CONTO | Deus corneado 04/04/2025 - 10:13
por Victor Finkler
"Viver é um tesão", mas isso era mentira e a parede em que essa frase estava escrita indicava isso. O velho olhou rápido e desimpressionado. Escuro demais pra parar e ler. Precisavam sair daquela encruzilhada. Mesmo à noite estavam expostos. O grupo de três seguiu adiante. O mundo não é o que costumava ser, viver não era um tesão, mesmo tesão fosse uma das únicas sensações que movia os que sobraram.
“O mundo é um moinho como do filme do Conan. Corpos raquíticos escravizados em manufatura de fartura. Deve-se livrar da exploração. Antes que os chifres dele parem de segurar o firmamento acima de nós e o céu caia em cima de nossas cabeças”, ensinava um ancião para uma roda de jovens tapados por poucas roupas. Em volta de uma fogueira, o público o encarava com os olhos fissurados e opacos que apenas o uso prolongado de drogas pode proporcionar. O grupo de três fez de seguir adiante. Mas parou novamente. O mais jovem reparou que um casal de novinhos olhava o céu ao invés do orador.
“Mimesis, a Constelação, significar e interpretar a natureza. Colocar a humanidade na natureza e crer que a humanidade segue o fluxo da natureza. Mensageiro natural de coisas naturais”, pensou o mais novo dos três. As estrelas brilham mais a cada um dos novos dias.
“Eu sou astrólogo, vocês precisam acreditar em mim. Eu sou astrólogo”, grita o rádio da camionete de outro hippie que passa numa estrada próxima. Os dois grupos viram para a mesma direção e finalmente o grupo maior percebe os três ali parados a certa distância, no escuro. Medo e receio de todos. A nuvem de poeira que a camionete ergue é iluminada pelo atravessamento da Lua.
O velho dos três ergue o braço em um aceno e sussurra para seus colegas: “Voltaremos por onde viemos”, e saem em retirada lenta-convicta.
Provavelmente o grupo de jovens e seu ancião pensaram se tratar de um grupo de assaltantes denunciados pela música. Dormirão o sono dos injustos com vigílias alternadas o resto da noite.
***
“O primeiro ato dEle foi binarizar. Luz e Escuridão, sujeitos próprios. Dia e Noite, manifestações de tais forças”, o mais novo segurava seu quipá com firmeza. Os olhos do velho eram absortos apesar de uma fagulha de raiva inevitável transparecer.
“Por que blasfema ao problematizar e relativizar o que está escrito? Apenas faça, são suas tarefas”, criticou.
“Não posso manifestar minhas críticas aos mistérios da fé? Se os Mitzvá já suprem a demanda.”
“FÉ? RÁ!”, ironizou com verdadeira diversão. “Isso não é sobre fé. Fé é para conversão, para virar algo, isso aqui é sobre ser”, o velho se levanta. “Você pensa que não vejo você escrevendo seus pensamentos impróprios? Suas ideias herméticas e sincréticas vãs e de incredulidade.”
“Mas você disse que não precisa de fé, o que te incomoda na minha incredulidade?”
“Não me importo se você crê ou não, desde que faça. Só não use seus pensamentos para faltar com suas tarefas.”
“O que te assusta tanto se são apenas palavras, não atos?”
“Palavras são assombrações antes de dormir. Escrever é uma forma de tornar mentira o real. A escrita faz faltar. Sempre vai faltar algo. Agora não há nada mais a ser escrito. O Eterno é o verbo, a palavra. Aquele que É. O EU SOU. Isso me basta.” Após isso, o velho virou de costas e se afastou. Olhou para o horizonte e as estrelas do vazio.
O terceiro do grupo se virou para o mais novo: “O mundo não é mais o que costumava ser. Só restaram desertos, estradas e hipongas.” Elevou a voz para que o mais velho o escutasse: “não sobraram tijolos o bastante para construírem uma nova Sodoma e Gomorra, mas talvez possam fazê-la com as carcaças enferrujadas de suas picapes velhas quando o diesel restante acabar.”
“Meu Adonai”, sussurrou alto o mais novo.
“E o de Abrahão, Isaac e Jacob. Não se ache tão especial”, rosnou o velho. “Não sussurre pelos cantos como uma serpente. Não tente escrever em carvão o alfabeto de chamas.”
