Bate-papo com Alice Ruiz 15/02/2019 - 11:48

Em tempos de redes sociais, o lado político de Alice Ruiz aflorou. A poeta paranaense tem atuado de forma constante na internet defendo pautas progressistas, como os direitos das mulheres e das minorias. Algo que faz desde os anos 1970, quando militava na imprensa cultural de Curitiba. A diferença é que agora suas opiniões reverberam com a rapidez de um clique. “Talvez a coisa que mais me dá orgulho é ter participado da evolução da condição da mulher na sociedade brasileira”, diz. 

Da Redação

A escritora participou do projeto Um Escritor a Biblioteca em 2018, com mediação do jornalista e cronista José Carlos Fernandes. Entre outros assuntos, Alice falou sobre os temas que mais a instigam hoje a escrever e lembrou de aventuras editorais como a revista Rose, que editou nos anos 1970 para a Grafipar, famosa editora de quadrinhos.

Alice Ruiz estreou em 1980, com a coletânea de poemas Navalhanaliga. Autora de 21 livros, ganhou o Prêmio Jabuti de poesia em 1989, com Vice-versos, e em 2009, com Dois em um. Como letrista, tem parceiras com Itamar Assumpção e José Miguel Wisnik, entre outros artistas. “Sempre entrego a letra pronta para o artista que vai gravar. Normalmente ninguém mexe nela depois que a entrego”, explica a poeta sobre suas parcerias com músicos da cena paulistana, como Arnaldo Antunes e Paulo Tatit.

Entusiasta da cultura japonesa, Alice faz parte de um grupo de poetas que “tropicalizou o haicai”. Alguns desses textos, que segundo a própria poeta “quebraram regras”, serão publicados em uma coletânea com 100 haicais — a obra também trará poemas de Rodolfo Guttilla e deve sair em 2019.

Durante a conversa, a curitibana Alice Ruiz também lembrou que a Biblioteca Pública do Paraná exerceu grande influência em sua formação inicial, quando emprestava livros de alguns dos autores que ajudaram a moldar seu pensamento crítico, como o casal Jean-Paul Sarte e Simone de Beauvoir. “Lendo a Simone descobri que não era esquisita. Que faziam sentido as minhas ansiedades”, diz a autora cujo trabalho poético está traduzido nos Estados Unidos, Bélgica, México, Argentina, Espanha e Irlanda.

        Higor Oratz
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A Chave
Conta minha mãe que fui apaixonada pela palavra desde pequena. No próprio aprendizado da palavra, me divertia. Mas, infelizmente, na minha casa tinha apenas um livro, a Bíblia, que li, aliás, sem ninguém mandar. A literatura chegou com um impacto enorme quando entrei no ginásio. Sou da geração que fez ginásio. No Colégio Estadual do Paraná (CEP), descobri a biblioteca. Em vez de ir para o recreio, por exemplo, ficava lendo. Minha professora de História, Cecília Westphalen, fez uma espécie de concurso na nossa turma: quem tirasse a nota mais alta, ganhava um livro. Ganhei A chave do tamanho, do Monteiro Lobato. Claro que me apaixonei. Ia para a biblioteca e ficava lendo Monteiro Lobato. Comecei com literatura infantil aos 11 anos. Foi uma espécie de primeira guia para mim, a Cecília, porque ela percebeu que, em vez de ficar curtindo com os amigos no recreio, eu ia para a biblioteca, e ela se responsabilizou por eu levar os livros para casa. Havia uma idade mínima para tirar livro. Ela foi minha tutora, me deu umas dicas. 

BPP
Foi na biblioteca do Colégio Estadual do Paraná que descobri o Mario Quintana, por exemplo. Passado um tempo, descobri a Biblioteca Pública do Paraná, que comecei a frequentar lá pelos 17 anos. A minha formação inicial, principalmente em relação à consciência da mulher, tem muito a ver com esta biblioteca. O primeiro livro que li da Simone de Beauvoir, Memórias de uma moça bem-comportada, emprestei aqui. Lembro nitidamente que voltei, devolvi e fiquei uma semana esperando para voltar e pegar de novo, porque li a primeira vez e me veio aquele impacto, mas tive a certeza de que tinha que ler de novo. Precisava fazer uma leitura não tão com o emocional, mas deglutindo cada pedaço. Foi uma identificação muito grande. Debulhei Simone.

Sartre
Li os romances da Simone de Beauvoir. Li Sartre. Por conta do Sartre, acabei indo para o teatro. Fiz teatro um tempo. Tinha planos de fazer dramaturgia, de escrever. Não tinha projeto de ser atriz. Queria escrever por conta das peças do Sartre, que peguei todas emprestadas aqui na Biblioteca.

