a massa, juntaram tijolos e erigiram paredes. Alguns, mais tarde, comentariam (até de forma pejorativa) de como as telhas foram feitas nas coxas de seus pais; isso é apenas boato, mas o fato é que eles é quem subiam a mais de 8 metros do chão, arriscando-se para dispor os mais de 300 m² de telhado. Esses pais e mães usavam, ainda, conhecimentos antigos, vindos de seu berço, a mais de 8.000 km de distância, para corrigir equívocos dos pais biológicos. Assim acertavam algumas paredes com taipa, dentre outros materiais e técnicas.
Mas a casa achava estranho. Era estranho que seus pais não a levantavam com alegria. Eles a nutriam com seu suor e sangue, mediante um pretenso comando de pessoas mais parecidas com seus pais biológicos, que a casa nem conhecia. E foram três anos, sob o suor e sangue desses progenitores de pele escura, suficientes para que a casa estivesse terminada.
E era espetacular, talvez a mais suntuosa de seu tempo nas terras daquele lado do Atlântico. Formada por um prédio principal, com um grande portal de entrada e telhado em duas águas, e dois anexos de cada lado, telhados em quatro águas. Todos com dois andares e totalizando, na fronte do prédio, 20 grandes janelas, cada uma com sua pequena sacada. Janelas e portais todos com a madeira esculpida de forma rebuscada, por um dos seus pais que todos chamavam de Neco, que o fez sendo apressado e ameaçado pelos homens de pele branca que não valorizavam sua arte. No interior havia grandes salas de estar e de jantar, além de despensa, cozinha e 24 quartos para a família do senhor Figueiredo e seus hóspedes.
A Casa-Grande, porém, após pronta, novamente estranhou o que acontecia. Seus verdadeiros pais, que a fizeram ser quem era, que a levantaram com suas mãos, nela não dormiam, tampouco descansavam. Após terminá-la eles foram junto de outros, trabalhar no plantio e colheita daquelas plantas que chamavam de café. Além disso, continuavam a dormir numa outra moradia, quase desabando, que a Casa-Grande antes achava ser apenas provisória. E aqueles marcaram os primeiros de muitos desgostos da casa.
Em seu interior o único alento era na cozinha, onde podia ver algumas de suas mães e de suas irmãs (pois eram filhas de suas mães e pais), a cozinhar; levantando aromas felizes e agradáveis que se perdiam por sua estrutura adentro. A que mais usava o fogão a lenha de seu interior era sua mãe — outros chamavam apenas de Naiá —, que parecia muito feliz quando cozinhava em paz; onde, por um momento, ela e a outras mulheres podiam se sentir senhoras de seu próprio trabalho, senhoras de si. Utilizando os temperos e formas de preparo que preferiam, levantando aromas que as faziam, algumas vezes, lembrar de suas raízes, da terra da qual foram separadas, da qual algumas nem se lembravam. Porém em outros cômodos as cenas eram desagradáveis, pois a casa via seus pais, irmãos e irmãs humilhados, castigados e em posição servil.
A Casa-Grande chegou a se perguntar o porquê daquilo, por que agiam daquela maneira, suportando aquela injustiça? Porém, para sua pergunta tola, logo lhe veio a resposta; do lado de fora a casa viu o que acontecia com os que desafiavam aquela hierarquia. Mesmo que não tivesse ouvidos, ela ouvia e mal podia suportar os gritos lancinantes de irmãos e irmãs brutalmente feridos. Por vezes eram amarrados em troncos e açoitados. O sangue recorrentemente espirrava, cortando o ar, até chegar nas paredes da casa. O sangue de sua família, o sangue de quem a criou.
Nesses momentos a casa desejava ter braços, pernas e mãos para destruir aqueles pretensos senhores, a pretensa família que dormia à noite em seus quartos e se refestelava nos móveis de seu interior, reclamando do clima; aquelas criaturas desprezíveis. E quanto mais o sangue de seus irmãos e irmãs se acumulava em suas paredes, quanto mais vexações presenciava, mais o ódio se fazia presente na estrutura da casa, deixando-a toda tensa pela fúria contida em seus tijolos.
Um dia sofrido para casa foi o dia da morte de um irmão menor. Apenas um menino, acusado de ter pego as joias da senhora Figueiredo. Mas a casa viu! Ela sabia que não foi ele, e sim o filho mais novo do casal que havia enterrado os ornamentos de ouro ao brincar de caça ao tesouro, o filho deles também sabia! Era só dizer, só assumir! Mas não... bem ao seu lado, do lado da Casa-Grande, aquele menino preto em seus miseráveis 7 anos de vida levou uma surra de vara e, não bastassem as feridas abertas, ainda foi mais torturado pelo sal e limão em seus machucados. A casa queria intervir, dizer a verdade, mas não podia, não tinha boca, era muda, mas não surda. Os gritos eram insuportáveis, até que não resistiu.
E ainda outra situação colocou a casa em seu limite. Pois até mesmo o único lugar com alguma paz em seu interior, o único lugar onde aromas agradáveis eram gerados, onde Naiá cozinhava com algum parco contentamento; até mesmo este foi perpetrado. A filha de Naiá, a sua irmã! Ela saía mais tarde da cozinha após limpar tudo, à noite, voltando para a casa precária que chamavam de senzala, quando o filho mais velho do Figueiredo apareceu. Bêbado, não só de álcool, mas de desejo. Uma vez mais a Casa-Grande não pôde fazer nada. Não tinha braços, não tinha mãos!
Porém a casa não se limitaria à observadora, ela fermentou todo o ódio, um ódio benfazejo, a raiva justa de um povo, para colher a melhor das safras da vingança. Ela esperou paciente, tensa, todavia paciente, pelo dia. O dia do envasamento do destilado de sua cólera; e este dia seria senão aquele em que seu Figueiredo estava mais feliz. A filha do homem se casava. Já havia acabado a grande festa, o grande banquete que os irmãos e irmãs da Casa-Grande assistiram resignados da senzala.
Sendo já muito tarde da noite, e os perigos do caminho se multiplicado, vários dos nobres senhores da sociedade escravocrata da região se assentaram no enorme palácio que, erroneamente, pensavam ser do senhor Figueiredo. Dormiam tranquilos, bêbados, desprezíveis e sujos nos quartos da casa, da Casa-Grande e negra. Foi este o momento oportuno, quando aquela construção demonstrou num golpe fatal e dolorido (a dor de gerações) toda a sua ira, toda a sua sede por justiça.
Num só som surdo todas aquelas paredes cheias de sangue e suor desabaram por cima daqueles porcos ignóbeis, junto delas o telhado com a força de mil terremotos e catástrofes; obliterando-os num massivo ataque suicida da casa. Seus irmãos e irmãs acordaram assustados e, de certa maneira, sentiram-se um pouco tristes pela casa, e somente pela casa. Principalmente ao observar o que dela restara: duas paredes apenas. Eram as duas paredes que cercavam o fogão onde dona Naiá cozinhava, algo que a casa não poderia destruir, pois amava.
Miguel Neves é estudante de Engenharia Química na Universidade Federal do Paraná. Organizou a antologia Tributo Brasileiro aos Mestres do Horror (2021) e teve um conto publicado pelo projeto independente Litterae. Este conto é um dos ganhadores da 5ª edição do Concurso Literário Luci Collin, promovido durante a XXV Semana de Letras da UFPR.