A partir daí foram se silenciando até dormir.
***
“Foi em um fundo de quintal como esse que Abrahão erigiu sua religião?”, questionou o mais novo em seus pensamentos. Um muro baixo granulado de cacos de vidro permitia a vista de que mais parecia uma caixa de areia gigante. A casa antes de alguma cor clara era agora inteira avermelhada pela terra que a chicoteia de todos os lados nos dias após alguém parar de medir o tempo ou se importar em falá-lo em voz alta.
O mais novo pensava na estrutura da Tanakh. A cronologia de uma família não é, sobretudo, só uma família, um núcleo social. Abrahão se escolheu, patriarca de uma família, para ser o ponto de referência da superlativação. Yahweh - Pai. Primeiro se vive, depois se pensa sobre.
“Se ele mentia tanto sobre isso, deve ser verdade.” Era uma possibilidade. O ronco de um motor esportivo chegou até ele. O velho e o terceiro estavam fora de vista. Provavelmente já encolhidos em algum canto vendo tudo de longe. Tarde demais para o mais novo se esconder. O carro já havia avistado ele. Vinha acelerando na rua que passava ao seu lado.
“Tá indo pra onde?”, o rapaz cabeludo e barbudo atrás do volante e seus três colegas de carro olhavam o mais novo com uma curiosidade quase científica. Eles estão pelados? Era a dúvida do mais novo. Parecia. Estavam todos sem camisa. Como todos os quatro hippies estavam sentados não dava pra saber por aquele ângulo.
“Quer uma carona?”, fatiou o rapaz para cortar o curto silêncio, pressentindo o medo daquela figura quase hermética de manto com símbolos e um chapéu que mal cobria a coroa do seu cabelo.
“Não precisa, estou indo no meu tempo.”
“Indo pra onde?”
“Ainda não sei, mas acho que não tem mais por que ter pressa, né?”
“Bom ponto, amigo”, e deu um sorriso inteligente. “Aqui”, se erguendo sob o volante e revelando estar de fato nu, apontou para o Leste. “Qualquer coisa, seguindo uns quilômetros adiante nessa estrada, você vai chegar nos restos de uma cidade. Ouvi dizer que lá tem alguns prédios para se abrigar e até uma distribuidora de bebidas. Dá pra imaginar?”
Sozinho novamente após o conversível arrancar e levar aqueles quatro recém-homens para o fim do mundo. “Fique na paz de Jah”, gritou já distante o do volante.
O rapaz nem um pouco rastafari se foi. Seu grupo também. O velho e o terceiro apareceram assim como sumiram. “O que você disse pra eles?”, encheu de preocupação desnecessária a paciência do mais novo.
“Disse pra ele que, após o pecado original e após Babel — as tentativas do homem ser Adonai — Este está sempre tentando corrigir esse povo que ele ama (como com o Dilúvio, a destruição de Sodoma e Gomorra), amor estabelecido através de uma aliança com Abrahão. Yahweh quer conduzir esse povo pela história, lhe dar uma terra, tornar a mais forte das nações, mas esse povo é constantemente tentado pelo pecado como teste.”
“Sua leitura do Tanakh é humilhante para nós”, e o velho e o terceiro se afastaram.
Se um dia chegar a Era Messiânica será tudo mais fácil. Não devem existir novas nações até lá, se estabelecer e impor domínio ao resto do mundo mais na lábia que por armas. Construir um novo Templo sem burocracia de licitação de obras. Um mundo mais simples pro complexo inviável que era a Modernidade e suas perspectivas angulosas.
O terceiro é okay, o velho que é um porre. Nos velhos dias sentia-se tão sozinho num mundo tão lotado que agora é tão exaustivo estar acompanhado num mundo vazio.
***
Fragmento de diário carcomido pela areia:
“(isto é: para o Lógos que governa o mundo e seus
acontecimentos) tudo é belo, bom e justo, pois tudo ocorre de
acordo com a sua lei. Os homens, porém, não têm uma
compreensão objetiva do cosmos, pois estão no fluxo como as
demais coisas e as pensam sob determinadas relações”
***
“Você está fazendo isso errado?”, o velho olhava sob seu ombro.