Simone de Beauvoir
Lendo a Simone descobri que não era esquisita. Que faziam sentido as minhas ansiedades. Não quero que fique parecendo “mimimi” essa conversa. Mas o que aconteceu muito intensamente com as mulheres mais velhas do que eu, da geração anterior, foi uma sensação enorme de não pertencimento. Há rescaldo disso na minha geração. Aconteceu simultaneamente em vários lugares do mundo. Nós, as mulheres dessa geração, começamos a olhar e dizer: o jeito que o mundo olha para mim, o que o mundo espera de mim, não me serve. Não me identifico. Não quero. Não sou eu. Isso não me representa. A gente batia de frente com todo mundo. Estou falando no passado, mas sei que isso continua acontecendo. É uma luta eterna. Mas, em vários lugares, melhorou

Trabalho
Sou quase atrevida em termos de vida. Andei sendo meio pioneira numas coisas do universo feminino. Tive que parar de estudar — o que foi terrível — assim que terminei o ginásio. Eu era arrimo de família, tive que desde muito cedo sustentar a mim e a minha mãe. Isso fez com que me tornasse uma pessoa independente rapidamente. Apesar de morar com minha mãe, com 18 anos tinha dois empregos e nos sustentava. Foi quando comecei a formar a minha biblioteca. Mas ainda emprestava da Biblioteca Pública, emprestei daqui por mais de uma década. Tem uns que nem devolvi.


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Clássicos
A gente tem que apresentar para a moçada a poesia na linguagem deles. Começa por aí. Algo que os represente. Depois, quando estiveram seduzidos, pode sugerir coisas mais elaboradas. Não se tinha muito essa consciência na minha época. Eles davam os clássicos e a gente que se virasse. Se identificando ou não.

Primeiro conto
Eu tinha esse papo de que não gostava de poesia, e inventei uma história. Não sei se foi por causa dos filmes. Eu via uns filmes na televisão, a gente ia no cinema também. Naquele tempo não era tão rígido. Eu assistia cada coisa com meus tios, bang bang com muita violência. Meu primeiro conto é quase de terror. Acho que, para influenciar o conto, o que mexeu com o imaginário foi o cinema. Que me levou a buscar essa coisa ficcional. Era ridículo, um cara que entrava com uma bomba dentro de um avião, tinha toda uma coisa da massa cinzenta, homem cinza e pensamento cinza. É o precursor de 50 tons de cinza, mas sem a mulher, só o homem. Era muito ruim mesmo. Comecei a escrever umas coisas quando eu ia para um terreno baldio que tinha atrás da minha casa. A gente morava lá no Tabuão, e tinha um regatinho nesse terreno baldio. Eu ia e ficava contemplando a paisagem. A natureza sempre me alimentou. Hoje eu planto. Quando estou precisando de energia, começo a plantar, mexer na terra, limpar, podar. Meio que tem uma prévia dos haicais já nessa época — 13, 14 ou 15 anos, não saberia dizer. Depois que o Paulo [Leminski] me mostrou haicai, comecei a ler e percebi o quanto o sabor do haicai já estava lá na minha infância. Eu só não sabia fazer haicai, mas já tinha o espírito. 

Judô
Fui morar no Rio e realmente me sentia uma menina meio acuada, porque, sei lá, com 20 anos eu não tinha — fora essa experiência de ser arrimo de família — a experiência do viver sozinha. O Rio é muito maior, é um outro jeito de ser. A proximidade do mar. É muito mais corpo. A sexualidade é uma coisa um pouco mais gritante. Aqui, eu achava um rapaz interessante, olhava para ele e não acontecia nada. Lá, se você olhasse, o cara já estava te seguindo, querendo te levar. E eu tive que ir aprendendo. Felizmente ninguém conseguiu, mas sofri três tentativas de estupro. E aí fui fazer judô. Falei: “Tenho que ter o mínimo de defesa pessoal”. Porque, para a minha sorte, duas das tentativas foram de dia. Comecei a gritar e pronto. Mas a da noite foi um pouco mais difícil. As mulheres não falam disso, acho que a gente tem vergonha. Decidi que vou falar. Ter cabelos brancos nos dá o direito de falar tudo. Sim, tentaram me estuprar três vezes quando eu tinha 20 anos, no Rio de Janeiro. Foi terrível. E eu morria de medo. Comecei a andar assustada na rua, a ter medo de olhar para as pessoas. Não entendia. Não sabia lidar com aquilo. Mas foi bom, porque fui aprender judô e era uma academia dessas meio objetivas para defesa, tinha uma professora que ia um pouco mais para o lado do aspecto espiritual do judô. Não é bem espiritual, mas do desenvolvimento interno que ele provoca em você. Então eu já tinha tido uma prévia da cultura japonesa via judô. Tinha essa identificação com o haicai mesmo sem conhecer o haicai. Depois disso, não parei mais. 