“Não sei, estou?”
“Sim, você e fazer estão constantemente ligados pelo erro. E o mais importante deles agora: é Shabbath. Você se esqueceu.”
Parou o que estava fazendo e se sentou com os demais. Olhavam para cantos diferentes do chão em uma roda-triângulo. Agora podemos conversar no Shabbath, ao menos. Antes o velho não permitia, chegou a dar um tabefe no rosto do mais novo por soltar uma risada no dia do descanso.
Isso eram dias antigos. Antes de tudo. Agora o velho era mais velho. E o novo não era mais tão novo. Não deixaria isso se repetir.
O mais novo contou aos outros dois das instruções que o jovem nu passou para ele. Decidiram seguir elas. Não se procura mais nada. Só se segue.
***
Chegaram na imensidão de entre duas lojas abandonadas. Logo à frente, um homem de abaya laranja e dourado carregando uma vassoura de palha gasta em suas mãos, ele dá passadas cambaleadas sob uma perna aparentemente estragada.
“Eu só varro areia do deserto”, respondeu quando foi perguntado pelo terceiro se sabia a direção para a distribuidora de bebidas.
“Já passamos quarenta anos no deserto, agora vamos passar uma vida inteira”, caçoou o mais novo.
“Se você não vai até o deserto, o deserto vai até você”, satirizou o terceiro.
“Haram”, assobiou em voz baixa o homem de abaya. Indicou que adiante podem encontrar o que procuram, entre haram e halal.
***
A grade da frente estava arregaçada. Ferro estourado para os lados em um burraco gigante e um bêbado agarrado às poucas grades remanescentes.
Os três viram aquilo e resolveram adentrar o local. O bêbado sem roupa e de corpo seco e queimado tremia, catatônico. No interior da loja, algumas bebidas quebradas espalhadas pelo chão em cacos e latas estouradas. No canto de trás do balcão, o que parecia ser o dono da distribuidora, estava sentado no chão com sangue no colo.
Quando o velho se aproximou, o dono abriu a boca e tossiu sangue em seu rosto.
“Meu refrigerador não funciona. Deu pau. Lixo”, e o velho apenas assentiu ao seu lado. “Água”, e o velho pegou uma garrafa de uma das prateleiras e o deu de beber.
“Uns hippies. Quatro. Num conversível. Pelados. Vieram do nada e começaram a atirar”, o mais novo gelou dentro daquele ambiente abafado e paposo. O velho removia a tampa de um velho barreiro prata e derramava um pouco na barriga do dono. A cachaça parecia entrar pelo buraco disforme de sua camiseta envermelhada, na esperança de alcançar suas entranhas.
Urrou de dor e pegou a garrafa da mão do velho e pôs a beber no gargalo. “É bom para não infeccionar sua ferida.” O velho se afastou em alguns passos. O dono ficou em estado de desgraça olhando as três figuras de manta e quipá com certa comédia nos olhos.
“Ter convicções é perigoso”, disse. “Manada é manada - passa adiante.” Ele aponta para uma das janelas gradeadas de trás. O terceiro foi olhar e viu entre as ruínas algo que parecia ser o que sobrara de uma mesquita.
O refrigerador quebrado ficava logo ao lado, o cheiro de estragado foi sentido quando o terceiro se aproximou. Chamou os outros dois e abriram. Pedaços de carne já escuras empilhadas entre latas e garrafas. Tapando os rostos contra o azedume de carniça puderam ver: um pé feminino com unhas pintadas e um anel de coco no dedão. Alguma outra parte do corpo estava embrulhada numa camiseta tie-dye rosa-azul com o símbolo da paz estampada.
Após fecharem a tampa do refrigerador, viraram para o dono. Seria possível dá-lo como morto, mas com calma e paciência era possível discernir uma lenta e fraca respiração.
“Vamos embora”, falou o mais novo.
“Temos que enterrá-lo”, comentou o terceiro.
“Só precisamos garantir que um circuncidado seja enterrado com todos os procedimentos”, atestou o mais velho.
“Ninguém sentirá Shiva por um homem como esse”, argumentou o mais novo. “Não é você quem decide isso”, reclamou o terceiro. “Chega”, e o velho virou para os outros dois. “Se deseja cavar a cova e devolver ao pó esse homem, o faça o mais rápido possível.” E os olhos do terceiro se encheram de raiva e ressentimento, ficariam marejados se não fosse a sede ainda não matada.
***
“Esaú foi o mais piedoso da Torá. Perdoou Jacob e ainda cedeu terras para seu irmão apesar das duas vergonhas que este o acometeu.” O mais novo olhava para o pequeno monte de terra, indício da cova cavada ao fundo da distribuidora.
A história do patriarca Israel mostra que El Shadai só quer o cumprimento dos mandamentos. Pecado não existe. O homem que inventou o Delta. E daí? Não importa. Fez um movimento, e a história se moveu para o seu povo. A história acabou quando a civilização e a política acabaram. Não dá para interpretar os sonhos como José, nenhum dos três sonha mais.
Não tinham nada a acrescentar. Prestaram um momento não-cronometrado de silêncio e voltaram a andar com os suprimentos coletados da distribuidora, pagamento pelos serviços funerários. Ao chegar nas ruínas da mesquita, passaram por azulejos rachados, estilhaçados pelo chão. No interior, numerosos tapetes soterrados pelos grãos de areia.
“Vocês acham que o homem que varre areia do deserto vem aqui?”, o mais novo enfiava uma mão na areia e puxava um tapete por debaixo. Os padrões em azul-escuro e bordô o deixaram impressionado.
“Se vem, não está varrendo direito esse lugar”, e o velho abriu um pequeno livreto semienterrado: Muhammad: O Mensageiro de Deus - Que Deus louve sua menção, o título em letras garrafais douradas contrastava com o fundo verde-folha.
“Podemos nos abrigar aqui essa noite?”, quis saber o mais novo.
“Fazer isso é haram ou halal?”, perguntou o velho para o terceiro.
“Honestamente, acho que ninguém se importa mais. Mas com certeza é haram”, disse o terceiro com olhos opacos.
Passaram o restante do dia sentados nos tapetes do interior da mesquita. Deitaram com o Sol. O mais novo não parava de pensar nas ruínas, fragmentos de um sonho nunca realizado. Allah ou Yahweh, dois abraâmicos. Muhammad e Jesus, descendentes de Ismael e Isaac, respectivamente, filhos de Abrahão. O mundo partilhado pela mesma raíz. E o que restou do mundo? Areia e calor, como nos tempos e locais das escrituras. O mundo foi palaceado com monumentos, templos, incrustado e decorado por dois. Até chegar a modernidade e com ela o anacronismo, o despejo, o genocídio, o tradicionalismo.
Forçados ao anacronismo como forma de justificar seu apagamento. Hoje o mundo perdeu sua justificativa. A crença judaica os coloca como força-motriz da História. Motivo, ao menos isso existe. E adormeceu entre os pensamentos de gerações e perseguições. O que Adonai quer? Fidelidade, exclusividade, obediência.
***
“Levante”, foi a palavra escutada enquanto de olhos fechados já sentia seu corpo ser balançado pelo terceiro. De olhos abertos, viu o velho de pé espiando cautelosamente o mundo exterior pela abertura de uma das paredes semi tombadas da mesquita.
Desperto com os últimos grãos de sono indo com o vento. Escutou. Um ronco baixo mas que sabia ser alto. Distante, ao menos consideravelmente. Se aproximou do velho e espiou junto. Apenas o deserto e suas ruínas permanecem no horizonte.
***
Em silêncio se mantiveram enquanto o som continuava. Como um zumbido. Após alguns minutos, mudança. Ficou mais próximo. Agora adquiria uma forma nova: mantra.
Poeira e pequenos detritos caíam das angulosas paredes que sustentavam o teto sob suas cabeças. Uma pedra maior bateu no ombro do terceiro. Olhou o local do impacto, que doeu consideravelmente, e apenas limpou a mancha de sujeira com o dedo molhado de saliva. “Babel”, sussurrou.
Se ouvia o mantra cada vez mais alto, e o tremor advindo de uma marcha. Gritos, passos e algo sendo arrastado enquanto os três se escondiam.
Silêncio.
“Haram! Que toda edificação ao Senhor seja destruída, pois de forma humana ou estrutura destinada aos homens não se compactua o meu Deus!”, gritou uma voz masculina forte e retumbante do mundo exterior.