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Disciplina
Como não fiz faculdade, não tenho essa coisa pedagógica formal. Durante muito tempo me senti um pouco menor por não ter conseguido fazer faculdade, porque acabei não adquirindo a disciplina que uma faculdade dá. Hoje não tenho mais nenhum mal-estar com relação a isso, pelo contrário, tenho um bem-estar em relação a isso. Porque continuo estudando, mas estudo só o que me dá prazer, o que me interessa. 

Oficinas de haicais
Para fazer oficina de haicai, por exemplo, percebi o quanto o zen, a compreensão do zen, abre teu campo para o haicai. Te prepara como instrumento para fazer haicai. Minha oficina se divide em três versos. O primeiro verso é a teoria, e a teoria parte do corpo do haicai. A parte técnica são 15 minutos. As outras três horas e meia, três horas e quarenta e cinco converso sobre o zen, apresentando koan, deixando as pessoas em estado de fazer haicai. No segundo verso, que é o segundo dia, faço um aquecimento de tradução com a turma. Claro que pego os haicais que já traduzi, porque quero mostrar para eles o desafio, então tem que ser alguns que eu já enfrentei. Mostro em japonês, dou a tradução literal de cada palavra e peço para eles formatarem como haicai. Mas não individualmente. A gente fica discutindo junto, o grupo, fazendo isso em uns três ou quatro haicais. A partir daí partimos para o exercício prático, elaborando juntos. Três pessoas ficam discutindo e eu vou com eles para a natureza. Quase sempre dá certo. Toda oficina peço um carro para que possamos ir a um local com muita natureza. Fico treinando a observação deles. Às vezes o pessoal resolve ir caminhando e conversando, então digo: “Estamos andando, mas estamos dentro da oficina. É para olhar em volta amorosamente. Para prestar atenção. Não é para ficar conversando sobre política agora”. 

Haicai tropical
Um pequeno grupo no Brasil tropicalizou o haicai. Acho que o Paulo [Leminski] fez muito isso. Um que faz muito isso também é o Rodolfo Guttilla, com quem fiz um livro em parceria — se tudo der certo, vai ser lançado no começo do ano [2019] que vem pela Companhia das Letras. Ele é um quebrador de regras. Aqueles meus [haicais] que quebram regra estão nesse livro também. Tanto que a gente resolveu juntar. Tem mais de 100 haicais, metade de cada um. Faço parte, sim, desse grupo que tropicalizou o haicai.

Regras
Só que a oficina meio que me enquadrou. O [Matsuo] Bashô falou: “Aprende as regras, assimile-as profundamente e depois livre-se delas”. Isso nem é uma tropicalização. É o pai do haicai falando. O que ele quis dizer é que, na hora em que você está fazendo o haicai, não deve ficar preocupado com as regras. Mas é bom que você as tenha assimilado. No haicai nipônico, a regra é essa: no primeiro verso tem a situação, no segundo algo acontece e no terceiro há uma manifestação. No Brasil, a gente sabe que não é bem assim.

Tempo
A poesia, hoje, não vem na mesma velocidade que vinha antes. Passo períodos maiores sem produzir. Mas, ao mesmo tempo, sinto que estou produzindo o tempo inteiro. Meu pensamento ficou mais claro, apesar de ter mais dúvidas. A própria consciência de termos mais dúvidas é um tipo de clareza. O que quero dizer é que, quando me apaixonava por pessoas, também parecia que isso se expressava mais no escrever. Não que eu ficasse escrevendo sobre o amor, ou sobre pessoas, ou sobre paixão, mas o estar apaixonada me colocava num estado de produção poética que agora eu tenho que criar. Não é uma coisa que vem de fora, agora sou eu que tenho que produzir isso. Ao mesmo tempo, também me apaixono por ideias. 

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Orgulho e preconceito
Talvez a coisa que mais me dá orgulho é ter participado da evolução da condição da mulher na sociedade brasileira. A gente já melhorou muito. Mas acho que todos nós somos vítimas da cultura do machismo. Antes, ficava brava com as mulheres machistas. Hoje tenho pena. O pessoal fala sobre cultura do estupro. Não. Antes da cultura do estupro tem a cultura do machismo, que acontece para homens e mulheres. A Estrela, minha filha, fez um levantamento — vou contar rapidamente essa história. Tem uma vítima do machismo na minha família. Meu tio Gregório, que eu não conheci porque ele se matou com 20 anos de idade. A nossa família era pobre, tinha pouco dinheiro, e meu tio foi o único a estudar porque era o homem da casa. As meninas não estudaram, minha mãe e minhas duas tias não estudaram. Ele estudou porque ia trabalhar e sustentar as mulheres. Minha mãe e minha irmã não precisavam estudar, porque iam casar e um homem iria sustentá-las. Era esse o raciocínio. Meu avô morreu, e ele que era o caçula, com 20 anos, de repente teve a responsabilidade de sustentar a si mesmo e três mulheres. Só que era um momento de crise econômica e ele ficou meses procurando trabalho, não conseguiu e se matou em desespero por não conseguir cumprir o papel do homem da família.