Três urras foram exclamados pelo que aparenta ser uma multidão.
Um tiro explode no prédio. E outro. Mais um. Uma saraivada começa. Os três se deitam entre areia e tecido para se protegerem do fogo. O mais novo grita com toda sua força entre os assobios e impactos de ferro contra pedra.
O expurgo cruzado para. Movimentações de passos e cochichos podem ser escutados. Pausa. Mais passos, cada vez mais próximos e mais baixos. Se aproximam na tentativa de se precaver.
“Parados!”, a palavra já acompanha o fuzil sendo apontado. Outros dois homens surgem ao lado do primeiro, três canos apontados para três judeus.
***
Algemados e com uma corda enlaçando os três pescoços em fileira. À frente, uma multidão considerável. Mais de mil. Usando roupas em tons terrosos, entre vestes militares, camufladas e outros apenas trajes civis em tons coerentes com o todo. Entre eles, mais especificamente ao meio, um pequeno grupo utilizando apenas trapos velhos. Esses muito magros; mais que magros, raquíticos, cabelos e barbas grandes, costas nas quais o tecido e as feridas se mesclam.
O que se viu na sequência impressionou e deslocou os pensamentos dos três. Os escravos estavam acorrentados a um altar imenso que sustentava a estátua de um bezerro completamente dourado. Os escravizados puxam o Ídolo com seus corpos.
“É o grupo de hippies que encontramos naquela noite”, sussurrou o mais novo.
“Silêncio!”, berrou um soldado e no movimento de dar um tapa foi imobilizado por palavras. “O que foi que você disse?”, e do meio de dois soldados veio o líder daquela multidão.
O mais novo reuniu coragem e explicou que aquelas pessoas acorrentadas foram avistadas por eles algumas noites antes. O líder os encara por longos segundos e cospe um chiclete mastigado na areia.
“Vocês são da religião do pai. Venham. Oremos por isso.” Seu colar, um par de chifres dourados, balança e brilha ao Sol.
Com o grito de uma palavra indiscernível para os três, o líder pôs toda aquela multidão a cantar. Aquele mesmo mantra preenchia o espaço infinito do deserto apocalíptico por todos os lados e se expandia até o infinito. Raios do fim do dia rebateram na lateral do bezerro de ouro gigante e os fiéis se jogaram aos montes nos reflexos que tocaram o chão.
“Tomem para si os homens ou mulheres que desejarem, guardiões dos velhos tempos.” Os três encaravam aquela cena com descrença. As algemas e o cordão que os conectava ainda delimitavam uma posição de cárcere. O mais novo perguntou se poderiam ser libertos.
O líder espremeu os olhos para os três. “Não”, e se virou. “Vocês podem ir e voltar de onde quiserem. Fazer o que bem entenderem, mas o farão juntos.”
Adentrou a multidão que se abria em olhares de admiração. O mantra foi retomado. Um grito seco de ordem foi dado, provavelmente pelo líder. Um chicote explodiu nas costas de um dos hippies, que urrou de dor. O mesmo aconteceu com os demais esqueletos do paz & amor. Todos curvados, prostrados frente algo maior, e começaram a puxar esse algo maior. A figura “Ídolo-bezerro” começou a andar vagarosamente. Tão imponente quanto lenta. E a multidão entoou seus louvores.
***
Os três deitados entre os fiéis do bezerro. Insones e agitados. Ao longe, focos de luzes dos vigias armados daquele grupo. O líder passou em silêncio entre os corpos em repouso e se aproximou deles.
“Somos uma família. Desde antes de tudo. Éramos uma congregação comum. A vinda do Anticristo mostrou que deveríamos retornar às respostas bíblicas contra o que tornou tudo isso possível. Estamos unidos daqui até o fim dos seis mil anos de fome, lepra e pecado.” Se ajoelhou ao lado dos três. “Sei que vocês estão antes disso tudo. Não creem no Messias, o esperam. Não tem muito mais o que esperar. Vocês são contra tudo que cremos, e contra a realidade do mundo”, gesticulou e apontou seu braço em direção ao monumento-móvel. “Oramos ao Bezerro quando percebemos que o Senhor se revoltou contra sua adoração e jogou o mundo na desgraça. O Bezerro faz o contrário, realiza a graça sem uma nação, sem um povo, apenas somos. Moisés desceu do Sinai com as tábuas que trouxeram o que se deve e o que se não, a partir disso o mundo foi de êxodo para desmantelamento. O Bezerro foi a última tentativa da humanidade se livrar de seus grilhões”
“Onde entra Jesus nisso tudo?”, ousou questionar o mais velho. O mais novo e o terceiro viraram assustados pela sua falta de decoro.
“Não existe maior maneira de se rebelar contra um Pai do que sendo um Filho.” E o líder começou a se levantar. “Somos os filhos do Novo Mundo.”
“Faz sentido”, entendeu o velho.
“Como assim “faz sentido”? Eles estão usando a religião contra ela mesma. Não existe Mitzvá mais”, estourou o mais novo, pessoalmente ofendido pela contradição clara e contrastada com o pensamento dogmático-ortodoxo do velho.
O velho o olhou com compaixão e dor: “Religiões são para amenizar as necessidades, dores e desesperos humanos. Se existe uma brecha lógica, ela será preenchida por heresia e heterodoxia.” Virou para o terceiro: “Quando mais se dedica a Adonai, aos seus Mitzvá, a vida segundo seus mandamentos, mais se torna inadmissível voltar atrás; você não quer aceitar que fez tanto por nada.”
“Tudo é justificável se Adonai te escolheu”, complementou o terceiro. O velho assentiu. O líder viu toda essa cena e pareceu satisfeito.
“Amanhã ao crepúsculo os deixaremos entre o deserto para que continuem sua busca”, se despediu e desapareceu na escuridão.
***
Na caminhada da multidão permaneceram unidos por cordões e pensamentos. Em silêncio no ritmo entoado pelo mantra ao bezerro.
Uma moça de vestido longo bege e com o rosto semicoberto se aproximou dos três. “Não entendo como podem não acreditar nos ensinamentos do nosso Senhor Jesus. Ele ensina tanto sobre o amor. Ele era um cara tão legal.”
“Jesus era um cara legal? Honestamente, não importa”, explicou calmamente o velho.
Incrédula com a facilidade da resposta, continuou: “Ele falava sobre amar o próximo, fazer o bem.”
“Honestamente, não importa.” E o velho olhou ao seu redor. A multidão. O sol da metade do dia escaldante. O brilho do bezerro se prorrogando aos cantos daquele Novo Mundo. Os hippies com seus corpos rebatendo o dourado. “Por Cristo, é muita dor para juntar em meio às ruínas. Debaixo de bíblias, crucifixos. É muita dor”, e não se permitiu chorar.
Confusa, a moça tentou: “Jesus pregava o bem.”
“Bom pra ele.” O líder de longe observava aquela interação. “Não preciso dele para me ensinar o que minha mãe judia me falava desde pequeno”, e a conversa morreu.
Após mais algumas horas de caminhada, o grupo parou em uma encruzilhada de asfalto. “Vocês ficam aqui, nossos caminhos se separam para nunca mais nos encontrarmos”, discursou o líder. “Vocês seguirão por lá, e apontou para o Sul.” O trio agradeceu com palavras calmas e ponderadas pela hospitalidade. Foram libertos de suas amarras. Ao se afastarem, ouviram um último grito, feminino, recente e familiar: “Sempre voltando para a terra prometida, nunca permanecendo. Esse é o destino do povo escolhido.”
Assistiram impassíveis a multidão se afastar com os raios do sol para o Oeste.
Um Novo Mundo surgiu do fundo do quintal de alguém. Andamos por ele em círculos, tentando não fazer barulho nem chamar a atenção. Sabem que estamos lá, e tudo bem, desde que não causemos incômodo.
No meio desse pensamento, o mais novo se tornou para o Sul. À vista, apenas um muro na marginal, onde se lia: “viver é um tesão”.
Victor Finkler é escritor, pesquisador, escritor, roteirista e redator. Doutorando e Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná (PPGCOM-UFPR), formado em Publicidade & Propaganda também pela UFPR. Autor da coletânea de contos O Insosso e o Insólito Entre os Pinheirais (2024) e roteirista de curtas-metragens.