Revista Rose
A revista era feita por mim, pela Lígia Mendonça e pela Ana Lúcia. Havia editorias como “Rose fora da cama”, com matérias mais sérias sobre leis trabalhistas, saúde, etc. Mas também a “Rose na cama”, que trazia um papo sobre sexualidade. E as HQs, contos e tal. Tinha também o homem nu na página do meio, que nem na Playboy tinha a garota. Só que, como não podia ter exposição frontal, os amigos eram fotografados com, por exemplo, um violão na frente, de pernas cruzadas, lendo um livro, etc. Ou pegávamos um arquivo de imagem e colocávamos umas tarjas. A gente exagerava nas tarjas para mexer com a imaginação das leitoras. Um dia o Faruk El-Katib, diretor da Grafipar, que publicava a Rose, teve a ideia de fazer uma pesquisa para ver o perfil do leitor da revista. Aí fomos demitidas, porque a revista era vendida para gays. As mulheres não tinham nem coragem de comprar a Rose. E os gays provavelmente não liam o que a gente escrevia, só olhavam.

Letras
Sempre entrego a letra pronta para o artista que vai gravar. Normalmente ninguém mexe nela depois que a entrego. Com o Arnaldo Antunes é assim. Não mexeu em “Socorro” nem em “Atenção”. Já “Aranha” a gente fez juntos. “Se tudo pode acontecer” fizemos em quatro pessoas ao mesmo tempo. É uma negociação interessante, quando tem mais gente fazendo a letra. Em “Se tudo pode acontecer” era o Paulo Tatit fazendo a música. Eu e Arnaldo, a letra, com pitacos do João Bandeira. É isso. Tem que ter uma negociação. Com o Itamar [Assunção] e a Alzira [Espíndola] rolou muita parceria.

Socorro
O Sartre diz, acho que em O ser e o nada, que a tristeza não é um sentimento verdadeiro. O sentimento verdadeiro é a raiva, mas, como a raiva não é socialmente aceita, a gente civilizadamente baixa o tônus afetivo para controlar a raiva. Vai baixando e ficando uma coisa que a gente chama de tristeza. Mas, às vezes, a dor é tanta, e você tem que baixar a tal ponto a raiva, que você para de sentir. Isso efetivamente acontece. Aconteceu comigo. Eu tinha lido O ser e o nada. Não que eu tenha lembrado disso na hora de escrever “Socorro”, mas depois falei: “Essa música é sobre esse pensamento do Sartre”. Isso foi um coisa que efetivamente aconteceu comigo. Foi um momento de muita dor na minha vida. Fiquei afásica, apática. E aí me veio essa coisa do “socorro, não estou sentindo nada”. Freud diz que o humor é a vitória do ego sobre o princípio da realidade. Acho que a arte também. Não só o humor, mas a arte também. A gente escreve tanto sobre o sentir e, de repente, escreve sobre o não sentir. Aí veio o resto da letra. Foi, talvez, uma recompensa das energias cósmicas, porque até hoje essa música me dá dinheiro. Não escrevi com habilidade, escrevi com as vísceras. Quando a gente é visceral, acho que vai mais longe.

Conselho
Vejo gente tão novinha já se achando e já querendo lançar, publicar. Começam a vir opiniões críticas e isso vai interferindo na tua produção. Você talvez pudesse ir mais longe, mas de repente um elogio te satisfaz. É um perigo. A Helena Kolody tem um poema sobre isso. Não são com essas palavras, mas é mais ou menos assim: “Que a crítica não te retarde o passo, e que o elogio não te apresse o passo”. A ideia é essa. Por conta disso, levei muito tempo mostrando meus poemas para pessoas que eu admirava, grandes poetas. Mostrava meus poemas para o Augusto de Campos, para o Décio Pignatari, mostrei para o Reinaldo Jardim. Além do Paulo Leminski, claro. Mas o Paulo era suspeito. A gente procurava ter interlocutores exigentes. Com o tempo, fui — pelas reações deles — adquirindo segurança de efetivamente mostrar em público o que fazia. Antes de publicar em livro, puliquei em jornais, revistas, cadernos culturais. Também tinha uma riqueza aqui em Curitiba, uma época que tínhamos Paulo, Solda, Retamozzo, Mirandinha, Reinaldo Jardim trabalhando nos cadernos de cultura dos jornais locais. Era só poesia de qualidade. Eles iam botando coisas minhas ali, fui entrando e chegou uma hora que disse a mim mesma: “Tá bom, posso lançar um livro”. Eu tinha 34 anos. 


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